28 fevereiro 2021

II Domingo do Tempo da Quaresma

EVANGELHO - Mc 9,2-10

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

26 fevereiro 2021

Dos engenheiros inferiores e da língua portuguesa

 

O meu pai dizia que eu era especialista em matéria vaga; numa dada altura trabalhei no jornal O Dia, na secção de informação geral: ia a um congresso de medicina dentária, ao rapto da pequena Sofia B, ao aumento do preço dos táxis e do vinho de Palmela, aos roubos em Lisboa na véspera. Estávamos em 1979...

O meu pai chamava-me engenheiro inferior porque me formara no ISEL, em 1984. Até ao 25 de Abril as pessoas com um curso de 3 anos em engenharia, como eu, chamavam-se agentes técnicos; a revolução promoveu-as a engenheiros técnicos. Para o meu pai, que tinha consideração pelo meu intelecto e pelo meu percurso como Homem, engenheiros superiores eram os do Técnico (tal como para mim). Nunca me importei com isso, e ainda hoje me intitulo assim.

No meio de um livro que chegou hoje cá a casa (também tinha um cromo do Micau, mas achei menos curioso)  vinha esta separata - a nº 2 - do Boletim do Sindicato dos Engenheiros Técnicos. Sem data, mas interessante: explica a passagem dos antigos institutos industriais a Escolas Superiores, que se viriam a designar Institutos Superiores de Engenharia. Há expressões deliciosamente antigas nesta separata, nomeadamente uma referência aos "bacharéis em engenharia de reconhecidos méritos profissionais". Mas o mais importante e mais interessante está no título da separata: Projecto de remodulação dos Institutos Industriais. Podia ser remodelação,  mas o redactor preferiu remodulação, talvez porque sentisse o fetiche dos módulos, e não dos modelos. 

Há pessoas que são especialistas em matéria vaga e depois engenheiros de segunda. Há pessoas que o são concomitantemente, sendo que a matéria vaga é o português mal escrito. Se a minha pátria é a língua portuguesa, remodulação é a palavra-chave para o exílio das nações.

JdB 

25 fevereiro 2021

Duas Últimas

 

Podemos não gostar de Leonard Cohen, mas temos de reconhecer que estes dois versos There is a crack in everything / That's how the light gets in encerram em si uma grande sabedoria: é pela falha que entra a luz, pelo que devemos desconfiar de quem não tem falhas, de quem não abre uma fragilidade para que a luz entre.

JdB

24 fevereiro 2021

Testemunhos dos dias que correm


Faz mais ou menos cinco meses que descobrimos o cancro da Camila. Muita coisa mudou, mas o nosso olhar sobre todos os acontecimento permaneceu o mesmo. Não, não há truque e muito menos se trata de ignorar o que sentimos. Existe o medo e tantos outros sentimentos comuns à nossa natureza. O segredo está, talvez, em permitir-se sentir, acolher o sentimento e desmistificá-lo, tentando canalizá-lo da melhor forma. Aceitar, mas não acomodar. Não ter pressa, mas ter rumo. A nossa vida não é mais ou menos feliz do que qualquer outra. A verdade é que tudo na vida está na forma como encaramos os acontecimentos. Temos um destino, mas também um desígnio. Esse é o nosso livre arbítrio e os frutos que colhemos advêm dessas escolhas, mais do que daquilo que nos aconteceu sem que pudéssemos mudá-lo. Deus divide connosco todas as decisões da nossa história. Por mais que estes parágrafos da nossa vida sejam dolorosos, escolhemos escrevê-los com amor. Esta é a cura. Para tudo.

DLA

23 fevereiro 2021

Da música coral religiosa e do bailado

Se fecharmos os olhos e tivermos uma noção do que estamos a ouvir, facilmente perceberemos que é Bach - Paixão Segundo São Mateus. Se abrirmos os olhos mas não ouvirmos o que estamos a ouvir, facilmente perceberemos que é uma coreografia de dança. A estranheza, no que a mim diz respeito, é ouvirmos e vermos em simultâneo. O que significa aquela coreografia. O que disse o coreógrafo ao corpo de baile quando Bach "fala" do Monte das Oliveiras, ou da traição de Pedro ou da crucificação? O que significam os gestos, o que traduzem os gestos.

Há no bailado um grande mistério - talvez devido à minha ignorância. Será a única forma de arte em que nada fica registado: não há uma pauta, um quadro, uma tabela, uma folha de papel. O que se diz à bailarina para ela baixar o braço daquela forma, menear a cabeça daquela forma, correr para ali ou para acolá a fazer o que quer que seja às pernas ou às mãos. Um mistério... Mas gosto.

JdB

22 fevereiro 2021

Duas Últimas

Gosto de António dos Santos, penso que já o disse aqui há bastante tempo. Um dia "apresentei-o" aos meus filhos que, penso, terão tido o que poderia ser um refluxo gástrico de tão espantados ficaram com um homem cuja batida da viola é sempre igual, com aquela voz grave e dolente que afugenta os mais precavidos. 

António dos Santos cantou versos muito bonitos, nomeadamente de Mascarenhas Barreto. Não são esses que trago. O que apresento ao meus fiéis leitores tem letra (e música) dele. Porquê este? Talvez para que André Ventura perceba que a guerra aos ciganos (parece que agora se diz 'comunidade cigana') já provocou muita infelicidade, nomeadamente ao malogrado fadista. Basta atentar na letra.

JdB


 

Ilusão Perdida

Amei uma vez na vida,
Mas não pude ser amado
Por uma formosa cigana;
Era de raça diferente,
Diferente a sua cor
E tinha uma lei tirana.

Disse-me um dia, a chorar,
Essa linda ciganita:
"Perdoa-me, meu amor!
Jamais poderei ser tua
Porque só posso casar
Com alguém da minha cor!"

A soluçar, concordei,
Enchi-lhe a boca de beijos,
Foi a nossa despedida;
E com a raiva nos olhos
Vi partir a caravana
Que levava a minha vida.

Não mais a tornei a ver,
Não sei se vive, se é morta,
Se anda pelo mundo fora;
Se lá longe, muito longe,
Me tenta agora esquecer
Como eu a recordo agora.

