Temo, Lídia, o destino. Nada é certo. Em qualquer hora pode suceder-nos O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é estranho o passo Que próprio damos. Graves numes guardam As lindas do que é uso.
Não somos deuses; cegos, receemos, E a parca dada vida anteponhamos À novidade, abismo.
Ricardo Reis, in "Odes" Heterónimo de Fernando Pessoa
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Não Me Sinto Mudar
Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo. O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos cada dia mais raros são os meus cepticismos, nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome. Não mudei. É um pouco mais de melancolia, um pouco de tédio que me deram os homens.
Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.
As roseiras florescem, as mulheres partem cada dia há mais meninas para cada conselho para cada cansaço para cada bondade.
Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas os vermes raivosos desfazem a dor, todos os homens pedem de mais para amanhã eu não peço nada nem um pouco de mundo.
Mas num dia amargo, num dia distante sentirei a raiva de não estender as mãos de não erguer as asas da renovação.
Será talvez um pouco mais de melancolia mas na certeza da crise tardia farei uma primavera para o meu coração.
Pablo Neruda, in 'Cadernos de Temuco' Tradução de Albano Martins
Acho que, na maioria dos casos, quando uma pessoa se ri torna-se nojento olharmos para ela. Manifesta-se no riso das pessoas, na maioria das vezes, qualquer coisa de grosseiro que humilha a quem ri, embora essa pessoa quase nunca saiba que efeito o seu riso provoca. Tal como não sabe (ninguém sabe, aliás) a cara que faz quando dorme. Há quem mantenha no sono uma cara inteligente, mas outros há que, embora inteligentes, fazem uma cara tão estúpida a dormir que se torna ridícula.
Não sei por que tal acontece, apenas quero salientar que a pessoa que ri, tal como a pessoa que dorme, não sabe a cara que faz. De uma maneira geral, há muitíssimas pessoas que não sabem rir. Aliás, isso não é coisa que se aprenda: é um dom, não se pode aperfeiçoar o riso. A não ser que nos reeduquemos interiormente, que nos desenvolvamos para melhor e que superemos os maus instintos do nosso carácter: então também o riso poderá possivelmente mudar para melhor. A pessoa manifesta no riso aquilo que é, é possível conhecermos num instante todos os seus segredos.
Mesmo o riso incontestavelmente inteligente é, às vezes, abominável. O riso exige em primeiro lugar sinceridade, mas onde está a sinceridade das pessoas? O riso exige a ausência de maldade, mas as pessoas, na maioria dos casos, riem com maldade. Um riso sincero e sem maldade é uma pura alegria, mas, nos tempos que correm, onde está a alegria? E poderão as pessoas ser alegres?
A alegria é um dos mais reveladores traços humanos, basta a alegria para revelar as pessoas dos pés à cabeça. Por vezes não há meio de percebermos o carácter de uma pessoa, mas basta ela rir para lhe conhecermos o feitio como às palmas das nossas mãos. Só as pessoas desenvolvidas do modo mais elevado e feliz sabem ser contagiosamente alegres, de uma maneira irresistível e benévola. Não falo de desenvolvimento intelectual, mas de carácter, do homem como um todo. Portanto: se quiserdes compreender uma pessoa e conhecer-lhe a alma não presteis atenção à sua maneira de se calar, ou de falar, ou de chorar, ou de se emocionar com as ideias mais nobres, olhai antes para ela quando se ri. Ri-se bem - é boa pessoa.
Observai depois todos os matizes: por exemplo, é preciso que o riso não pareça estúpido, por mais alegre e ingénuo que seja. Mal detecteis a mais pequena nota de estupidez num riso, ficai sabendo que a pessoa que assim ri é intelectualmente limitada, apesar de deitar cá para fora um sem-fim de ideias. Mesmo que o riso não seja estúpido, se vos parecer ridículo, nem que seja um pouquinho, ficai sabendo que não há na pessoa que o ri uma verdadeira dignidade, pelo menos uma dignidade suficiente. Por último, notai que, mesmo que um riso seja contagioso mas por qualquer razão vos pareça vulgar, também a natureza dessa pessoa é vulgar, que toda a nobreza e espírito sublime que tínheis visto nela ou são fingidos ou imitados inconscientemente, e que essa pessoa, no futuro, mudará inevitavelmente para pior, dedicar-se-á ao «útil», abandonando sem pena as ideias nobres como sendo erros e paixões da juventude.
(...) Apenas entendo que o riso é a mais certeira prova da alma. Olhai para uma criança: só as crianças sabem rir com perfeição, por isso são fascinantes. É abominável a criança que chora, mas a que ri alegremente é um raio do paraíso, é o futuro do homem quando ele, finalmente, se tornar tão puro e ingénuo como uma criança.
Revisito, talvez pela última vez, Somerset Maugham (in A Writer's Notebook) numa tradução livre e minha:
Os homens, comuns e vulgares, não me parecem preparados para a tremenda realidade da vida eterna. Com as suas pequeninas paixões, as suas pequeninas virtudes e os seus pequeninos vícios, estão bem preparados para o mundo quotidiano; porém, o conceito de imortalidade é demasiado vasto para seres moldados numa matriz tão pequena. Mais do que uma vez vi pessoas morrerem, de forma pacífica ou trágica, e nunca percebi, nos seus últimos momentos, algo que sugerisse que o seu espírito era eterno. Morrem como morre um cão.
Um dia, numa reunião do board da Childhood Cancer International, falou-se de cuidados paliativos, da presença dos pais ou de acompanhamento espiritual (fosse de que natureza fosse) para que a morte de uma criança pudesse ser mais digna. Lembro-me de, num impulso, ter dito que a morte de uma criança nunca seria menos digna do que a morte de outra, quaisquer que fossem as diferenças. Talvez a ideia subjacente não fosse uma morte menosdigna, mas menoshumana.
