«A pandemia parece o apocalipse, mas não o esqueçamos, todo o apocalipse é uma revelação»
Temos de reconhecer que esta pandemia apanha as nossas sociedades impreparadas. E não falo simplesmente ou sobretudo do ponto de vista sanitário; falo do ponto de vista da nossa experiência, e daquilo que a nossa memória pode extrair em nosso socorro; falo da nossa visão do mundo e da existência, do que julgamos distante ou longínquo e do que está efetivamente perto; do que temos por estritamente individual e do que é coletivo; do que consideramos que nos protege e do que nos expõe; do que temos, ou tínhamos, por adquirido ou como completamente improvável; da consciência da nossa real força e da nossa vulnerabilidade.
Não é fácil, repentinamente, constatar que sabemos de nós próprios e da vida muito menos do que pensávamos. Não é fácil despertar dentro de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro-viajante naquela novela de Franz Kafka.
Há uns dias, um escritor italiano recordava que a nossa geração tem sido uma juventude dourada na história europeia. Todas as coisas más, que, na verdade, nunca deixaram de acontecer, aconteciam, porém, lá longe, e aos outros. Era tragédias que assistíamos pela televisão e em diferido. E nem nos dávamos conta de que a perceção que construíamos das nossas sociedades - que no fundo correspondem à de uma humanidade co mais saúde, com maior esperança de vida, com mais segurança e proteção, melhor nutrida e vestida – assenta num contexto histórico que não é inabalável, ou, pelo menos, não é tão inabalável como nós pensávamos.
Porém, e pode parecer paradoxal, este tempo presente, este tempo de crise, com as dificuldades que todos conhecemos, representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos.
A experiência de confinamento, por exemplo, tem-nos ajudado a compreender talvez melhor o que significa ser, e ser de uma forma autêntica, radical, uma comunidade. Hoje, porventura, percebemos melhor que a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas. Todos estamos nas mãos uns dos outros. Todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia, de serviço e de relação. Todos esperam uns dos outros, e estimulam-se positivamente a que façam a sua parte. Todos contam. Como dizia o papa Francisco, naquele 27 de março de 2020 que não esqueceremos, na praça vazia de S. Pedro, ninguém se salva sozinho. Estamos todos no mesmo barco. Todos contam.
Os cuidados individuais que somos chamados a exercitar não são a expressão de uma fobia ou apenas do interesse próprio, como se destinados a nos enclausurar na torre de marfim do nosso ego. São sim a forma de colaborar para uma construção maior, de colocar os outros no centro, de sacrificar-se por eles, de privilegiar nesta hora o bem comum.
Esta é, de facto, a hora em que podemos reaprender tantas coisas. Podemos, por exemplo, reaprender a estar nas nossas casas, nas nossas famílias, mas também a sentir que depende de nós o nosso prédio, o nosso sítio, o nosso bairro, a nossa cidade, a nossa região, o nosso país, dando substância efetiva a palavras tantas vezes esvaziadas dela, como proximidade, vizinhança, humanidade, povo e cidadania.
Podemos, por exemplo, reaprender a utilizar as redes sociais não só como forma de divertimento e evasão, mas como canais de presença, de solicitude e de escuta. Sem nos tocarmos, podemos reaprender o valor da presença, da saudação, o estímulo do cumprimento, a incrível força que recebemos de um simples sorriso ou de um olhar.
Sem que os nossos braços se estendam na direção uns dos outros podemo-nos abraçar afetuosamente, como já o fazíamos, ou de um modo mais intenso ainda, transmitindo nesses abraços reinventados o encorajamento, a hospitalidade, a certeza de que ninguém será deixado só. Sem nos conhecermos, poderemos finalmente reaprender a não votar ninguém à indiferença ou tratar os nossos semelhantes como desconhecidos. Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano, o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.
Quantas coisas somos chamados a reaprender nestes dias. Mas a vida também é isso: transformação, despojamento, viragem, mudança, que depois pode também estar na origem do nosso reflorescimento. A vida também é este apelo que nos pode chegar através das formas mais exigentes e dolorosas, para que a escutemos melhor, e a escutemos até ao fim como provavelmente não o havíamos feito ainda. Porque a vida é o seu parto interminável, que é também o nosso. E é este incessante modelar do inacabado que a nossa gestação, a par da gestação do mundo, significam.
