12 novembro 2014

Dos adjectivos e das acções

Cataratas do Niagara, Canadá, Outubro de 2014

Emma Woodhouse, handsome, clever, and rich, with a comfortable home and happy disposition, seemed to unite some of the best blessings of existence; and had lived nearly twenty-one years in the world with very little to distress or vex her.

É assim que começa o romance Emma, de Jane Austen. De alguma forma seria assim – obviamente com outros adjectivos que completassem o quadro – que descreveríamos muitos dos nossos amigos: egoísta, generoso, atento, irascível, avaro, orgulhoso, simples, discreto, corajoso, divertido, inteligente.

Obviamente que só poderemos classificar os nossos amigos desta forma depois de os termos vistos em acção. Quando eles nos chegam ao contacto são uma folha em branco – ou uma folha semi-preenchida por terceiros. Nada sabemos deles e aceitarmos o que deles nos dizem está numa dimensão de confiança, ou de credulidade, sempre afectada por uma expectativa. Afinal, cada um vê o que vê, o que para si é importante ou tem mais impacto. Ser-se generoso requer demonstração, a entrega de uma certa evidência; classificar alguém de irascível só é justo se o tivermos visto exercer a sua irascibilidade; só se é corajoso em face de uma situação de risco. Não sabemos o que somos até agirmos.

Imaginemos, então, que nos era pedido para descrevermos um amigo muito próximo. Mas, em vez de usarmos adjectivos – orgulhoso, vaidoso, culto, egocêntrico – estávamos obrigados a referenciar situações. Isto é, não dizer que fulano é generoso, mas que fulano, num determinado dia, prescindiu do seu almoço para dar o dinheiro aos pobres. Não dizer que fulano é inteligente, mas que numa determinada situação – ou continuidade de situações – consegue discernir, encontrar ligações, ver mais além.

Há diferença na abordagem? Há seguramente. Qual é a diferença? Não tenho bem a certeza. Mas fico com a sensação de que é mais justo – ainda que potencialmente mais maçador. Obriga-nos a um exercício de memória que é uma retribuição nos casos positivos: não falar das virtudes com um ar vago mas identificá-las, e ser isso que caracteriza uma pessoa. Nos casos negativos a coisa fia mais fina, e não sei o que dizer... A vida das pessoas é muito mais do que aquilo que elas são. É também, ou sobretudo, o que elas fizeram.

Acabo o texto sem saber se gastei 400 palavras em disparates. Acontece que é tarde, estou a caminho de um jantar (escrevo na 3ªf de noite), estou cansado e deixei o moleskine onde assento ideias na faculdade. Tenham paciência, ou dirijam-se a outro estabelecimento.

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Ainda mais difícil e não menos probatório da respectiva natureza, será enunciar alguém por aquilo que ele não fez em determinada situação concreta, o "non facere" .

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