Talvez este texto, escrito em 1902, falasse dessa dignidade / humanidade, e não fosse apenas o azedume de um escritor genial e fantástico observador da espécie humana. Talvez muitas mortes no início do século XX fossem pouco humanas, dado a incipiência dos cuidados paliativos. Por outro lado, questiono-me em que pensam os que morrem, os que sabem que vão morrer e que acreditam numa vida eterna. Será um conceito suficientemente reconfortante para que um crente avance para essa última viagem de alma tranquila? Não sei.
Um escritor russo - de que não lembro o nome - dizia que os Homens não têm medo da morte, mas do momento antes da morte. Talvez seja assim, e não haja fé que que substitua um químico que nos deixe exalar um último suspiro com uma tranquilidade artificial. Podemos morrer com medo, com angústia, com tristeza. Mas nunca com um latido, como um cão.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, para O apresentarem ao Senhor, como está escrito na Lei do Senhor: «Todo o filho primogénito varão será consagrado ao Senhor», e para oferecerem em sacrifício um par de rolas ou duas pombinhas, como se diz na Lei do Senhor. Vivia em Jerusalém um homem chamado Simeão, homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava nele. O Espírito Santo revelara-lhe que não morreria antes de ver o Messias do Senhor; e veio ao templo, movido pelo Espírito. Quando os pais de Jesus trouxeram o Menino para cumprirem as prescrições da Lei no que lhes dizia respeito, Simeão recebeu-O em seus braços e bendisse a Deus, exclamando: «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao alcance de todos os povos: luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo». O pai e a mãe do Menino Jesus estavam admirados com o que d'Ele se dizia. Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua Mãe: «Este Menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; – e uma espada trespassará a tua alma – assim se revelarão os pensamentos de todos os corações». Havia também uma profetiza, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada e tinha vivido casada sete anos após o tempo de donzela e viúva até aos oitenta e quatro. Não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações. Estando presente na mesma ocasião, começou também a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém. Cumpridas todas as prescrições da Lei do Senhor, voltaram para a Galileia, para a sua cidade de Nazaré. Entretanto, o Menino crescia e tornava-Se robusto, enchendo-Se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, Ele estava com Deus. Tudo se fez por meio d'Ele e sem Ele nada foi feito. N'Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas e as trevas não a receberam. Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João. Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem. Estava no mundo e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam. Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade. João dá testemunho d'Ele, exclamando: «Era deste que eu dizia: 'O que vem depois de mim passou à minha frente, porque existia antes de mim'». Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos graça sobre graça. Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer.
O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os visitantes e participantes deste espaço um Santo Natal. Que o Menino Jesus seja motivo de inspiração para todos nós.
Só mesmo um aniversariante generoso, como o Menino de Belém, para que o seu dia de anos dê pretexto a que sejam os outros a receber presentes. A ideia virá dos ensinamentos daquele Bebé, que garantiu: o que fizeres ao mais pequenino dos meus (e teus) irmãos, a Mim o fizeste. Assim, o Ocidente cristão afana-se na troca de boas surpresas. Por isso, hoje, fazendo jus à simpática tradição, seguem sugestões de programas, locais, gravações com sabor a presente, de um tamanho que já não cabem num embrulho…
Dia 22, Cendrillon, de J. Massenet, com Kathleen Kim, Joyce DiDonato, Alice Coote, Stephanie Blythe e Laurent Naouri, Abril de 2018.
Dia 23, Il Barbiere di Siviglia, de G. Rossini, com Isabel Leonard, Lawrence Brownlee, Christopher Maltman, Maurizo Muraro e Paata Burchuladze, Novembro de 2014.
Dia 24, La Bohème, de G. Puccini, com Teresa Stratas, Renata Scotto, José Carreras, Richard Stilwell e James Morris, Janeiro de 1982.
Dia 25, Hansel and Gretel, de E. Humperdinck, com Christine Schäfer, Alice Coote, Rosalind Plowright, Philip Langridge e Alan Held, Janeiro de 2008.
Dia 26, The Merry Widow, de F. Lehár, com Renée Fleming, Kelli O'Hara, Nathan Gunn, Alek Shrader e Sir Thomas Allen, Janeiro de 2015.
Dia 27, Falstaff, de G. Verdi, com Lisette Oropesa, Angela Meade, Stephanie Blythe, Jennifer Johnson Cano, Paolo Fanale, Ambrogio Maestri e Franco Vassallo, Dezembro de 2013.
Na Fundação Medeiros e Almeida (M&A) há uma colecção especialmente natalícia, que entrou na casa do colecionador pela via mais nobre, cumprindo um costume no Norte da Europa, de oferta de pequenas colheres com motivos alusivos à quadra. Nos séc. XVIII e XIX, as colheres eram dedicadas às amadas. Mas com a quase extinção da manufactura, passaram a assinalar ocasiões festivas, ganhando afinidades com o costume da corte dos Czares, que trocavam “ovos” Fabergé pela Páscoa, para celebrar a data mais relevante para os Ortodoxos – a morte e ressurreição de Cristo. No património da M&A, as dezoito colheres de prata dourada corresponderam a presentes de Natal consecutivos, dados pelo vice-presidente da Fábrica Dinamarquesa de Açúcar, ao empresário português, com quem tinha negócios. Uma delas foi decorada com motivos concebidos pela rainha Margarida. A história vem explicada com detalhe no portal da Fundação (em texto aqui adaptado, para facilitar a consulta):
Colheres de Natal na Fundação M&A
As 18 colheres da M&A, produzidas pela ourivesaria dinamarquesa: A. Michelsen. Comemorativas do Natal («Juleskeen»), correspondiam a edições anuais com design de artistas convidados. Materiais: prata banhada a ouro vermeil e esmaltes; dimensões - Comp. c. 16cm x Larg. c. 3cm.
Informação no reverso das colheres.
Marcas no reverso do cabo: punção da casa ‘A:MICHELSEN STERLING DANMARK’, letra C de Copenhaga, assinatura do artista e inscrição JUL (Natal) acompanhada do respetivo ano.
