14 julho 2010

Vai um gin do Peter’s ?

É uma lufada de ar fresco revigorante confirmar que as artes plásticas conseguem transfigurar desperdícios de telemóveis em instalações espectaculares evaporando, literalmente, o lixo electrónico que produzimos. Esse é dos méritos de Daniela Ribeiro.

Filha de pais portugueses radicados em Moçambique, ali nasceu em 1972, passando a maior parte da infância em Angola. Nos anos 80 viveu em Paris. Depois veio para Portugal, onde cursou pintura em Belas Artes e na ARCO. Actualmente, reparte-se entre Lisboa e Luanda, expondo com regularidade peças quase de ficção científica.

Na capital portuguesa, partilha o atelier com 12 artistas inovadores, que reciclam materiais desaproveitados no apetecível SPAZIO DUAL, onde se acumula também o stand da Alfa Romeo & Lancia, além de um restaurante simpático, instalado na mezzanine desse 41 da Av. da República. De facto, em cada m2 do Spazio, as ideias fervilham e materializam-se sob as formas mais variadas e saborosas: na arte culinária saída das mãos do Chefe italiano Guerrieri e no design & artes plásticas instalados nos subterrâneos do stand, sugestivamente designados por Art In Park (www.artinpark.com).

Ali trabalha, por exemplo, um dos artífices dos fantásticos acessórios da marca Ana Salazar – o Valentim Quaresma (www.valentimquaresma.com)– com peças em malhas metálicas extraordinárias, feitas a partir de molas, fechos ou outros despojos que povoam os guarda-roupas da nossa sociedade de consumo. Tudo muito colorido e metamorfoseado em jóias avant-garde, giríssimas, daquelas que dão um toque de festa ao mais insignificante trapinho.

Voltando a Daniela, conheci-a pelo catálogo lindíssimo das máscaras que pertenceram à mostra «A Unicidade do Tempo»(1), onde a antiga cultura angolana, das tribos Chokwe e Luba, inspiraram caras formadas por mosaicos de chips, ecrãs e teclados irreconhecíveis, que nos chegam com um misto de antiguidade e futurismo. Intrigante esta artista que escolheu uma divisa bem expressiva da sua sede de explorar os recursos da imaginação, encontrando complementaridades em civilizações muito distantes no tempo: «Desejo sem limites»


Máscara da tribo Luba


Recriação de máscara tribal

Nas palavras da artista: «Hoje é tudo dependente da inteligência artificial. O mundo está no telemóvel, na facilidade de comunicação. Nós ainda não estamos preparados. Por isso este meu trabalho é um apelo à reflexão sobre como se irá gerir este novo enquadramento

Nas citações do Catálogo, Andy Wharhol torna-se uma escolha expectável da curadora, Filipa Oliveira: «I think everybody should be a machine»

Cognomizada como «artista do futuro», Daniela desafia-nos para antevisões de ficção tecnológica. No Museu das Comunicações (2) tem expostas, até 31 de Julho, 14 OLHOS BIÓNICOS (menos impactantes que as máscaras, ainda disponíveis no catálogo digitalizado 1), imaginando um cenário onde os olhos são a via de comunicação das novas gerações. Quase lembra o grande título do filme referido no último gin «O Segredo dos seus olhos» ou, melhor ainda, «A pergunta dos seus olhos». Se dúvidas houvesse, esta focagem no olhar confirma-nos que a artista está longe de se ter desligado do humano. E é através da intensa actividade high tech do mundo industrializado que reflecte sobre o devir da humanidade.

O notável sentido estético da sua obra é outro dos traços bem humanizantes de todo o material robótico que dá corpo a muitas das peças que compõe. Até certo ponto, esta forma de analisar a sociedade a partir da ciência e da tecnologia, fixando-a sempre com enorme beleza, lança-nos numa reflexão mais profunda sobre o papel do belo na existência. Sophia traduziu-o com especial acuidade:

«Sua beleza à força de ser bela
Promete mais do que prazer
Promete um mundo mais inteiro e mais real
Como pátria do ser
»
in O Nome das Coisas

É também nesta linha que Victor Hugo explora as manifestas afinidades entre beleza, verdade e bem: «Tudo o que é belo manifesta o verdadeiro.(…) Neste mundo a beleza é necessária. … (é) o dourado do destino, a harmonia, a gentileza, a graça… A beleza basta ser bela para fazer bem.»

A acrescentar às pistas propostas na exposição «Olhos Biónicos» para se reavaliar a evolução da história e da comunicação à escala global (o catálogo é sugestivo), a oportunidade de descobrir uma arte apostada em tornar lindos meros resíduos inúteis, inspira-nos mais confiança no futuro.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) http://www.danielaribeiro.net/. Para aceder ao Catálogo: pt.calameo.com/read/00016384962225349cb2e

(2) Museu das Comunicações, perto de Santos, com entrada gratuita. Segue cartaz da exposição patente até 31 de Julho:

2 comentários:

Anónimo disse...

É incrível como há tantas definições de beleza... obrigada, MZ, por um texto rico de informação e conteúdo. Bjs. pcp

Anónimo disse...

Sim, sim. É bem giro constatar que por vias tão diferentes e imprevistas se pode chegar à beleza. Provavelmente, cada pessoa terá um contributo único nesta caminhada conjunta... Bjs, MZ

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