19 julho 2010

É mais bonita, sabe...

Uma amizade forte e a dedicação profissional de quem me convidou levaram-me, há pouco mais de uma semana, a uma experiência nova: o chamado casamento pelo civil, na própria Conservatória.

(Abro um parêntesis fundamental: tenho amigos casados por esse regime e nada me move contra esta forma de casamento, que para uns será a desejável, para outros será a possível. Leia-se a croniqueta com os olhos da ligeireza, não com os do apoucamento - que não existe.)

A cerimónia realizou-se numa sala relativamente ampla. De um lado de uma mesa de reuniões a conservadora; à sua frente os noivos e, de lado, as testemunhas. Num renque de meia dúzia de cadeiras de napa encostadas a uma parede os restantes convidados da cerimónia.

Habituado, ao longo das dezenas de casamentos católicos para os quais fui convidado, a ouvir falar – e a acreditar - no sacramento e na Igreja, não esperem que não estranhe ouvir falar nas leis e na República.

Familiarizado com um crucifixo que representa o amor ate às suas últimas consequências, e com uma imagem de Nossa Senhora aos pés da qual tantos e tantos noivos consagram a sua união, não se admirem que me tenha feito confusão ver o busto do regime e o seu barrete frígio a velar pela legalidade daquele casamento de vontades.

Afeito ao ambiente musical próprio de uma cerimónia religiosa, com a Avé Maria de Gounod ou o Sanctus da Missa Alemã de Schubert – ou mesmo com a modernidade de uma viola e um coro de jovens – parece-me natural a surpresa por ouvir, como som de fundo, um aspirador que braço diligente e imigrante percorre pela alcatifa da Conservatória.

Data de 1974 o primeiro casamento para o qual me lembro de ter sido convidado. De então para cá acostumei-me ao desaparecimento dos noivos nas profundezas da sacristia para a assinatura dos documentos relevantes. No civil, queridos leitores, é o simplex: com uma vaidade toda feita de tecnologia e desprezo pelas canetas de estimação, a conservadora usa uma tecla chamada enter e declara os noivos casados, sugerindo-lhes que se beijem. Deus vela por todos e no entanto, à distância de um braço, está o busto da República.

É verdade que o mesmo padre que nos baptiza pode, se a longevidade o permitir, assistir ao nosso casamento e presidir ao nosso enterro, encomendando-nos a alma ao Criador. Mas ali, naquela 6ª feira quente, enquanto na sala ao lado funcionários empenhados faziam horas extraordinárias para preparar contratos, partilhas ou outras minudências jurídicas, só me ocorreu um pensamento: a conservadora pressurosa que efectua o casamento àquela hora pode ter decretado na hora anterior, e com o mesmo zelo de funcionária pública que deseja o excelente na sua avaliação de desempenho, um divórcio. E responderá, eficiente e dominadora da técnica, que já não são necessárias assinaturas. O enterzinho, está a ver? Ao perto, representando uma ética republicana, Ilda Pulga e o seu barrete frígio cobrem uma união cujo início e fim foram decretados com a mesma impessoalidade processual, onde o divino é apenas uma palavra não sujeita ao acordo ortográfico.

As igrejas de fim de semana são um corrupio sem fim de casamentos. Cristo Nosso Senhor protege todos os noivos: aqueles que o amam e que acreditam nos sinais, e aqueles que têm uma vaga ideia de quem Ele é, que respondem à pergunta sobre o porquê da festa religiosa com a força demolidora das coisas francas:

É mais bonita, sabe?

JdB

9 comentários:

Anónimo disse...

Um espectáculo de bem observado, de descrição, de conteúdo. Que contrastes tão nítidos. JdB no seu melhor! Bjs. pcp

arit netoj disse...

Esta descrição tinha de ser registada para não se perder.
Continue a ser perspicaz e tão bom contador de histórias.
Beijinhos

Anónimo disse...

Sabe JdB, nem sempre as relações tem de ser mediadas. Apesar da sua graça e perspicácia mordaz, há seres humanos que conhecem o certo e o errado, o amor e a amizade, o perdão e a compaixão, porque são naturalmente informados e dotados desses saberes. Não precisam de se alindar, não precisam de se escudar, não precisam de limites. Apenas de amor. Conheço muitos assim. Subiram as escadas tortas e gastas das conservatórias, assinaram papeis cheios de dedadas, ouviram conservadores a discursar desinteressadamente sobre o que seria o casamento, e continuam juntos, cheios de tudo o que duas pessoas podem construir. Sem mediadores. Só eles. Felizes porque o merecem.

Anónimo disse...

