Este tempo de Festas é
tão intenso, que nem mesmo a voragem (por vezes, estafante) dos presentes, dos
cartões e emails de Natal ou dos muitos jantares e encontros da época ensombram
a graça especial deste período. Ainda que nos dispersem… A própria correria tem
algo a ver com um sentido de Vida mais pleno, traduzido em golfadas de
solicitações que nos vão despertando mais para a realidade. Nada fácil de
verbalizar, pois pertence ao indizível.
Quando os afazeres
transbordam, ajuda-me rever esta tela de Rubens, que entra no telemóvel e no
desktop do computador, mal chega o mês de Dezembro:
Adoração dos Magos, RUBENS, 1609, Museu do Prado
LEGENDA no site do Museu (versão anglófona): «The detail shows the
Magi offering the Christ Child the gift of gold coins in Rubens’s great
painting of The Adoration of the Magi.
The detail reveals the artist’s daring technique: in addition to using a brush
heavily charged with pigment to depict the highlights around the eye and in the
hair, he also used the other end of the brush to make marks in the still wet
paint in order to reinforce the curls in the hair and give them more movement.
Rubens painted this work in 1609. In 1628 he returned to it, enlarging it with
three wide strips of canvas and adding various figures including his own
self-portrait.»
No hemisfério Norte, as noites alongam-se em crescendo, até ao solstício de Inverno, que simboliza lindamente aquela Noite histórica de há 2000 anos, em que os homens de boa vontade – de todos os recantos do planeta e de todas as gerações – foram reconhecidos e valorizados precisamente pela Boa Vontade. Coisa inédita!
Não será por acaso que
tudo em volta do Natal convida a essa abertura ao próximo, levando-nos a espalhar
o bem em redor.
Assim aconteceu, em
Manhattan, numa noite gélida do fim de Novembro, quando um polícia ofereceu a
um dos muitos sem-abrigos da Big Apple um par de botas novinhas em folha. O
episódio foi gravado na câmara de uma turista e difundido na net sem os
protagonistas saberem, comovendo milhares de pessoas que o visionaram no
youtube:
Num
ápice, os dois ganharam estatuto de figura pública, tornando-se conhecidos pelo
nome próprio: o polícia –Lawrence DePrimo; o mendigo –Jeffrey Hillman. Ironicamente,
nem tudo se converteu em mar de rosas para o agora famoso mendigo da Time
Square. Para não serem cobiçadas, explicou que teve de as esconder, pois poderiam
custar-lhe a vida. Apesar de tudo, agradeceu ao seu benfeitor a tentativa de
lhe aliviar o rigor do Inverno nova-iorquino: «Aprecio e agradeço o gesto do polícia… (e gostava que) houvesse
mais pessoas como ele, no mundo».
O veterano de guerra com 54 anos, precocemente envelhecido após 10 anos de vida sem rumo, na rua.
A vida é tão misteriosa que mesmo ajudar quem
precisa pode ser complexo e de retorno incerto… De facto, o sofrimento é
gritante para demasiada gente. Por isso se percebe o grito lancinante do
filósofo incrédulo e turbulento – Nietzsche (1844-1900) – muito a ver com o
mistério da noite de Natal, que esteve longe de ser perceptível ou sequer acarinhado
por todos os que o viveram directamente, naqueles tempos idos:
« Elevo, só, minhas mãos… ‘Ao Deus desconhecido’...
Eu quero Te conhecer, desconhecido. Tu, que me
penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante» (1864)
Num jogo de paradoxos bem expressivo, o
filósofo dirige-se a um Deus que desconhece e, realisticamente, assume estar
aquém do seu entendimento. No entanto, reconhece-O semelhante, pois sente-O
mais próximo do que em qualquer lugar da terra: dentro de si. Na sua ânsia
insaciável pelo infinito, costumava reclamar um horizonte para lá do planeta,
querendo abarcar e engendrar o próprio cosmos: «É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela.». Assim dava voz (no seu estilo inquieto e q.b.
vaidoso) à marca mais profunda da criação, gravada precisamente no seu íntimo…
Giro
também que tenha sido este filósofo radical e excessivo a explicar o amor na
versão mais radical (mas que Alguém viveu), num patamar sobre-humano: «Há
sempre loucura no amor, embora também haja razoabilidade (nessa) loucura.»
Assim reivindicava uma medida divina para a humanidade, procurando devolver-lhe
a verdadeira estatura inscrita no âmago da natureza do homem, na tal
semelhança.
Continuação de Boas-Festas a todos, desejando um Novo Ano onde nunca falte
a luz mágica das estrelas, que inundam a noite de uma beleza sem fim,
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)