«A oferta de colheres:
A tradição de oferecer colheres terá começado paralelamente em diferentes regiões da Europa como nas ilhas britânicas, nos países escandinavos, nos Alpes Suíços ou nos Balcãs ainda no século XVII. A tradição, provavelmente proveniente do hábito de fazer colheres para a cozinha, derivou para a manufatura de colheres com simbologia associada ao amor.
Estes objetos, as chamadas “colheres do amor” (love spoons), eram esculpidos à mão, a partir de um só pedaço de madeira e decorados de acordo com a imaginação de jovens rapazes, que produziam bonitas peças para serem oferecidas às suas amadas; entre a simbologia representada incluem-se corações, ferraduras da boa sorte, chaves que simbolizavam o caminho para o coração, sinos que aludiam ao casamento, pares de pássaros, etc.
Eram feitas nas longas noites de inverno ou pelos marinheiros durante as suas viagens, sendo oferecidas como expressão das intenções amorosas e como símbolo da capacidade de trabalho da madeira, logo de sustento da família. As raparigas, que podiam receber diversas colheres, expunham-nas nas paredes de casa.
A manufatura manteve-se até ao início do séc. XX. O País de Gales foi dos poucos lugares onde a produção de colheres do amor se prolongou por mais tempo.
Ao longo dos tempos, o hábito derivou para a oferta de colheres associadas a mais temas, como objeto ornamental e colecionável, existindo ainda muitas empresas com produção de colheres de edição anual, frequentemente para o Natal, como o fabricante alemão Robbe & Berking: https://shop.robbeberking.com/jahresloeffel-2019.html?___store=ruben, a Klepa Arts Germany, os americanos Reed & Barton ou Gorham Manufacturing Company, ou ainda a dinamarquesa Georg Jensen, de que a Casa-Museu possui o exemplar comemorativo do centenário: 1872-1972.»
A ourivesaria A. Michelsen A/S recuperou a tradição da oferta de colheres, replicou-a em materiais nobres e lançou a moda de produzir uma peça comemorativa do Natal (1910) desenhada por um artista convidado. Cada edição anual era limitada e os moldes destruídos.
O fundador da empresa, Anton Michelsen (1809-1877), provinha de uma linhagem de joalheiros. Começara por empreender uma longa viagem pela Europa (1836), que lhe permitiu trabalhar com os grandes ourives da Alemanha e de França. Ao regressar, em 1841, abriu negócio na capital e, 8 anos depois, ascendia a joalheiro oficial da corte e das Ordens. Para garantir uma estética de qualidade, contratou os melhores designers e a sua descendência deu continuidade a esta política, enquanto a família geriu o negócio.
Em 1855, Anton era o único ourives dinamarquês a participar na Exposição Universal de Paris.
Destacou-se também por ser precursor na adoptação do ‘Old Nordic style’ – o primeiro estilo genuinamente dinamarquês, com motivos da época Viking, arqueológicos e populares, imbuídos de forte espírito nacionalista.
Com o arquiteto Ib Lunding (1920), as obras adquiriram colorido, quer pela combinação de diferentes metais, quer pelos esmaltes policromados.
Em 1985, a ourivesaria fundiu-se com a congénere Georg Jensen A/S (constituída em 1872).
As colheres da Casa-Museu:
Sequência das ofertas que integraram o acervo da M&A, com decorações incisas em esmalte policromado:
JUL (Natal de) 1965 – “The Christmas Tree” de Theresia Hvorslev (1935-?) – das mais influentes ourives suecas contemporâneas, representada em diversos museus como o Cooper-Hewitt de Nova Iorque.
JUL 1966 –“The Flight into Egypt” de Jorgen Dahlerup (1930-2015) – adepto do desenho de objetos religiosos, com obra exposta em museus alemães e dinamarqueses.
JUL 1967 – “Splendor of Yule” de Paul-René Gaugin (1911-1976) - filho de Pola Gaugin e neto do pintor Paul Gaugin, nasceu em Copenhaga e distinguiu-se pelas xilogravuras coloridas.
JUL 1970 – “Mr. Snowman’s Christmas Tree” de Mogens Zieler (1905–1983) - pintor, gráfico e ilustrador dinamarquês.
JUL 1972 – “Herold” (Arauto) de Bjorn Wiinblad (1918-2006) - pintor, designer e artista de cerâmica, prata, bronze, têxteis e grafismo, consagrado no Ocidente, Japão e Austrália.
JUL 1973 –“Winter solstice” de Ib Spang Olsen (1921-2012) – conhecido por gerações de dinamarqueses pelos desenhos animados e as ilustrações, sobretudo para publicações infantis.
JUL 1974 – “The blue bird” de Carl-Henning Pedersen (1913-2007) – membro-chave do movimento COBRA, que se inspirou na arte popular nórdica e adoptou uma expressão expressionista e surrealista. Autodidata, C-H. colheu inspiração em Picasso, Braque ou Chagall. A sua produção prolífica invocava os contos de fadas, pelo que foi alcunhado de ‘o Hans Christian Andersen da pintura’.
JUL 1975 – “Shooting Star” (Estrela cadente) de Per Arnoldi (1941 -) – desdobrou-se em pintura, escultura, cerâmica e produção de posters, estando exposto no MoMA.
JUL 1976 – “Snow Crystal” de Gudmund Olsen (1913 – 1985) – viveu, em Paris, durante a II Guerra Mundial, tendo desenvolveu o estilo construtivista. Em 1954, mudou-se para a Dinamarca e continuou as suas experiências cromáticas, com acumulação de camadas e volumetria diversa.
JUL 1977 – “Winter Rose” de Poul Hanmann (1915 – 1981) – foi vencedor das prestigiadas bolsas da Academia Dinamarquesa (1953) e da Hesselund (1976), entre outros prémios. Especializou-se em desenho figurativo, de linhas e paleta simplificadas.
JUL 1978 – “Solstice” de Vibeke Alfelt (1934-1999) – tal como os pais, esteve envolvida no movimento modernista COBRA. A figura do cavalo tornou-se um “leitmotiv” da sua obra.