A pandemia parece o apocalipse, mas não o esqueçamos, todo o apocalipse é uma revelação. Esse é, aliás, o sentido do termo grego “apokálypsis”, que devemos entender e racionalizar não como uma enigmática catástrofe ou um castigo, mas literalmente como um descobrir, um retirar do véu.
Se de uma forma tão brusca, tão violenta, como aquela que o presente histórico vive, o véu que ocultava a nossa visão foi retirado, o que é que nós agora vemos? Penso que ficam a descoberto três coisas.
A primeira é aquela expressa pelos cientistas, que nos recordam que o número das epidemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não têm em conta o equilíbrio dos ecossistemas nem o respeito pela casa comum. Temos atuado no mundo como se estivéssemos sozinhos no planeta, e esquecemo-nos que partilhamos com as outras criaturas ambientes, potencialidades, e também uma palavra urgente para o século XXI aprofundar, conexão.
Em segundo lugar, os nossos estilos de vida no contexto deste mundo globalizado precisam de conversão. Construímos sociedades movidas pelo dogma do utilitarismo, que operam sobretudo como mercados massificados e exibem um desinvestimento dramático no humano. A corrida que nos impomos é produzir mais para consumir mais, e com isto desaprendemos o essencial da vida.
Esta pandemia ajuda-nos a compreender que precisamos de uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, com visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana nas usas diversas dimensões. Nestes longos meses, por exemplo, o heroico empenho dos profissionais de saúde, o exemplo do seu sentido de responsabilidade, dedicação e sacrifício inspiram o arranque de um tempo novo.
Embora não possamos esquecer aquilo que o romancista Albert Camus escreveu no seu romance “A peste”: o bacilo da peste pode chegar e ir embora sem que o coração do homem se modifique. E esse seria o verdadeiro desperdício, se nem uma pandemia nos ajudasse a mudar individualmente – porque as grandes mudanças são, antes de tudo, mudanças pessoais –, mas também coletivamente a nossa visão, o nosso coração.
A terceira coisa é que não nos chega agir por medo. Este não pode ser apenas o triunfo do medo, o triunfo da incerteza, do terror do que pode acontecer. Este é o tempo para semear, este é o tempo para relançar a nossa aliança com a vida. E por isso precisamos todos de nos unir e fortalecer para desenvolver apostas de confiança na vida, neste dom incalculável que a vida significa.
Aqui é preciso recordar que no meio da emergência que vivemos não podemos esquecer o testemunho humano altíssimo que nos está a ser dado por todos os cuidadores. Estes são os heróis desta história coletiva. E são milhões que de forma anónima, e com um extraordinário sentido de abnegação, continuaram a manter abertos os serviços e as fábricas, a continuar a produção alimentar e os bens indispensáveis, a vigiar pela segurança, pela saúde material e espiritual, e, claro, nos hospitais a combater por todos nós na primeira linha.
E são inúmeras as histórias, aparentemente minúsculas, mas verdadeiramente gigantes, que nestes meses tão difíceis nos estiveram a ser contadas.
Uma primeira história exemplar, que foi um ícone nas primeiras semanas da pandemia, foi a de uma imagem, contada sem palavras, e que mostra os bastidores de um hospital italiano onde primeiramente se sentiu o efeito devastador da pandemia. A fotografia era uma enfermeira adormecida com a cabeça em cima de um teclado do computador. Tem a máscara colocada no rosto, os braços caídos ao longo do corpo sem nenhum apoio. É uma imagem comovedora no seu desamparo extremo porque se percebe tudo. Há quantas horas aquela mulher não dormia? Que dimensão tem de ter o cansaço, que peso tem de atingir para fazer tombar assim um corpo?
Aquela comovente imagem mostra a atitude ética, e para lá disso, de amor que os profissionais de saúde nestes meses têm testemunhado, e que sem dúvida constitui uma grande reserva de humanidade para as nossas sociedades e um exemplo para todos os cidadãos.
Há já quem diga que a geração que está a viver o turbilhão desta pandemia olhará inevitavelmente para a vide de outra maneira. Esperemos que sim. Esperemos que sim. Que todos passemos a olhar parta a vida de outra maneira. Mas que na equação que porventura espoletará esta mudança de mentalidade não entre só o medo – que nos faz em circunstâncias históricas como esta relativizar tanta coisa e estar disponível para fazer tantos sacrifícios; que nós saibamos considerar, conservar e contar muitas vezes todas as histórias de amor que estão a ser escritas, a começar por esta multidão de profissionais e voluntários que aproxima esta nossa experiência hodierna de crise daquilo que a nossa humanidade tem de melhor.