Nunca mais amei no mundo
A ninguém um só momento;
Já pouco me importa a vida:
Sou monge, um vagabundo
Encerrado no convento
Da minha ilusão perdida.


21 fevereiro 2021

I Domingo do Tempo da Quaresma

EVANGELHO - Mc 1,12-15

Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
Jesus esteve no deserto quarenta dias
e era tentado por Satanás.
Vivia com os animais selvagens
e os Anjos serviam-n'O.
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo
e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

19 fevereiro 2021

Das videoconferências

Assumi responsabilidades internacionais numa ONG a meio da pandemia - Outubro de 2020. Em condições normais o Board desta associação reunir-se-ia duas vezes por ano: em Outubro, por alturas do congresso mundial, e a meio do ano. O resto do trabalho inerente à função (contactos diversos) seria feito através da troca de e-mails. 

O confinamento veio alterar a dinâmica por completo. De duas reuniões presenciais por ano, o Board passou a ter seis virtuais, obviamente mais pequenas. A troca de emails não cessou, mas as videoconferências aumentaram exponencialmente. Em boa verdade não aumentaram - começaram a existir; de uma por ano, talvez (via Skype) passei para cinco ou seis por semana. Reuniões com 1 pessoa, com 5 ou com 10, que, como já aqui mencionei, podem estar na Malásia, no Chile, na Califórnia  - ou na Quinta da Marinha. 

Apesar da ocupação do tempo, estas videoconferências são uma vantagem. A título de exemplo, se não existisse esta realidade não poderia desenvolver um trabalho que tenho entre mãos com colegas do Brasil, e que é muito importante. A dinâmica perder-se-ia na troca de mails, nas respostas para todos ou que não foram para todas, na dificuldade de expressão escrita de algumas pessoas. Num instante se marca um zoom e, numa hora, decidem-se coisas que requerem rapidez, foco, atenção. Por outro lado, o zoom é, apesar de tudo, menos impessoal: na maior parte das vezes vemos as pessoas, colamos um nome a um rosto. Tudo o resto se perde: o contacto físico, a linguagem não verbal, a decifração da reacção das pessoas a isto ou àquilo.

Esta semana, por ocasião do Dia Internacional da Criança com Cancro, fui convidado para um webinar organizado pela OMS. Pediram-me para falar em inglês durante 2,5 minutos - no máximo 3! O texto que escrevi ocupava uma página e meia de Word, não mais do que isso. Ontem, em conversa com um amigo que foi quadro superior da Unilever, manifestei-lhe o meu stress, o meu cansaço, e disse-lhe (sem ter uma razão muito óbvia por trás) que preferia ter falado para as mesmas 300 pessoas, mas num auditório.  Disse-me que um actual quadro muito sénior da Unilever sente o mesmo: depois de ter reuniões via zoom (ou plataforma semelhante) com colegas / colaboradores fica exausto. 

Há uns dias falei nestas minhas videoconferências e questionei-me sobre o que estou a perder com esta profusão de encontros virtuais. Talvez esteja a perder resistência, força anímica, sei lá eu. Percebi que o problema não é só o facto de serem em inglês, o que exige um esforço adicional a quem não domina a língua. Há qualquer coisa que nos suga a energia.

JdB     

 

18 fevereiro 2021

Textos dos dias que correm

A imagem do «caminho»: entre a cultura e a fé

A inspiradora imagem do caminho, também presente na Bíblia, embebeu de forma marcante a cultura e encheu as páginas das literaturas pré-clássicas e clássicas, até se tornar omnipresente na literatura ocidental. É compreensível que assim tenha acontecido: ela “diz” com eficácia o crescimento do ser humano ao longo da vida, nas limitações e nas potencialidades, na procura do bem desejado ou perdido.

Na segunda parte da epopeia de Gilgameš (versão clássica entre 1300 e 1000 a.C.), o mítico protagonista, «aquele que viu o profundo», depois de ter visto o seu amigo a morrer, empreende uma longa e dramática viagem em demanda da vida perpétua sem morte (da Tabuinha IX em diante): «qual o porquê da tua viagem?» – pergunta-lhe o homem-escorpião (IX,55-60). Para chegar ao imortal sobrevivente do dilúvio, teve de fazer uma viagem nas vísceras da terra. Chegado à ilha dos imortalizados e tendo reprovado em provas sucessivas para alcançar a imortalidade, é-lhe dada a oportunidade de comer da planta do rejuvenescimento, protegida por espinhos no fundo do mar. Consegue trazê-la para terra, mas uma serpente come-lha, deixando-o a chorar inconsolável. Ao fim, «o homem que queria vencer a morte» caminha para a sua gloriosa cidade de Uruk, convertido a uma visão nova da vida, que aceita a morte como fazendo parte dela e dando-lhe sentido. Que significa peregrinar pela vida com a permanente consciência da inevitável morte? “Só os deuses habitam para sempre com Šamaš [o deus Sol]… Os humanos têm os seus dias contados; todos os seus empreendimentos não passam de vento” (Tabuinha de Yale, 140-142). A outro nível, a ênfase passa da procura da vida para a procura em si, com as respetivas consequências: a transfiguração interior, psicológica e espiritual do ‘procurador’.