JUL 1979 – “The Sun Kingdom” de Lars Aakirke (1926-2004) - foi influenciado pelo pintor William Scharff, responsável pela introdução do cubismo na Dinamarca. Era casado com a pintora Vibeke Alfelt.
JUL 1980 – “The Mask” de Egill Jacobsen (1910-1998) - foi membro dos movimentos “Groningen”, “COBRA” e “Free Exhibition”, tendo sido distinguido com vários galardões e exposto em todo o mundo.
JUL 1981 – “Robin Redbreast” (Pisco-de-peito-ruivo) de Falke Bang (1912-1998) – escultor e ilustrador, celebrizou-se pelos desenhos de animais e pelos trabalhos de impressão em papel.
JUL 1982 – “The Queen of Sheba” (A rainha de Sabá) de Kamma Svensson (1908-1988) - pintora e ilustradora de estilo multicolor. Estudou em Copenhaga e Berlim, fez ilustrações para jornais, revistas e livros de autores dinamarqueses.
JUL 1983 – “The Snow Queen” de Lars Bo (1924-1999) – escritor e gráfico famoso pelos motivos fantásticos, de inspiração surrealista. Cognominado o ‘Mago’, ilustrou muitos livros, nomeadamente para Hans Christian Andersen, além de periódicos como o “Le Monde”.
JUL 1984 – “The Christ Child” da rainha H. M. Margrethe II (1940-) – a partir de 1970, a rainha dedicou-se às artes plásticas: pintura, aguarelas, gravura, ilustração de livros, produção têxtil ornamental para igrejas, recorte de imagens, cenografia e bordados.
Sobre o motivo da colher na M&A, Margarida da Dinamarca explicou: «Inspirei-me no altar de Verdun, em Klosterneubourg, perto de Viena, uma obra de ouro e esmalte realizada pelo mestre Nicolas de Verdun, em 1181. As estatuetas em bronze dourado e incrustado de niello estão apostas em cinquenta e nove placas. Os detalhes dos panejamentos são sublinhados com um traço de esmalte azul (…) O rigor da arte romana, o seu caráter ligeiramente estilizado, agrada-me. Acho que convém ao desenho desta colher de Natal. O ornamento deve subordinar-se ao objeto e à sua utilização.»
JUL 1985 – “The Bird Sheaf” (A casinha do pássaro) de Naja Salto (1945-2016) – pintora e artista têxtil lembrada pelas tapeçarias de aplicação cenográfica com cores vivas, cenas marítimas, do céu e motivos da mitologia nórdica. Também criou joias para a G. Jensen e pintou vitrais. O motivo desta colher remete para uma tradição popular dinamarquesa de, todos os anos, pendurar no exterior uma casinha para pássaros, perto da janela do quarto dos mais novos, para estes acompanharem o modo de vida das aves.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida(1)
Episódios memoráveis e divertidos remetem para o muppet show. Há uns anos, entoaram um «jingle bells» a duas velocidades e diversos estilos, numa tensão fantástica entre a cavalgada ritmada e animadíssima dos bonecos (a versão mais comum) e a interpretação diáfana de Andrea Bocelli. Não era fácil articularem-se, mas valeu o talento do italiano para se desdobrar em diferentes vozes e diferentes sonoridades, até sair uma polifonia capaz. O apresentador-pianista nem disfarça a vontade de rir com os apartes primitivos dos marretas mais cabeçudos e artisticamente insensíveis, claro que críticos do tenor. No fundo, só o público e Miss Piggy (por razões diferentes) adoraram a entoação suave, profunda e sentida de Bocelli – necessariamente desacelerada.
Ainda como presente: o concerto de Natal na voz rouca de Rod Stewart, gravado em 2012, numa gala decorrida no Castelo de Stirling, na Escócia (com parte de conversa entre o 29:… e o 32:…). As duas últimas árias são especialmente bonitas, com uma Noite Feliz (41:57) cheia de violinos e coro infantil e uma despedida ao som do clássico «Auld Land Syne» entoado por todo o castelo:
A concluir, o mais importante: um Santo Natal e um bom começo de 2021!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Volta e meia leio inquéritos a pessoas a quem lhes é perguntado o que leem, quanto calçam, de que cor gostam, se têm pedras no sapato ou se alguém lhes deve um pedido de desculpas. O pecado mortal que mais cometem é também motivo de interesse (mesmo que o inquirido seja um feroz ateu, para quem o pecado mortal pode ser um conceito estranho). A resposta a esta pergunta varia normalmente entre a gula e a luxúria. Percebe-se porquê. A gula está vulgarmente associada ao prazer da comida e a luxúria ao prazer sexual. É certo que são excessos, mas são excessos de áreas aceitáveis e que proporcionam prazer. É pecado, vá, mas é bom...
É raro encontrar alguém que mencione a preguiça, talvez porque este pecado mortal se associe a uma falha de carácter, a algo que poderá prejudicar o próximo. Ser-se preguiçoso é mau, denota irresponsabilidade, incumprimento de deveres básicos. Somos educados no valor do trabalho. Curiosamente, um destes dias cruzei-me com um texto de Somerset Maugham (A Writer's Notebook) que falava disto. Traduzo livremente:
Ouvimos falar muito da nobreza do trabalho; porém, não há nada nobre no trabalho em si mesmo. Olhando para as primeiras sociedades, vemos que a guerra era desenfreada, o trabalho era desprezado e a actividade militar reverenciada. Agora que a maioria das pessoas são trabalhadoras, o trabalho é reverenciado. O facto é que os homens, na sua arrogância, se limitam a olhar para as suas actividades específicas como o objecto mais nobre do homem.
O trabalho é louvado porque isso livra os homens de si próprios. Os estúpidos maçam-se quando não têm nada para fazer. O trabalho com a maioria é o seu único refúgio para o tédio; tem graça, porém, chamar-lhe nobre por causa disso. São necessários muito talentos e muita cultura para se ser ocioso, ou uma mente com uma constituição peculiar.
