07 abril 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Se há altura do ano boa para falar de Van Gogh é, com toda a certeza, na Páscoa! Não só por calhar na Primavera, quando a luz do sol é mais radiosa e alegre, como a pintou VG. Não só por a natureza ganhar os tons do amarelo vivo e do verde luzidio que povoam as suas telas. Não só por o céu ter o azul que encontramos na sua paleta cromática. Não só por ser a época das flores, um dos leit-motivs do pintor, que não conseguiu vender um único quadro em vida!!! E nem preciso de lembrar que hoje é dos mais cotados no mercado leiloeiro mundial !

É, sobretudo, por esta tela, talvez menos conhecida do seu badalado repertório e que é das minhas preferidas, por revelar tanto e tão bem a sua forma de olhar a vida, incrivelmente positiva, apesar do sofrimento avassalador e de um dia-a-dia crivado de dissabores:



Vincent Van Gogh (1853-1890), Ramos de amendoeiras em flor, Fevereiro de 1890, Rijksmuseum, Amsterdam.

Pasmo como um homem marcado pelo insucesso, a quase todos os níveis – afectivo e familiar, financeiro, profissional, ignorado artisticamente, torturado pela dor física, além de sofrer de perturbações psicossomáticas graves – tenha passado tanta luz, tanto horizonte para as suas telas! É das coisas que me toca.

E esta é das telas mais impactantes. Porque
nada na biografia que se lhe conhece, justifica celebrar tão gloriosamente a vida!

Quanto mais a olho e
tudo nela vibra como um verdadeiro hino à alegria – daquela profunda, que nasce na alma e permanece turquesa e luminosa apesar de todas as chuvas torrenciais – mais fico siderada. Há nela uma grandeza indizível. Os ramos de linhas curvas, que se entrelaçam harmoniosamente uns nos outros, ponteados a flores brancas e de rosa suave, transmitem uma vitalidade contagiante! São uma explosão de vida nova, revigorada, que me lembram o que se conta dos concertos finais, regidos, tentativamente, por Beethoven. Não apenas esta tela mas toda a obra do pintor holandês, que não conseguiu sair do atelier, se assemelham ao fiasco das últimas audições públicas de um compositor surdo, totalmente desencontrado da orquestra, à deriva. A própria estreia mundial, absoluta da Nona Sinfonia escapou, com muita peripécia e alguma balbúrdia, ao caos que tinham sido os ensaios da ópera “Fidelio”. Mesmo assim, a 7 de Maio de 1824, a Nona conheceu a luz do dia, com dois maestros em palco, um real (Michael Umlauf) e outro a reger virtualmente, entretido numa mímica entusiasmada, q.b. risível ! E se tudo correu, apesar de tudo, bastante bem, deveu-se ao mérito dos músicos, com ordens estritas para ignorar as indicações desfasadas de Beethoven. Terminado o concerto, reza a história que a soprano, Henriette Sontag, teve de lhe interromper a mímica e virá-lo para o público, que o aplaudia animadamente, enquanto o compositor continuava a dirigir músicos imaginários! É bem irónico que o autor da que ficou conhecida por Sinfonia da Alegria, pelo coro apoteótico do final triunfante, musicando a Ode à Alegria de Schiller, não a tenha podido ouvir, nem apreciar, nem sequer reger a orquestra, naquele Dia D, sob pena de tudo ter redundado num flop!

De facto, a vida tem destas surpresas, muito misteriosas, aparentemente paradoxais, que nos ultrapassam. Mas nem tudo o que começa mal, em termos públicos (porque a pauta composta por Beethoven é irrepreensível), está votado ao fracasso. Há uma consideração muito antiga, das orações judaicas, que reza assim: «
Quem semeia em lágrimas, recolhe com alegria

Parece-me curioso observar que nas encruzilhadas imprevistas da história, em que as gerações dos homens se entrelaçam como os ramos da amendoeira de Van Gogh, descobrimos flores novas e surpreendentes, que nos chegam de épocas muito recuadas. É fantástica esta amálgama enriquecedora de tempos. É extraordinária esta possibilidade de comunicação entre épocas distantes, esta fortuna imensa de herdar legados de gente de eras distantes, em que chegamos ao cúmulo de descobrir uma imensidão de fãs de VG (e de tantos outros! serão a maioria?) uns bons anos depois da sua morte! Do mesmo modo, também muitas das figuras de referência e de sucesso, em dado momento, são exclusivas da sua época, pertencem apenas à sua contemporaneidade, sem conseguirem entrar na memória das novas gerações. Falham o teste do tempo!

Não haverá aqui um eco daquela reflexão radical da história dos homens, em que a realização plena não se esgota no presente, devendo abrir-se ao futuro? Refiro-me ao célebre Sermão da Montanha, onde se nomeiam os que hoje choram e os que hoje são elogiados e assim já receberam, esgotaram, a sua consolação. Uma das chaves de leitura são os
diferentes tempos dos verbos, com variações muito significativas, em cada uma das proposições das Bem-Aventuranças: entre um presente de horizonte rasgado a projectar-se no futuro e uma actualidade que não descola do imediatismo, acabando amortalhada no passado (Lc. 6, 20-26). É que o tempo é sempre implacável com as aparências

Retomando Van Gogh, há uns anos, num voo da KLM, a revista de bordo tinha um artigo empolgante sobre uma doença ligada ao ouvido médio e que afecta a capacidade de socialização dos pacientes, além de outras consequências nefastas. E os investigadores eram unânimes em diagnosticá-la, postumamente, em VG, pelos inúmeros comportamentos que estão registados, a começar pelo corte da orelha, considerando-o inteiramente explicável, para aliviar a pressão insuportável provocada pelo tal síndrome! O local preciso do golpe, pouco comum, coincide com a zona atingida pela doença. Mais uma achega para a biografia tão dorida e incompreendida do artista.

Partilho ainda a impressão que me causou, diante de uma colecção assombrosa de óleos, que pude ver em Amsterdam, há uns anos, uma pintura lindíssima pintada no verso! A indigência do pintor não lhe permitia desperdiçar o avesso das telas, mesmo correndo o risco de manchar a parte da frente e de atrapalhar a visibilidade das telas geminadas! A exposição abarrotava de visitantes e bem vi mais lágrimas a correr, teimosamente. Mas silenciosamente – é impossível fazer barulho junto às suas paisagens radiosas. Compensamo-lo hoje pelo esquecimento dos seus contemporâneos. E isso tem graça!

Boa Páscoa,

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


2 comentários:

Anónimo disse...

MZ, partilho do teu gosto pelo Van Gogh e por este quadro em particular. É maravilhoso em composição, cor, detalhe, traço, delicadeza, sensibilidade, luminosidade ... penso até que o vi contigo, numa qualquer escala (de avião), a caminho da América do Sul ... numa exposição crivada de gente que muito me enervou (tapa o gozo do desfrutar dos quadros). Se tivesse um quadro do VG, era exactamente este que gostaria de ter. Obrigada mais uma vez. pcp

Anónimo disse...

MZ, partilho do teu gosto pelo Van Gogh e por este quadro em particular. É maravilhoso em composição, cor, detalhe, traço, delicadeza, sensibilidade, luminosidade ... penso até que o vi contigo, numa qualquer escala (de avião), a caminho da América do Sul ... numa exposição crivada de gente que muito me enervou (tapa o gozo do desfrutar dos quadros). Se tivesse um quadro do VG, era exactamente este que gostaria de ter. Obrigada mais uma vez. pcp

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