Na Odisseia de Homero (séc. VIII a.C.), viagem de Ulisses desde Troia destruída até à sua querida ilha natal de Ítaca, o leitor faz o caminho interior do ser humano à procura de si próprio. O Ulisses que, através de motivos míticos, regressa às suas origens, às suas raízes, é o ser humano a regressar à sua identidade, à consciência das suas capacidades mas também da sua fragilidade e radical finitude. A Odisseia é um poema sobre a essência da humanidade, um périplo empolgante através dos sentimentos humanos mais profundos que suscita enlevo e comoção: os perigos e sofrimentos que espreitam como “castigo” dos deuses a cada esquina da vida por terra e por mar, a fidelidade inabalável – a de Ulisses a Penélope e a de Penélope ao seu querido esposo Ulisses durante a ausência do guerreiro por vinte anos, desfazendo de noite a teia que tecia de dia, iludindo assim os muitos pretendentes da sua mão –, a refinada hospitalidade gratuita e magnânima em casa de Ulisses, a franca lisura para com os estrangeiros que Ulisses vai encontrando e que eles vão acolhendo ao longo da viagem, a saudade da mulher e do filho que atormentava o inconsolável Ulisses, esquecido dos amores de uma deusa que lhe queria oferecer a imortalidade e passando os dias banhado em lágrimas a olhar para o mar, a visão da constante presença e intervenção dos deuses na história como guias e protetores dos humanos, a inspiração do humano no divino, o frequente diálogo com o divino através da invocação dos deuses, a procura dramática da liberdade e dos valores humanos, o instinto de sobrevivência fugindo à morte nas provas mais duras e menos esperadas… Por falar tão apelativamente dos sentimentos humanos no desenrolar de uma viagem épica maravilhosamente narrada, «a Odisseia homérica é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência terá exercido, ao longo dos tempos, no imaginário ocidental» (F. LOURENÇO, “Introdução” a HOMERO, Odisseia, Lisboa 2003, p. 11). Tão dominante é o tema do caminho na Odisseia que, a um dado momento, à viagem de Ulisses se sobrepõe a viagem empreendida pelo filho Telémaco, entendida como prova de coragem heroica e como crescimento pessoal: sai da rica casa à procura do saudoso pai entre estrangeiros, na esperança de que esteja vivo. O pai viaja ao encontro da mulher e do filho. O filho viaja em busca do pai.

Outra viagem mítica “à procura”, descreve-a As Argonáuticas, de Apolónio de Rodes (séc. III a.C.; mas há outras versões), a única obra épica antes da Eneida que poderia comparar-se com a de Homero em extensão e conteúdos, um dos mitos gregos mais célebres, celebrando o valor, a honra, o amor, o fracasso... (a sua importância emerge também da referência que Dante lhe faz na Divina Commedia, como faz à Odisseia e à Eneida). Tendo-se tornado adulto, Jasão volta ao país natal a reclamar do tio Pélias o trono real usurpado ao pai e a que tinha direito. Pélias condicionou a cedência do trono à conquista do velo de ouro (supondo que Jasão pereceria nessa missão). Jasão, porém, acompanhado dos heróis Argonautas (entre os quais, Hércules, Teseu, Orfeu…), parte numa viagem a bordo da nave Argo em busca do velo de ouro, que tinha o poder de curar todas as feridas. Era ciosamente guardado pelo terrível rei Eetes na Cólquida. Lá chegado depois de muitas aventuras, sente o rei disposto a ceder-lho, com a condição de superar três difíceis provas. Supera-as com a ajuda de Medeia, filha do rei e perita em artes mágicas, que, atraiçoando o pai, se enamorou de Jasão por intercessão do deus do amor, Eros. A superação da terceira prova consistiu em adormecer o dragão que guardava o velo de ouro no bosque sagrado. Na posse do mítico tesouro, foge a bordo da Argo com Medeia, enfrentando os perigos do mar. Porque o rei vai no encalço deles, Medeia mata o pequeno irmão para distrair e demorar o pai. Vingando esse mau comportamento dos dois enamorados, Zeus desencadeia violentas tempestades na rota da nave, que se extravia. O resto da vida de Jasão é triste, porque, enamorando-se de outra mulher, atrai sobre si as iras de Medeia: morre tragicamente esmagado por uma trave da nave a arruinar-se.

O mito do velo de ouro pode ilustrar a procura falhada: quem procura nem sempre alcança o melhor, mas pode ser encontrado. O velo de ouro está dependurado de uma árvore sagrada, símbolo de vida, e vigiado por um dragão, símbolo de forças adversas. Nesta procura, Jasão vence-as. E, se o ouro simboliza o sublime sagrado, o objetivo simbólico da empresa seria a conquista da força de espírito e da pureza, significada pela Argo, Luzente, Veloz. Mas o risco de transformar a riqueza do tesouro numa condição para aceder ao trono põe em guarda o leitor contra intenções não genuínas. Elas aparecem sancionadas com o castigo divino, pois quebravam o equilíbrio cósmico e eram um atentado à vida humana.

Na Eneida, o caminho épico do herói Eneias – que, tendo «padecido guerra e trabalhos mil» e tendo partido de Tróia, trouxe para o Lácio os deuses ancestrais e alcançou as margens do Tibre, onde fundou a gloriosa cidade de Roma, depois de ter percorrido como estrangeiro o Campo das Lágrimas e os Campos Elísios – aparece como o fio condutor dos combates e da dor, dos encontros e desencontros, das contrariedades e da glória do ser humano na procura da realização pessoal.

Na Divina Commedia, de Dante (†1321), a história poética de uma viagem situada depois da morte, através não do espaço mas do ‘tempo sem tempo’, em que o autor se torna ator a viajar no Além – descendo ao Inferno (o seu Averno, referido na Eneida), passando pelo Purgatório e subindo até ao Paraíso, as realidades últimas, definitivas (os novíssimos) – quer ser metáfora do caminho da humanidade no Aquém do tempo histórico. Para a viagem no mais Além, deixa-se inspirar na Odisseia e na Eneida. Viagem longa, dura o tempo da procura de si próprio, na sua geografia invisível, interior, de ser humano. É um caminho de conversão, o grande caminho da descoberta do significado íntimo da existência: na mudança que suscita está o valor da viagem. É uma releitura da vida para compreender que o destino do ser humano e as suas potencialidades amadurecem na coragem de ir ao encontro daquilo em que se crê.

Também Dante, poeta da viagem, exilado como estrangeiro, encaixa na sua viagem outra viagem, a de Ulisses, desejando que a sua atualize e complete a de Ulisses. A de Dante quer ir para além dos limites postos ao ser humano oferecendo-lhe um fim feliz, com a visão – no termo do itinerário, no Paraíso – do sumo bem, a visão da imagem do homem verdadeiro, Jesus Cristo, aquele que realiza plenamente a natureza humana e desvela o ser humano a si próprio: a vida aparece como o tempo que lhe é dado para alcançar a verdadeira imagem de si. É uma visão que permite conhecer a vida ao nível mais profundo e caminhar para a plenitude que chama. A de Dante é a viagem do peregrino que se reconhece limitado para o homem que encontra a plenitude em Cristo: é a experiência do «trans-humanar», do ir para além do humano sem transgredir; é a vitória do homem sobre a sua impotência.