Não sou suficientemente importante ou público para que me façam inquéritos. Mas, se o fizessem, já sabia o que responder quando me perguntassem qual o pecado mortal que mais pratico: a preguiça, claro está. E a vaidade pelo facto de me gabar disso. Na verdade, só trabalha muito quem não sabe o que fazer com as horas de ócio. O Somerset Maugham lá saberia.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José. O nome da Virgem era Maria. Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo; bendita és tu entre as mulheres». Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela. Disse-lhe o Anjo: «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; e o seu reinado não terá fim». Maria disse ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?» O Anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice porque a Deus nada é impossível». Maria disse então: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».
Também na Índia as pessoas leram a “Fratelli tutti”, considerando a encíclica muito instrutiva, educativa e edificante. Quando enviei uma cópia aos meus amigos hindus, uma delas, que dedicou a vida ao trabalho pela paz e anima um grande movimento nesse sentido denominado “Shanti Ashram” (Casa da Paz”), escreveu-me imediatamente, pedindo-me para ajudar os jovens membros da associação a aprofundar o espírito da encíclica e motivá-los para ações concretas a favor da paz. Aceitei. Houve quinhentos inscritos, mas dado que o “teleseminário” só admitia um número limitado de participantes, na conferência de 7 de novembro assistiram algumas centenas de pessoas. A todos foi pedido para ler o documento, com o propósito de se prepararem. A um grupo de cinco jovens, entre eles um muçulmano e um cristão, foi também pedido para comentar, com brevidade, o texto.
Os jovens ficaram sensibilizados pela mensagem de esperança do papa. Sentem-se encorajados quando lhes é dito que na sociedade nenhum é inútil ou não desejado. Disseram que o santo padre se concentra no potencial do contributo de cada pessoa para a sociedade. Declararam repetidamente que amam o papa e que se preocupam com ele; as barreiras das religiões não os podem impedir de se unir ao movimento proposto profeticamente pelo papa na “Fratelli tutti”. Os jovens apreciaram o pensamento do santo padre, que convida «todos a estar juntos, mesmo quantos estão fora do redil católico».
Os participantes hindus, em particular, leram atentamente as entrelinhas da encíclica: «O encontro de que o santo papa escreve não tira o espaço para o silêncio na nossa vida»; o sistema religioso hindu dá importância à meditação, à contemplação e ao silêncio na prática da religião. Os jovens também retiveram que o Covid-19 pode ser visto como uma oportunidade de enriquecimento para todos, e é isso que o papa afirmou através da sua mensagem na “Fratelli tutti”.
A menção a Mahatma Gandhi no fim do documento suscitou particular entusiasmo entre os jovens na Índia; leram o texto e refletiram sobre ele no contexto das suas tradições religiosas. Fiquei surpreendido com as intuições dos jovens e pelo seu amor e afeto pelo santo padre, expressos de modo explícito durante o seminário pela internet. Definiram-no como «uma voz moral» única no mundo atual. A comunidade dos Focolares, que mantém relações de amizade com a Ashram, foi uma presença encorajadora no encontro. Os jovens pediram um outro encontro para examinar mais em profundidade a riqueza da encíclica e a urgência de a aplicar.
Desejo acrescentar uma observação sobre Mahatma Gandhi, dado que o santo padre tocou o coração de muitos, especialmente na Índia, atribuindo a sua inspiração para escrever a “Fratelli tutti” também a Mahatma Gandhi, que é honrado como “Rashtrapita”, ou “Pai da Nação”.
Na “Fratelli tutti”, o papa Francisco fala do papel da política na sociedade. Sou capaz de imaginar o rico diálogo que se teria realizado se o Mahatma tivesse encontrado o papa Francisco. O Mahatma Gandhi sustentava, de maneira clara e forte, que não se pode identificar a religião com a política, nem se pode separar a política da religião. Sugeriu, com firmeza, que toda a política seja acompanhada pela espiritualidade. Explicou que só os fundamentos religiosos podem ajudar-nos a analisar com honestidade e em profundidade qualquer resposta política necessária para resolver os problemas. Gandhi motivou o seu pensamento político recorrendo ao património espiritual hindu, sobretudo ao triplo caminho para a libertação no “Bhagavad Geeta” (um caminho de fé, razão e ação).
Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz do ano passado (1 de janeiro de 2019), o santo padre refletiu sobre o papel da «boa política (…) ao serviço da paz». Quem detém cargos políticos, escreveu, deve exercer a sua função ao serviço dos outros, baseando o seu trabalho nos fundamentos da caridade e das virtudes humanas. Também o Mahatma Gandhi considerava que o compromisso político devia ser um serviço generoso, e definia todo o serviço generoso como uma oração a Deus.
A política não é nem para a autogratificação nem para os interesses adquiridos do partido político; o compromisso na política deve ser um testemunho da verdade apreendida na base das próprias convicções religiosas (tal como é ensinado oficialmente pelas várias tradições religiosas). Segundo Gandhi, a natureza da política não é nem puramente secular nem totalmente afastada da espiritualidade. Fundamentalmente, a política diz respeito à ação; todavia, nenhuma ação é neutral; baseia-se numa inabalável sabedoria, que é indispensável antes de agir. Portanto, a oração tem um papel essencial na vida da pessoa.
Não se deve subvalorizar a influência que nosso Senhor Jesus Cristo teve na vida do Mahatma Gandhi. O discurso da montanha (Mateus 5) foi muito importante para ele, e ele afirmou com firmemente que as bem-aventuranças continuam a ser uma inspiração indispensável para todo o ensinamento social. Como hindu comprometido, Gandhi era fascinado pelo princípio moral e pelo símbolo ético de Jesus. Escreveu: «Posso dizer que nunca estive interessado num Jesus histórico. Nem sequer me importaria se alguém demonstrasse que o homem chamado Jesus na realidade nunca tivesse existido, e que quanto se lê nos Evangelhos só é fruto da imaginação do autor. Porque o Sermão da Montanha permaneceria sempre verdadeiro aos meus olhos».
