16 abril 2014

Das (in)existências

Fotografia sem título de JMAC, o homem de Azeitão


Fernando Pessoa não existe, propriamente falando (Álvaro de Campos).

Só a morte permite imobilizar uma pessoa na nossa memória. Só quando essa pessoa cessa de existir é que permite que a conheçamos tão bem quanto é possível à inteligência humana, porque só a partir de então é que a possibilidade de mudança lhe está vedada. Olhar um cadáver, ou uma piedosa pagela que nos lembra um desaparecimento, é fixar mais do que uma ideia, é esculpir na pedra uma convicção. É dizer que fulano era assim, e saber que fulano não nos atraiçoará, mudando de comportamento, de hábitos, quem sabe se de feitio. 

Se acreditamos que a nossa verdadeira identidade é definida pelos outros, também teremos de acreditar que temos tantas identidades quantas as pessoas que se cruzam connosco. Rosa Montero, a escritora chilena, dizia mais ou menos isto: sabes lá tu quantos somos dentro de nós. Já quando nos olhamos ao espelho metafórico das nossas introspecções vemos vários, porque as circunstâncias em que vivemos são várias. Alguém me dizia, um destes dias, que eu sou a escrever o que não sou a falar, que o que observo e digo não é o que observo e escrevo. Jorge Luís Borges afirmava ser os seus personagensKirkegaard diria que não era responsável pelo que escreviam os seus pseudónimos, uma espécie de companhia de autores dentro do mesmo fato.

Em que é que nos afecta esta ideia de não existirmos, propriamente falando, de sermos o que os outros fazem de nós ou dizem de nós ou vêem de nós? Tira-nos personalidade ou, pelo contrário, oferece-nos uma multiplicidade delas? Tudo seria mais fácil se reduzíssemos a nossa rede de intimidade - ou, pelo menos, de alguma proximidade - a uma pessoa única? 

Nos últimos dois dias troquei alguma correspondência com o meu querido amigo ATM, que este estabelecimento já recebeu. Falámos das naturezas para chegarmos a um qualquer âmago: quem somos e como somos vistos? E eu continuo a série infindável de interrogações: revelamos a nossa verdadeira essência ou somos aquilo que os outros vêem? E mostramos sempre o que gostaríamos que os outros vissem em nós? E como nos condiciona isso a forma como somos vistos?

Já uma vez aqui escrevi do fascínio que é ver o exercício das inteligências alheias. E lembro-me de alguém que, inteligente, com uma cultura focada, com espírito de atenção, observação e intuição, prefere dar publicamente de si uma imagem bastante generalizada de um interesse inferior ao que tem. E também sei das pessoas que em grupo ou em individual são personagens diferentes, se transformam no olhar, nas fixações, nas necessidades. Como conciliamos, dentro de nós e do próximo, esta espécie de ambivalências?

Existimos, propriamente falando?

JdB   


4 comentários:

Rita Freitas disse...

E seria tão bom se eu conseguisse ser o que eu sou :)

bjs

Anónimo disse...

Somos um caleidoscopio, pelo que a imagem é sempre autêntica, mas nāo existe propriamente por ser só luz, óptica.

Luísa A. disse...

Existimos, sim, João, embora, nalguns casos, condicionados pela necessidade de vender a terceiros uma imagem minimamente coerente. E digo nalguns casos porque a preocupação da coerência não é universal, nem vitalícia.
Ainda assim, é com surpresa que nos vamos apercebendo de como somos percepcionados pelos tais terceiros. A nossa luta racional pela ordem ou pela coerência da imagem (carácter) é, frequentemente, inglória, fruto das circunstâncias e dos interesses.
Somos múltiplos, concordo (e é por isso que, conhecendo-nos bem, compreendemos melhor os outros). Mas talvez não sejamos assim tantos quanto isso! Q tipologia humana é relativamente pouco diversificada. ;-)
Uma boa Páscoa!

Luísa A. disse...

Gosto imenso das questões que aqui nos vai colocando. Proporcionam os mais estimulantes exercícios intelectuais. Mas gosto, sobretudo, da forma como no-las põe. É um prazer lê-lo.

Acerca de mim

Arquivo do blogue