O contemporâneo Fernão Mendes Pinto (nascido em 1510), ao legar-nos a sua Peregrinação, o mais interessante livro de viagens do século XVI português e um dos mais interessantes da literatura mundial, sugere aquilo que o caminho supõe de busca, de provas ou provações, de aquisição e de partilha de conhecimentos com povos estrangeiros. Narrar a vida no interior de uma viagem era contemplar a vida como narrativa, era um modo de caminhar desafiando a identificação entre o «decurso» e o «discurso» da vida.

Também os clássicos místicos cristãos recorreram abundantemente à imagem do caminho para exprimir a convicção de que a vida humana faz sentido enquanto caminha para a transcendência e para a união com Deus: S. Teresa de Jesus (1515-1582) escreveu o Caminho de perfeição a ser percorrido pelas Irmãs em acolhimento mútuo no convento de Ávila; e S. Teresa do Menino Jesus falava do «caminho da infância espiritual».

Outro contemporâneo de Teresa de Ávila e de João da Cruz, Miguel de Cervantes (1547-1616), «o génio máximo da literatura universal», viveu com esses santos os fulgores da grandeza do século de ouro espanhol e plasmou os seus ideais e triunfos no âmbito de uma viagem do passado para o presente, na figura de Don Quijote, considerado um dos inseparáveis companheiros de viagem da humanidade, que faz parte do espírito humano, que vive com ele e só com ele morrerá. Também nele encontramos a busca do absoluto que está no suposto relativo e implica tanto de risco como de enriquecimento da alma.

Além destes mais conhecidos, também os célebres viajantes na Idade Média – desde Marco Pólo e seus familiares para o longínquo Oriente até aos milhões de peregrinos anónimos a Jerusalém, a Roma e a Santiago de Compostela – percorreram com fervor trilhos que cansavam o corpo mas descansavam, renovavam e purificavam a alma. Viajar ao encontro de novas pessoas, de outros povos, de outras culturas, com outros conhecimentos, costumes e ideias, é das atividades que torna a pessoa mais inclusiva, capaz de integrar, compreender, aceitar e acolher os outros na sua diversidade e diferença relativamente a nós. Quem viaja predispõe-se para o encontro, para o intercâmbio de ideias e de vida com o outro, aberto àquilo que de admirável o espera ao longo do caminho.


Armindo dos Santos Vaz

Biblista, professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

Publicado pelo SNPC em 17.02.2021

17 fevereiro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 HERÓIS QUASE ANÓNIMOS  

A partir de 1938, o Terceiro Reich assumiu uma ferocidade insaciável, conquistando a Checoslováquia, a Áustria, a Polónia, até que a França e o Reino Unido declararam-lhe guerra. Assim estalava o segundo conflito mundial. 

Logo que os tambores da guerra começaram a fazer estremecer a Europa, a maioria tentou resguardar-se, como pôde. Apenas uns poucos, especialmente conscientes do perigo que Hitler representava, dispuseram-se a proteger os alvos mais vulneráveis dos invasores nazis. Nessa minoria generosa e corajosa estiveram britânicos e canadianos, que fundaram a agremiação British Committee for Refugees from Czechoslovakia. Montaram o seu pequeno quartel-general numa mesa da sala de jantar de um hotel da Praça Venceslau, no centro de Praga, para resgatar o maior número de crianças judias. Aproveitaram a emenda passada no Parlamento inglês, logo a seguir à Noite de Cristal (Novembro de 1938), que autorizava a entrada de refugiados judeus até aos 17 anos de idade, sob condição de terem uma família de acolhimento e depositarem uma caução de 50£ por criança/adolescente, para viabilizar o seu o regresso posterior à Checoslováquia. De certo modo, este relevar-se-ia o pormenor mais romântico da lei. 

Conhece-se melhor a história de um dos membros desse comité – Nicholas Winton (1909-2015) – pelo seu papel crucial a encontrar famílias para os pequenos refugiados. Nas homenagens e condecorações que se multiplicaram, depois de a sua história vir a lume, gostava de enaltecer os que tinham arriscado mais a vida naquela operação, permanecendo em Praga, mesmo depois de ser ocupada pelos nazis. Brincava com o facto de nem sequer ter conhecido a estação de comboios do coração da antiga Boémia. E nomeava quem entendia que fizera mais: «Chadwick did the more difficult and dangerous work after the Nazis invaded (...) he deserves all praise».

Nicholas W. (NW) descendia de judeus alemães, que se tinham mudado para Londres dois anos antes de ele nascer. Para facilitar a plena integração na nova pátria, tinham-se convertido aos cristianismo, baptizado os filhos e mudado o apelido germânico (Wertheim) para Winton. 

Terminados os estudos, NW fez carreira na banca e trabalhou na Bolsa de Londres, embora integrasse a ala esquerdista do Labour, crítica do sistema capitalista. Era também dos que se opunham ao pacifismo de Chamberlain, considerando-o inadequado para conter Hitler. 

Apesar das convicções políticas fortes, levava uma vida variada, com muito desporto, começando pela esgrima, onde era exímio. Só não entrou nos J.O., porque a guerra os suspendeu. Assim, em vésperas Natal de 1938, planeava ir esquiar para a Suíça, quando recebeu o pedido de uns amigos para ajudar a salvar crianças, em Praga. Rumou logo à capital checa, onde passou um mês atarefado na organização da viagem dos mais novos para as Ilhas Britânicas. A operação veio a ficar conhecida pela designação em língua alemã «Czech Kindertransport» (Transporte das Crianças), adivinhando-se que também terá ficado na memória das hostes germânicas. Neste filme de época, intitulado «Czech Jewish children evacuated via airplane (1939).webm» e gravado a 11 de janeiro de 1939, Winton aparece no final (2:39), de óculos, com uma criança ao colo. Indizível aquele adeus derradeiro, entre pais e filhos, sobressaindo o cuidado de muitas mães em não deixar ensombrar uma hora de esperança para os seus filhos com a dor tremenda da separação. A maioria daqueles pais desapareceria em Auschwitz:

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cb/Czech_Jewish_children_evacuated_via_airplane_%281939%29.webm

NW regressou a casa umas semanas antes de os nazis tomarem Praga. Mas continuou sempre a funcionar a partir de Londres, ajudado pela mãe, encarregando-se de arranjar famílias de acolhimento na Grã-Bretanha e por todo o Ocidente. Até a Roosevelt escreveu, implorando-lhe que os EUA também recebessem refugiados. Mas só a Suécia se juntou ao Reino Unido, naquele esforço. 