Gandhi era, seguramente, movido à ação profundamente espiritual, mas a sua atitude era baseada nos valores. Uma leitura completa dos seus escritos permite-nos concluir que era afeiçoado à pessoa de Cristo. Escreveu: «Durante muitos anos da minha vida considerei Jesus de Nazaré um grande mestre, talvez o maior que o mundo já teve (…). Posso afirmar que Jesus ocupa um lugar especial no meu coração como mestre que exerceu uma importante influência na minha vida». O Mahatma Gandhi considerava Jesus o modelo supremo a imitar.
O Mahatma Gandhi propôs que cada político prometesse comprometer-se pela verdade e a não-violência. A não-violência não deve ser professada apenas com palavras. É preciso purificar as intenções, os projetos, o ponto de vista, os pensamentos e as convicções pessoais, bem como a maneira como se responde aos desafios da vida; são todos conceitos contidos na definição que Gandhi dá da não-violência.
Os jovens que participaram na reflexão sobre a “Fratelli tutti”, na maioria hindus, consideraram que, como o Mahatma Gandhi, o papa Francisco deseja uma ação transformadora da parte de todos na nossa sociedade e no mundo atual. É preciso enfrentar as situações com uma ação bem ponderada e planificada. Gandhi considerava que não há alternativa: é necessário responder às situações com a não-violência (“ahimsa”), porque se à violência se responde com a violência, é certo que o mundo caminhará para a autodestruição.
Para poder dar uma resposta não-violenta, Gandhi preparava-se com uma vida de oração regular, jejum, silêncio e contemplação. Ele estava convencido de que o não responder à violência seria uma violência ainda maior. Considerava que Jesus nos ensinou, com o sacrifício da sua vida, a viver na lógica do amor. Muitas pessoas na Índia sabem que a vida e o ensinamento de Jesus foram revolucionários. Esperam que os cristãos em todo o mundo vivam segundo o exemplo de Jesus. O Mahatma Gandhi viveu a sua vida na lógica do amor porque acreditava firmemente que era a única lógica capaz de salvar o mundo. A sua política, o seu pensamento, as suas ações e o seu sacrifício da vida são uma consequência do seu compromisso para com a lógica do amor.
D. Felix Anthony Machado
Arcebispo-bispo de Vasai, secretário-geral da Conferência dos Bispos Católicos da Índia
In L'Osservatore Romano (Trad.: Rui Jorge Martins)
Sempre que, enquanto jovem adolescente, jantava ou almoçava em casa de amigos, a primeira pergunta que me faziam no regresso ao lar era a mesma: o que foi o almoço / jantar? Éramos todos magros (a minha obesidade veio mais tarde) mas, mesmo assim, parte da conversa era à mesa - e sobre assuntos de mesa. Domingo, falando com uma filha de amigos sobre este tema, ela riu-se, porque, à semelhança de outras pessoas que conheço, a conversa sobre comida é, para ela, uma perda de tempo.
Para algumas pessoas, conversar sobre comida é tão determinante para a sabedoria das nações como conversar sobre pastas de dentes. Para algumas pessoas, conversar, a menos que seja para tomar decisões, é uma perda de tempo, e encaram as perguntas como uma necessidade de compromisso. Tive um chefe que, perante algumas conversas, algumas propostas, algumas ideias, comentava com um ar educado - porém demolidor: isso acrescenta algum valor ao PIB?
Nem sempre é fácil explicar a veracidade da sabedoria que, dizem-me, é alentejana: à mesa não se envelhece. A sabedoria dos antigos pode ser datada, não lhe conferindo dimensão intemporal; por vezes, conversar à mesa era a única coisa que podia fazer-se, já que não havia outras actividades: não havia cinema, séries de televisão, internet, jogos de computador ou whatsapp. Talvez por isso (re)aprender a conversar na era da informação seja um imperativo civilizacional.
Num diálogo há dias sobre a arte e os benefícios de conversar (é isso, para além do sorriso, que estabelece o comércio entre as pessoas) dei por mim a fazer uma metáfora, actividade intelectual a que me deito com denodo e alguma competência; se eu fosse um desporto, gostaria de ser o ténis batido ao fundo do court: bola para lá, bola para cá, bola para lá, bola para cá. É assim que me vejo, ainda que o faça de modo imperfeito: a conversar, fazendo perguntas, dando opiniões ou respostas, olhando para as hipóteses ou para o futuro, não como um momento de decisões, mas como uma tela onde se põe tudo: um trocadilho, uma graça, uma notícia, uma informação, uma opinião e, quem sabe, um compromisso.
Foi assim que eu cresci. Volta e meia alguém avançava para a rede e sentia-se a necessidade de ripostar e, quem sabe, de ganhar o jogo. Era um impulso, uma fragilidade. Afinal, conversar significa, em latim, viver junto, trocar palavras. Não significa, forçosamente, vencer o jogo ou decidir sobre a vida.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João. Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Foi este o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram, de Jerusalém, sacerdotes e levitas, para lhe perguntarem: «Quem és tu?» Ele confessou a verdade e não negou; ele confessou: «Eu não sou o Messias». Eles perguntaram-lhe: «Então, quem és tu? És Elias?» «Não sou», respondeu ele. «És o Profeta?». Ele respondeu: «Não». Disseram-lhe então: «Quem és tu? Para podermos dar uma resposta àqueles que nos enviaram, que dizes de ti mesmo?» Ele declarou: «Eu sou a voz do que clama no deserto: 'Endireitai o caminho do Senhor', como disse o profeta Isaías». Entre os enviados havia fariseus que lhe perguntaram: «Então, porque baptizas, se não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?» João respondeu-lhes: «Eu baptizo em água, mas no meio de vós está Alguém que não conheceis: Aquele que vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias». Tudo isto se passou em Betânia, além Jordão, onde João estava a baptizar.
O que implica declarar que a Igreja não é nem um mercado nem um partido?