Não consigo deixar de pensar nesta sua crónica e só espero que quem quer que tenha casado nesse dia ,uma ocasião tão solene até debaixo duma ponte, nunca tenha a infelicidade de ler este texto. Eu ficaria triste, sentir-me-ia diminuída. Desejo com todas as minhas forças que este seres sejam muito, muito, felizes e, seguramente, sem a sua bençao.
Eu entreleio as suas boas intenções, mas para quem não tem escolhas, ou para quem não vê a celebração do amor doutra forma, isto é ofensivo. Peço desculpa pela minha franqueza num espaço que é seu e que eu deveria respeitar, mas da mesma forma que me sinto ofendida pelo teor da sua descrição, arrogo-me no direito de o dizer abertamente.

JdB disse...

pcp, arit netoj:obrigado pela vossa visita e palavras simpáticas.
Anónima (e vou presumir que foi a mesma em ambos os comentários): Algumas notas.
Fui ao casamento descrito na crónica porque me une a um dos noivos uma amizade forte, que vence barreiras profissionais e sociais. Se reparar bem, não há um único comentário pessoal a ninguém.
Do meu círculo próximo, muito próximo, de amigos, vários casaram pelo civil. Alguns fizeram-no repetidamente, outros por uma segunda vez que será para sempre. Respeito todos e, estou certo, os poucos que terão lido o post terão sorrido - ou lido com indiferença, já que nada no texto - como tive oportunidade de referir no início - tinha intuitos de apoucamento, mas de crónica de "costumes".
Não sei como será numa conservatória, mas numa igreja (pelo menos a católica, que é a que conheço) são os noivos que se casam, sendo o padre uma testemunha. Nesse sentido, a "grandeza" do acto é dada pelos noivos. Antes um casamento sério e convicto subindo as "escadas tortas e gastas" de uma conservatória, do que um casamento religioso porque a festa é mais bonita.
Por motivos que diferem seguramente dos seus, vou esperar que estes noivos específicos não precisem da minha benção: porque não a sei dar, e porque conto vê-los felizes para sempre. Como tantos outros que, por escolha ou limitação, se casaram junto ao busto da República.
Quis sobretudo - e se calhar de forma "gauche" - perorar sobre algumas curiosidades que me retiveram a atenção. E sabe, se não fosse a exposição personalizada (que aqui não há), teria feito crónica semelhante quando, por outros motivos, me sentei na mesma conservatória há ano e meio.
Peço desculpa se a ofendi, mas agradeço a sua visita franca e honesta. Este espaço é de quem o visita.
Obrigado

Anónimo disse...

Desafio - gostaria de o ler a perorar de forma gauche um casamento religioso onde a festa é sempre bonita.
Obrigada pela sua resposta.

Luísa A. disse...

Não sei se estou completamente de acordo consigo na defesa do casamento religioso em todas as circunstâncias, João. A minha visão é bastante mais restritiva. Talvez não saiba que casei duas vezes, embora com o mesmo homem. A primeira foi pelo civil, porque quis testar a relação na intimidade sem o «peso» da indissolubilidade da bênção divina. A coisa correu bem e, algum tempo depois, casei pela Igreja, já com outras certezas. Nunca recomendaria o casamento religioso a quem não sabe o que está a fazer ou encara com displicência o instituto e o seu contrário. O casamento religioso (para mim o verdadeiro e único casamento) é um contrato, não entre duas (como no civil), mas entre três partes, Uma delas participando em defesa da bondade, do futuro, da família, da vida. Não vejo, neste quadro, margem para leviandades. ;-)

JdB disse...

Luísa: talvez não me tenha feito explicar bem. O objectivo do post não era de todo a defesa do casamento religioso em qualquer circunstância. Queria ter passado de uma forma ligeira - talvez não conseguida - a "pobreza" estética do casamento pelo civil e que leva tanta gente à igreja, mesmo não tendo ido lá no domingo anterior nem fazendo tenções em ir no seguinte. No outro dia alguém me dizia que se investisse mais nesta "estética" das conservatórias talvez não fosse mal.
Perfeitamente de acordo quanto às três partes de que fala. É a única circunstância em que, num casamento, três não é uma multidão...
Obrigado pela visita.

Maf disse...

"estética" de conservatória é coisa que não falta aqui na Fontes Pereira de Melo (mesmo ao lado do meu escritorio) onde se celebram casamentos e baptizados com pessoas vestidas a rigor, pompa e circunstância. Noivas vestidas de branco, véu a preceito, noivos de smoking e papillon, fotógrafos e convidados marcham solenemente FPM abaixo, indiferentes aos olhares curiosos dos condutores, aos escapes dos carros ou aos aplausos dos transeuntos. A maioria, diga-se a verdade, dos que assim festejam, são pessoas de côr ou de etnia cigana, mas também os há de cor branca, portugueses ou de leste, emigrantes ou estrangeiros, do norte ou do sul, novos ou velhos. Palpita-me que esta moda vai pegar e nada me espanta que daqui a 50 anos, os nossos netos e bisnetos também a venham a adoptar. Ainda bem que já cá não estarei :-)
Maf

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