Entretanto, um núcleo de carolas do tal Comité continuou em Praga, reduzida a potência do Reich. As viagens passaram a clandestinas, mas só ficou em terra o grupo de 250 miúdos escalado para o comboio de 1 de setembro de 1939. Fora o último dia do Czech Kindertransport, pois a Grã-Bretanha passara a potência beligerante e toda a travessia até ao lado seguro do Canal da Mancha era bastante aventurosa. Um dos entraves tinha surgido nos Países Baixos, que depois da Kristallnacht passaram a impedir a circulação de refugiados judeus pelo seu território. Estranhamente, resolveram legislar no sentido inverso ao do Parlamento britânico, inclusive restituindo os fugitivos ao país de origem e esmerando-se no controle de fronteiras. Valeu a perícia da diplomacia britânica para contornar aquele escolho e permitir que os miúdos checos chegassem ao destino. 

Dos tais 250 miúdos, apeados no primeiro dia da Segunda Guerra, apenas 2 sobreviveram ao conflito, que fora especialmente mortífero em toda a Europa de Leste. A diferença é avassaladora, quando se compara com os 664 (outros contabilizam 669) miúdos, que NW ajudou a salvar. 

A sua boa acção de 1938-39 foi homenageada pela BBC, meio século depois, numa surpresa visionada nos ecrãs das Ilhas, em 1988. Começaram por o convidar para se sentar na plateia do concorrido programa «That’s Life». Mal sabia ele que o resto do auditório estava ali graças à sua generosidade dos tempos de juventude. Aquela multidão de desconhecidos – entre resgatados, filhos e netos –  dava corpo e sentido à longa lista de nomes checos registados num caderno seu, que a mulher descobrira no sótão da casa. Vários tinham-se tornado investigadores e gente prestigiada na sociedade inglesa(1). Eram, ali, um sinal vivo e gratificante do alcance concreto da sua azáfama, em contrarrelógio, antes de a Guerra eclodir: 

https://www.facebook.com/BBCArchive/videos/524868598192459



Talvez se aplique a NW a bonita expressão para quem faz um bem gratuita e abnegadamente, sem a mão direita saber o que fez a esquerda.  O mesmo se aplicará aos outros entusiastas do comité salvador, que tinham arriscado a vida numa capital onde pontificavam as temíveis SS.  Winton era o primeiro a lembrá-los, um a um: Trevor Chadwick, Doreen Warriner, Nicholas Stopford, Beatrice Wellington, Josephine Pike e Bill Barazetti. 

Toda a acção de NW e dos seus amigos, bem como a sua motivação humanitária, são um bom mote para uma Quaresma mais verdadeira: «Anything that is not actually impossible can be done, if one really sets one’s mind to do it and is determined that it shall be done».

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_______________________
(1)  Lista que consta nos anais britânicos: «Leslie Baruch Brent (1925–2019), immunologist who did groundbreaking work on immune tolerance; Alf Dubs, Baron Dubs (born 1932), British Labour Party politician and former Member of Parliament; Heini Halberstam (1926–2014), mathematician; Renata Laxova (1931–2020), paediatric geneticist;  Isi Metzstein (1928–2012), modernist architect; Gerda Mayer (born 1927), poet;  Karel Reisz (1926–2002), filmmaker; Joe Schlesinger (1928–2019), Canadian television journalist and author; e Yitzchok Tuvia Weiss (born 1926), Chief Rabbi of the Edah HaChareidis in Jerusalem.»


15 fevereiro 2021

Textos dos dias que correm

Fuga do Ódio

Queres amar a vida e não te deixam. Tens de respirar o ódio, o insulto, o bafo azedo do vexame e isso faz-te mal. Emanações de um pântano de febres, de esgotos a céu aberto com o seu fedor de vómito. Um dos tormentos do inferno medievo era esse, o fedor - a essência da podridão. E o que te fazem respirar de uma flor, do aroma de existires? Porque é que o ódio é assim fundamental para os teus parceiros em humanidade existirem? Têm uma estrutura diferente de serem, Deus fabricou-os num momento de mau génio. Vale a pena irritares-te contra a existência da víbora ou do touro?

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

***

A Vergonha e a Injustiça Não Existem na Natureza

A vergonha não existe na natureza. Os animais sabem a lei: a força, a força, a força. Quem é fraco cai e faz o que o forte quer. A inundação, as chuvas, o mamífero mais pesado e mais rápido e o mamífero pequeno. Os primatas, os répteis, os peixes maiores e os mais minúsculos, a cascata: já viste algum animal cair?, não há a mais breve compaixão entre os animais e a água, o mar engoliu milhares e milhares de cães desde o início do mundo. Não há a mais breve compaixão entre a água e as plantas, entre a terra que desaba e os pequenos animais acabados de nascer. A natureza avança com o que é forte e a cidade avança com o que é forte: qual a dúvida? Queres o quê?
Não há animais injustos, não sejas imbecil. Não há inundações injustas ou desabamentos da maldade. A injustiça não faz parte dos elementos da natureza, um cão sim, e uma árvore e a água enorme, mas a injustiça não. Se a injustiça se fizesse organismo: coisa que pode morrer, então, sim, faria parte da natureza.