Numa recente catequese das quartas-feiras, o papa Francisco afirmou duas coisas: a Igreja não é um mercado, a Igreja não é um partido.
Para a primeira afirmação, vêm à mente as imagens de Jesus que expulsa os comerciantes do templo. No entanto, aqui Francisco não pretende tanto expulsar os comerciantes, mas chamar a atenção para que não se pense a Igreja como mercado, com as lógicas de produtividade, lucro, concorrência. O estudo das estratégias para uma maior eficiência, para uma presença mais incisiva, são características presentes nas nossas ações pastorais.
O outro aspeto, do partido político, está presente nas discussões entre maioria e minoria. A denúncia do papa refere-se à ausência de sinodalidade, à exclusão de quem está em minoria, de quem sai perdedor no debate “político”. Não deve dominar a busca da eficiência por si própria, mas a fidelidade ao Evangelho.
O que acontece na Igreja se não é sinodal? Os pensamentos e as opiniões discordantes conduzem à exclusão e afastamento dos seus autores? Na sinodalidade, que é obra do Espírito de Deus, deve dar-se espaço à escuta e ao diálogo, inclusive na discordância, reconhecendo dignidade a todos os irmãos. Decerto não se pode continuar até ao infinito. É preciso decidir, mas nunca interrompendo o diálogo e, sobretudo, rompendo a comunhão.
Esta é uma das coordenadas da vida da Igreja, que são o Evangelho, a Eucaristia, a comunhão, a oração. Excluir alguns irmãos para tornar mais rápido e eficaz um caminho rompe a comunhão e não é, verdadeiramente, eficaz: não dará fruto, não tanto quanto poderia dar.
Mas a afirmação de Francisco tem um significado também em relação às acusações que lhe são feitas, como a outros papas no passado. A Igreja não é um partido, a sua orientação é dada pelo Evangelho de Jesus Cristo.
Tornou-se comum pensar que as ofertas pecuniárias dos poderosos, ou as pressões políticas, podem condicionar as intervenções da hierarquia. Vimos algumas tentativas nesse sentido. Porém, fazem-se leituras ideológicas das ações pastorais. É uma leitura míope, que se deve à cegueira voluntária, à negação do Evangelho.
A opção pelos pobres é de esquerda? A paz é de esquerda? A defesa da vida é de direita? Sublinhar a liberdade de consciência é de direita? A doutrina social da Igreja, que contém todas estas, onde se situa? Colocam-se etiquetas em palavras, conceitos e problemas sobre os quais não se quer debater.
Um diálogo livre de ideologias poderia dar respiração também a toda a sociedade e às suas estruturas de participação. Sobretudo, deixaria livre a Igreja de toda a tentação de cesaropapismo.
Mesmo a propósito do Advento, em contagem decrescente para o Natal, uma caneta virtuosa acompanha a reflexão interpelativa de C.S.Lewis (1898-1963) sobre a Esperança, encarada como um dos pináculos da escalada a que a fé conduz. A explicação está marcada pelo cunho racional com que aquele académico poeta-escritor quis expor os alicerces da perspectiva cristã. Caracterizou ao contrastá-la com as atitudes adoptadas pelos não-crentes.
Em off lê-se o décimo capítulo do terceiro livro de «Mere Christianity», publicado durante a Segunda Guerra, em 1943. A leitura corre ao ritmo veloz de ilustrações expressivas em tinta branca sobre fundo negro, num exercício de lógica equiparável ao desfiar de uma fórmula matemática. Foi gravado para a terceira série da BBC «Christian Behaviour» que C.S. Lewis animava, correspondendo à conversa introdutória do poeta-escritor ao novo conjunto de programas radiofónicos.
Se a sequência de desenhos poderia aproximar-se de uma banda desenhada dissecadora, o raciocínio que desfia forma um poderoso baluarte argumentativo, como muralha protectora numa fronteira agitada. É talvez na forma de hierarquizar os diversos objectivos, que Lewis se torna mais interpelativo e, em simultâneo, difícil de rebater. A complexa malha de argumentação está tecida para contrapor objecções de toda a ordem, bem ciente de as desencadear e em rajada. Tão pouco se esquiva aos temas polémicos e menos populares, já na sua época, como por exemplo o sentido do casamento numa sociedade onde o divórcio despontava com pujança, ou discorrer sobre as virtudes teologais numa época em descristianização.
A abordagem tão preparada para a réplica adivinha-se emergir de uma mente profundamente conhecedora do outro lado da barricada, para lá da óbvia argúcia. De facto, Lewis tinha dado o salto de ateu rebarbativo, desde a adolescência, para anglicano fervoroso em idade adulta, quando já era académico em Oxford. Pesou muito a influência do amigo e também professor-escritor: Tolkien, na situação ainda mais rara na academia inglesa de ser católico convicto.
Tolkien de cachimbo e Lewis à direita
Mal se converteu, Lewis transpôs para a afirmação da sua cristandade a verve certeira e fundamentada que o caracterizava, desta vez empenhado em explorar e divulgar as razões da sua fé. Nascido na Irlanda do Norte, recuperara as raízes anglicanas da mais tenra idade, embora fosse dialogante com outras confissões cristãs, nomeadamente a católica, tendo sido dos maiores amigos do autor da trilogia «O Senhor dos Anéis». Assim, falou e escreveu para todas as idades, sendo célebres as crónicas de Nárnia dirigidas aos mais novos, também transpostas para o cinema. O escritor estava bem consciente do peso da arte na formação das mentalidades, nomeadamente a literária, que esgrimia com à-vontade e reconhecido talento.
Outra curta-metragem inspirada leva-nos a 1996, quando Eric Clapton protagonizou um momento antológico com Pavarotti para um dueto à «Holy Mother». O concerto, ao vivo, decorreu em Londres e teve o acompanhamento do coro East London Gospel, que abrilhantou a prestação do tenor italiano e a toada quente do branco com a voz mais próxima dos jazzistas afro-americanos. Isto sem falar do solo de guitarra fabuloso do britânico.