Gonçalo M. Tavares, in "Um Homem: Klaus Klump"

14 fevereiro 2021

VI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mc 1 ,40-45

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
veio ter com Jesus um leproso.
Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
«Se quiseres, podes curar-me».
Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
«Quero: fica limpo».
No mesmo instante o deixou a lepra
e ele ficou limpo.
Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
«Não digas nada a ninguém,
mas vai mostrar-te ao sacerdote
e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
para lhes servir de testemunho».
Ele, porém, logo que partiu,
começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
em nenhuma cidade.
Ficava fora, em lugares desertos,
e vinham ter com Ele de toda a parte.

11 fevereiro 2021

O fado, canção de malditos

Já aqui escrevi sobre fado, sobre o que é fado e já não é, num paralelismo com o pastel de nata: se tiver queijo da serra ainda é pastel de nata? E o que é o fado (tra)vestido de novas sonoridades? E o que é cozido à portuguesa com maionese?

Há uma idade certa para se cantar fado? Há uma idade certa para se cantarem algumas letras de fado? Se o fado é confissão, uma jovem de 19 anos e debutante no fado pode cantar (copio a graça do Herman) ai quem me dera / ter outra vez 20 anos?  E um jovem rapazinho concorrente ao grande prémio do fado pode cantar não passes com ela à minha rua? Poder cantar, pode. É fado? Não sei. 

Alberto Janes escreveu letra e música do Foi Deus, tornado famoso (não gosto de imortalizado) pela Amália, a quem o fado-canção foi oferecido. Ouvir o fado é perceber que, como todos os fados, talvez, a letra é de adulto - não sei, não sabe ninguém / porque canto o fado / neste tom magoado / de dor e de pranto... Ouvir Ângelo Freire a cantá-lo, na sua voz juvenil de cantor de sequim d'ouro, ou certame semelhante, é uma experiência bizarra. É fado? Sei lá eu... Se é, então o fado é apenas um género musical.

JdB

10 fevereiro 2021

Moleskine

Antiguidades

Tenho netos a brincar em casa. Um deles vai à casa de banho e recebe instruções básicas, como seja lavar as mãos e puxar o autoclismo. Tem 4 anos, pelo que o domínio da língua portuguesa é muito básico. Um dia mais tarde, quando perceber o que é uma metáfora ou uma sinédoque, vai estranhar que algumas expressões querem dizer o que querem e o seu contrário. Em bom rigor, já não se puxa o autoclismo, mas empurra-se (se assim se pode dizer) o autoclismo. Não se tracciona, pressiona-se.  Um dia os meus netos dir-me-ão que, para efeitos de casa de banho,  o português tem muito a desejar.

***

Militares

Oiço o novo coordenador do Plano de Vacinação, o vice-almirante Gouveia e Melo. Por motivos que não vêm ao caso, tive várias reuniões com o seu antecessor, Dr. Francisco Ramos, enquanto Presidente do Conselho de Administração do IPO de Lisboa. Era uma pessoa cordata, educada, que suscitava respeito e consideração. Para quem, como eu, viveu o 25 de Abril de um certo lado, os militares não deixaram saudades. Não obstante tudo o aduzido acima, ouvir um militar a falar sobre este tema dá-me uma certa segurança. Para este efeito, há, num militar, uma certa credibilidade que não encontro num civil. No primeiro sinto planeamento, normas, factos, números, disciplina; no segundo vejo partido, política,  a voz do dono, clientela. Mesmo que esteja a ser injusto numa e noutra apreciação.

***

Modernidades

Falo com alguém que me diz: Sabe... eu odeio a era media communication. Fascina-me até certo ponto e depois entedia-me. Estar a falar com um jovem da Polónia e com uma senhora na Jamaica ao mesmo tempo que consulto informação relevante na net... Respondo-lhe que, no meu voluntariado internacional, sou protagonista de experiências interessantes. E digo-lhe: há algo nesta parte da minha vida que me fascina: conversas com o Brasil, África do Sul, Malásia, China ou Chile, tudo em quase simultâneo... De lá vem a pergunta a que não sei ainda responder: mas a que preço? Ainda não sei, de facto. Há um preço a pagar nesta globalização das comunicações? 

JdB

09 fevereiro 2021

Textos dos dias que correm

Boas Donas de Casa

Detesto as boas donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer dos modos são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas às suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar, a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras a fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada. Isto não pode continuar assim, isto tem de acabar, olá se tem! O que a vida já correu e elas sem a verem. Sem darem por nada. Ficaram sozinhas e não se dão conta. O marido morreu sem nunca ali ter estado, os filhos fugiram para se casar com outras donas de casa que estavam escondidas dentro de raparigas bonitas, alegres e apaixonadas. E a vida continua. Olhe que isto não pode continuar assim, olhe que isto tem de acabar, olá se tem. E os filhos dos filhos a pensarem em fugir e a sonharem com outras raparigas apaixonadas...


Maria Judite de Carvalho, in 'Tanta Gente, Mariana'

08 fevereiro 2021

Textos dos dias que correm

A Minha Família é a Minha Casa

A solidão absoluta é não ter ninguém a quem dizer um simples: “tenho vontade de chorar”. Não precisamos de muito para viver bem – para ser feliz basta uma família e pouco mais.
A família é a casa e a paz. O refúgio onde uma vontade de chorar não é motivo de julgamento, apenas e só uma necessidade súbita de... família. De um equilíbrio para o qual o outro é essencial... assim também se passa com a vontade de sorrir que, em família, se contagia apenas pelo olhar.
Nos dias de hoje vai sendo cada vez mais difícil encontrar gente capaz de ser família. Os egoísmos abundam e cultiva-se, sozinho, o individual. Como se não houvesse espaço para o amor. Dizem que amar é arriscado, que é coisa de loucos...
Todos temos sentimentos mais profundos. Cada um de nós é uma unidade, mas o que somos passa por sermos mais do que um. Parte de unidades maiores. Estamos com quem amamos e quem amamos também está, de alguma forma, connosco. O amor é o que existe entre nós e nos enlaça os sentimentos mais profundos. Onde uma vontade de chorar é um sinal de que há algo em mim que é maior do que eu... por vezes, nem preciso de chorar.... apenas a vontade me indica o caminho da humildade e do amor. Sozinho não consigo chegar a ser eu...
Uma verdadeira família é simples. É o lugar onde todos amam e protegem a intimidade de cada um. Ninguém é de uma família à qual não se entrega. Mas não é fácil, nunca. É preciso ser forte o suficiente para dizer não a um conjunto enorme de coisas que parecem muito valiosas, mas que não passam de ocas aparências de valor.
Há muita gente que gosta de complicar para fugir ao que é simples. Para que me serve um palácio se nele a minha solidão se faz ainda maior? Quantos desistem de lutar pelo amor com a desculpa de que o preço é alto e o prémio pode afinal não valer o esforço? Quantas vezes a falta de amor é vista como paz?
A família é algo simples – puro – mas muitíssimo difícil de alcançar. Implica a renúncia constante aos artifícios do fácil e do imediato. Exige que nos concentremos num caminho longo que acreditamos (sem grandes provas) que é o único que nos pode elevar e levar ao céu.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama.
A paz resulta de um equilíbrio de elementos diferentes, com talentos e perspetivas distintos. Não através de um esforço de anulação do que é único de cada um, mas precisamente pela riqueza de o orientar rumo a um fim conjunto e harmonioso. Uma espécie de enriquecimento recíproco dos contrários. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim.
A minha casa é o lugar onde eu sou o outro a quem alguém pode expressar o seu “tenho vontade de chorar” sem que eu trace juízos de qualquer espécie, e que lhe faça sentir com o meu silêncio, dedicação e presença que a sua vontade já não é só sua... mas minha também.
A minha família é a minha casa. Até podemos ser apenas dois... mas é aí, e só aí, que posso ser feliz. Longe de casa estou sempre a caminho. O meu coração não descansa senão nos braços de quem tem vontade de sorrir e de chorar comigo.

José Luís Nunes Martins, in 'Amor, Silêncios e Tempestades'

07 fevereiro 2021

V Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 1, 29-39

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus saiu da sinagoga
e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama com febre
e logo Lhe falaram dela.
Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
Jesus curou muitas pessoas,
que eram atormentadas por várias doenças,
e expulsou muitos demónios.
Mas não deixava que os demónios falassem,
porque sabiam qual Ele era.
De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
Retirou-Se para um sítio ermo
e aí começou a orar.
Simão e os companheiros foram à procura d'Ele
e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
«Todos Te procuram».
Ele respondeu-lhes:
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
a fim de pregar aí também,
porque foi para isso que Eu vim».
E foi por toda a Galileia,
pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

04 fevereiro 2021

Da poesia e do mapa mental

Num ensaio intitulado The Internalization of Quest-Romance, publicado pela primeira vez em 1969, Harold Bloom, talvez o mais famoso crítico literário do séc. XX, afirmou o seguinte (e traduzo livremente):

A maior satisfação em ler Blake or Wordsworth advém da realização de novas escalas de tensão na mente, mas, tanto Blake como Wordsworth acreditavam, ainda que de forma diferente, que os prazeres da poesia eram apenas preliminares, no sentido de que os poemas eram, em última análise, andaimes para uma visão mais imaginativa, não fins em si próprios. Penso que aquilo que Blake e Wordsworth fazem pelos seus leitores, ou podem fazer, aproxima-se do que Freud faz, ou pode fazer, pelos seus, que é prover, quer um mapa mental, quer uma profunda fé de que o mapa pode ter uma utilização salvadora.  

No seu poema Isto, Fernando Pessoa usa esta ideia de "andaime" (sublinhados meus): 

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Não me interessa tanto a ideia do andaime, mas a ideia de mapa mental, de Freud, de utilização salvadora (também poderia traduzir-se por utilização redentora). Interessa-me a ideia de que fazer ou ler poesia é uma espécie de psicoterapia, de ferramenta com que se pacificam desordens emocionais ou se restabelecem desequilíbrios.  

John Stuart Mill nasceu em 1806. Em 1809 (não 1819), começou a aprender grego. Aos sete anos já tinha lido maior parte dos diálogos de Platão. No ano seguinte começaria com o latim, tendo, entretanto, digerido Heródoto, Xenofonte, Diógenes Laércio, e parte de Luciano. Entre os oito e os doze acabou Virgílio, Horácio, Lívio, Salústio, Ovídio, Terêncio, Lucrécio, Aristóteles, Sófocles e Aristófanes; dominava a geometria, a álgebra e o cálculo diferencial; já tinha escrito uma história romana, um resumo da História Universal Antiga, uma história da Holanda e alguns poemas. Teve uma espécie de esgotamento nervoso aos 20 anos. Diz-se que se curou lendo (também) Wordsworth, um poeta do romantismo inglês que falava do coração de uma forma séria; esse romantismo que se dizia ser uma terapia ilusória ou, segundo Freud, uma ilusão erótica. Para Mill não era: apaixonou-se por Harriet Taylor. A dor, como o amor, são sentimentos que vão enchendo o nosso eu interno. Em última análise, cita Bloom, o homem tem de começar a amar para não adoecer

Termino com Harold Bloom:

Freud pensava que mesmo o romance [leia-se poesia], com seus elementos lúdicos, terá começado provavelmente nalguma experiência real, cuja "forte impressão no escritor havia despertado a memória de uma experiência anterior, geralmente pertencente à infância, que desperta então um desejo que encontra uma realização na obra em questão, e em que elementos do acontecimento recente e da velha memória devem ser perceptíveis."

Nunca tive uma relação óbvia com a poesia; tive sempre um desejo muito grande de elaborar o meu mapa mental, de sossegar as minhas feridas internas. Tivesse eu lido Harold Bloom mais cedo e o meu "affair" com a poesia começaria mais cedo.

JdB 

03 fevereiro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 SÓ HOJE  

Na Primavera de 2020, mergulhados no primeiro confinamento, o Grupo empresarial espanhol LAR reuniu uma colecção de links de sítios e hobbies fantásticos, para ajudar a fazer cumprir o pedido «No salgas. Quédate en casa». Foi e mantém-se um autêntico LIFESTYLE CAURENTENA, divulgado generosamente em canal aberto.