A ária tinha sido composta por Clapton bons anos antes e entrara no álbum de 1986. A letra lembra o caminho destrutivo em que se enredara e desesperara, até perder as forças e se apanhar a rezar, aos pés da cama, pedindo a Nossa Senhora que o libertasse da espiral viciante das drogas e do alcoolismo. Na música perpassa a oração proferida, in extremis, num SOS voltado para o Céu, como fazia quando era pequenino. O cantor-guitarrista conta ainda que, depois daquela noite escura, em que uma mão salvadora lhe valera, as primeiras e as últimas palavras do dia são dedicadas à Mãe que redescobrira. Na autobiografia («The Autobiography») explica-o nesta passagem: «I was in complete despair. In the privacy of my room, I begged for help. I had no notion who I thought I was talking to, I just knew that I had come to the end of my tether … and, getting down on my knees, I surrendered. Within a few days I realized that … I had found a place to turn to, a place I’d always known was there but never really wanted, or needed, to believe in. From that day until this, I have never failed to pray in the morning, on my knees, asking for help, and at night, to express gratitude for my life and, most of all, for my sobriety.»
Percebe-se por que é cantada com tanta fibra e alma, sobretudo na interpretação do autor, em jeito de serenata:
A letra acaba por se colocar em contagem decrescente até ao Presépio, condensando em sete estrofes todo um percurso de vida, que mantém o diálogo em aberto até à Partida derradeira, antecipando assim o Reencontro que, então, será definitivo:
«HOLY MOTHER
Holy Mother, where are you?
Tonight I feel broken in two.
I've seen the stars fall from the sky.
Holy mother, can't keep from crying.
Oh I need your help this time,
Get me through this lonely night.
Tell me please which way to turn
To find myself again.
Holy mother, hear my prayer,
Somehow I know you're still there.
Send me please some peace of mind;
Take away this pain.
I can't wait, I can't wait, I can't wait any longer.
I can't wait, I can't wait, I can't wait for you.
Holy mother, hear my cry,
I've cursed your name a thousand times.
I've felt the anger running through my soul;
All I need is a hand to hold.
Oh I feel the end has come,
No longer my legs will run.
You know I would rather be
In your arms tonight.
When my hands no longer play,
My voice is still, I fade away.
Holy mother, then I'll be
Lying in, safe within your arms.»
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José. O nome da Virgem era Maria. Tendo entrado onde ela estava, disse o anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo». Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela. Disse-lhe o Anjo: «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim». Maria disse ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?» O Anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril; porque a Deus nada é impossível». Maria disse então: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».
Consagração a Nossa Senhora
Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia e para sempre, os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração e inteiramente todo o meu ser. E porque assim sou Vosso, ó incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como propriedade vossa. Lembrai-Vos que Vos pertenço, terna Mãe, Senhora Nossa. Ah, guardai-me e defendei-me como coisa própria Vossa.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Está escrito no profeta Isaías: «Vou enviar à tua frente o meu mensageiro, que preparará o teu caminho. Uma voz clama no deserto: 'Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas'». Apareceu João Baptista no deserto a proclamar um baptismo de penitência para remissão dos pecados. Acorria a ele toda a gente da região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém e eram baptizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados. João vestia-se de pêlos de camelo, com um cinto de cabedal em volta dos rins, e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. E, na sua pregação, dizia: «Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar as correias das suas sandálias. Eu baptizo-vos na água, mas Ele baptizar-vos-á no Espírito Santo».
Não são as Circunstâncias que Decidem a Nossa Vida
A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as historicamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.
Mas agora é preciso completar o diagnóstico. A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajectória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este, este de agora – consiste em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e, consequentemente, força-nos... a eleger. Surpreendente condição a da nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem mum só instante se deixa descansar a nossa actividade de decisão. Inclusivé quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir.
É, pois, falso dizer que na vida «decidem as circunstâncias». Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.
Qual a relação entre a fosfolipídeo lecitina, o esperanto e o amor? O que une estas coisas aparentemente tão díspares e, para algumas pessoas, tão desconhecidas do seu quotidiano? Se toda a gente sabe o que é o amor, ainda que nem toda a gente o tenha vivido de forma gratificante e plena, nem todos saberão o que é aquela molécula (e também poderíamos falar da trietanolamina), que pode actuar como um surfactante ou o esperanto (uma língua inventada por um polaco que quis fazer dela a língua franca internacional).
Eu explico. Aquilo que une as três coisas referidas acima é o facto de serem um emulsionante, isto é, permitirem a mistura de algo imiscível, ou seja, algo que não se mistura. Eu continuo a explicar: a fosfolipídeo lecitina é uma molécula existente no ovo e que permite que o azeite e o vinagre - líquidos imiscíveis - se misturem. O esperanto é uma língua que permite que duas pessoas que falam duas línguas totalmente diferentes - e por isso imiscíveis - se misturem. O amor é aquilo que permite que duas pessoas co feitios contraditórios - e por isso imiscíveis - se misturem.
Olhar para a fosfolipídeo lecitina, para o esperanto e para o amor não é olhar para três conjuntos distintos, ou olhar para palavra ou conjuntos de palavras constantes num dicionário. Olhar para estas três coisas é ver que a natureza - humana ou gastronómica ou linguística - têm muito mais em comum do que possa pensar-se. Se as tirarmos uma parte da vida, tal como a conhecemos, não existe.
***
A experiência, mas também uma certa ocupação improdutiva de alguns tempos livres, levam-me a encontrar uma relação entre tudo, mesmo entre aquilo que parece não ter relação. O devaneio não é apenas o exercício de uma autoridade, a manifestação infantil da propriedade - este estabelecimento é meu e publico nele o que quiser - masuma dose de criatividade mental que impede o cérebro de calcinar. Olho para o texto acima e questiono-me se estou a impedir a calcinação ou se já estou a vivê-la. Na verdade, o estabelecimento é meu.