Sucedem-se as dicas dos eventos online, que continuam na ordem do dia, começando pelos Museus espalhados em palácios daquele país que respira beleza por todos os poros – Itália, com Florença e Vaticano, à cabeça; segue-se Paris com o Louvre e o Museu d’Orsay; claro que o Hermitage também era incontornável; mais a Tate de Londres; o Prado, etc.  Seguem-se os concertos nas melhores salas do Ocidente, arrancando no Met de Nova Iorque. Depois, opções de teatro & dança em palcos conceituados, abrindo com a Broadway. Desfilam, de seguida, as viagens virtuais, sem a chatice da bagagem e dos aeroportos, nem o risco de contaminação nos aviões. Podem visitar-se parques naturais e resorts, a par de palácios lendários, como Versailles, ou ainda acompanhar o longo trilho na Muralha da China. Não falta um salto cósmico aos telescópios da NASA para repassar Marte a pente fino.  Acumulam-se, depois, os livros, as classes e as conferências com craques internacionais, a par dos sub-links para a ginástica (com várias especialidades na manutenção, no ioga, etc.), as línguas estrangeiras, a culinária, as aulas de música e de outras expressões artísticas. Houvesse tempo para tudo:


Bom, mas pode não apetecer fazer nada e soar irritante tanta actividade virtual, quando se está demasiado farto da (talvez até contra a) clausura forçada em casa. Então, pode recorrer-se ao zoom, chats, whatsapp e outras plataformas para continuar em linha com a família e os amigos. Claro que faz falta o contacto físico, a proximidade, sentir/reconhecer os cheiros da vida à nossa volta, que pertenciam à nossa boa rotina. Se o cansaço for demasiado, poderá ser útil ouvir a experiência de um prisioneiro das masmorras vietcongues, durante 13 anos, a maioria dos quais em celas onde mal cabia. Apesar de ter sido dado como morto, espantou o mundo quando saiu vivo e tranquilo da prisão, mantendo intacto o sentido de humor e a boa disposição de sempre! Durante essa pesada clausura, preocupara-se em nunca desesperar, em nunca ceder ao ódio para com os carcereiros e cuidar maximamente da sua saúde. Fazia a ginástica possível, aceitava a ração prisional, procurava entreter-se o melhor que podia, ancorado numa fé inquebrantável. Esta foi a vida aventurosa do Cardeal de Saigão – Van Thuan –, que partilhou os seus truques de sobrevivência numa entrevista dada ao pivot do programa noticioso norte-americano World Over [min. 11:07 a 34:07]. Na conclusão, há uma proposta leitura de um livro muito positivo sobre as dificuldades superadas uma-a-uma por aquele santo vietnamita – «Road of Hope»: 


Na cadência característica da sabedoria hindu, o indiano mestre de ioga conhecido pelos seus vídeos de meditação – Jaggi Vasudev, designado pelo título de “Sadhguru” – explica de outra forma a validade da atitude de Van Thuan, partindo da mesma premissa de que estar vivo é, por si só, um dom. Aliás, a prova cabal da impotência humana sobre a vida está na inevitabilidade da morte. O indiano recorre a soundbites elementares, mas fortes e fáceis de comprovar, para lembrar conclusões óbvias, embora comummente desvalorizadas: «If you’re alive, you must smile (…) You thing it’s a joke, that’s a problema…». Joga também com o suspense para aguçar o apetite do público: «Do this before you sleep and you will wake up like you are just born»:


Na mesma linha está o pedido realista e simples para recomeçar cada dia, escrito pelo Papa do Concílio Vaticano II. Servia-lhe de oração da manhã, ciente da dificuldade basilar do ser humano em aceitar e concentrar-se no presente, que é o único tempo de vida, entalado entre o que já passou e o que nem sabemos se virá. Intitula-se DECÁLOGO DA SERENIDADE e desfia dez passos para uma abordagem saudável e bem focada (como diríamos, hoje): 


«1-Só por hoje tratarei de viver exclusivamente este meu dia, sem querer resolver o problema da minha vida, todo de uma vez.

2-Só por hoje terei o máximo cuidado com o meu modo de tratar os outros: delicado nas minhas maneiras; não criticar ninguém, não pretenderei melhorar ou disciplinar ninguém senão a mim.

3-Só por hoje me sentirei feliz com a certeza de ter sido criado para ser feliz não só no outro mundo, mas também neste.

4-Só por hoje me adaptarei às circunstâncias, sem pretender que as circunstâncias se adaptem todas aos meus desejos.

5-Só por hoje dedicarei dez minutos do meu tempo a uma boa leitura, lembrando-me que assim como é preciso comer para sustentar o meu corpo, assim também a leitura é necessária para alimentar a vida da minha alma.

6-Só por hoje praticarei uma boa ação sem contá-la a ninguém.

7-Só por hoje farei uma coisa de que não gosto e se for ofendido nos meus sentimentos procurarei que ninguém o saiba.

8-Só por hoje me farei um programa bem completo do meu dia. Talvez não o execute perfeitamente, mas em todo o caso, vou fazê-lo. E me guardarei bem de duas calamidades: a pressa e a indecisão.

9-Só por hoje ficarei bem firme na fé de que a Divina Providência se ocupa de mim, mesmo se existisse somente eu no mundo, ainda que as circunstâncias manifestem o contrário.

10-Só por hoje não terei medo de nada. Em particular, não terei medo de saborear o que é belo e não terei medo de crer na bondade.»

Papa João XXIII


A conclusão é especialmente oportuna para a nossa época, crivada de pânicos e bloqueios perigosos, capazes de infernizar mais o presente e obnubilar a capacidade de decisão que deformará, em parte, o horizonte futuro. 

Ao menos, em nome do realismo, convém acordarmos com vontade de recuperar um mínimo de ânimo para podermos ser bafejados por alguma lucidez, no único tempo que existe na nossa vida: AGORA.  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

02 fevereiro 2021

Textos dos dias que correm

A Idade da Derrota Aceite

Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.
A minha margem de hesitação já não se alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro afiguram-se definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado helénico ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.
Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo.

Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'

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