Este ano, o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro
premiou «IDA»(1) , uma
obra-prima assinada por um polaco de nome impronunciável, Paweł Aleksander Pawlikowski (P.A.P.), e produção conjunta
de 4 países europeus: Polónia, Dinamarca, França e Reino Unido. De ascendência judia, P.A.P. nasceu em Varsóvia (1957) e andou
errante pelo mundo, vivendo imprevistos que têm algumas afinidades com o
argumento do seu filme. Em 1971, com 13 anos, acompanhou a mãe numa viagem a
Londres, pensava ele, de férias, na sequência do divórcio dos pais, que muito
mais tarde se voltariam a casar, depois de se reencontrarem no estrangeiro. Nem
um ano volvido, teve de se mudar para a Alemanha, onde vivia o pai. Em 1977, fixou-se
nas ilhas Britânicas, ensinando em Oxford e realizando documentários e filmes,
que lhe valeram galardões, ou não fossem os seus gurus os realizadores
lendários: Dreyer e Bresson. Fala, fluentemente, polaco, russo, inglês, alemão,
francês e italiano. Ainda viveu em Paris, até regressar à Polónia, ao bairro da
sua infância. Tal como Ida, é na adolescência que descobre as raízes judias,
através de um papel estrategicamente abandonado para o filho descobrir o segredo:
afinal, o seu pai era judeu e sobrevivera à guerra não se sabe como, enquanto a
avó paterna morrera em Auschwitz.
Como muitos dos expatriados, a sua história
acumula várias geografias, diferentes culturas, mas também as mágoas do
desenraizamento.
Realizador e co-argumentista
de «Ida».
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Recuando à Polónia de 1962, o filme é rodado
a preto-e-branco, com uma fotografia soberba, apanhando ângulos espantosos e recortando
com enorme beleza e rigor as personagens que habitam a tela, quase sempre imersas
em fundos esfumados, a aproveitar as gradações intermédias dos cinzas. Uma
câmara, claramente, centrada no ser humano, com toda a sua individualidade. Recuamos,
com facilidade, aos anos 60 para mergulhar num ambiente misterioso e cheio de
mística, que vai do recato da clausura conventual aos ambientes urbanos
ritmados a jazz.
Começamos por ser introduzidos nos corredores
resguardados de um convento polaco para acompanhar os preparativos das noviças,
em vésperas de tomarem os votos. Num microcosmo, onde tudo parece previsível, surge
o primeiro sinal de alteração da rotina, característico das histórias passadas
no lado de dentro das paredes espessas dos mosteiros: a Madre Prioresa chama
uma das noviças ao seu gabinete. Vemos Anna entrar, com um ar suave, surpreso
mas consistente. Com espanto, ouve a Madre comunicar-lhe que é judia e só poderá
tomar os votos depois de conhecer a outra sobrevivente da família – uma tia a
viver na cidade (Varsóvia, creio). Assim começa a aventura de Anna, instada a
sair, pela primeira vez, do espaço calmo da abadia onde fora criada, desde
bebé, para desbravar um mundo novo.
O encontro com a tia Wanda é duro e, em
breves segundos, no limiar da porta do apartamento, com Anna do lado de fora, uma
adulta de expressão áspera e em roupão dispara sobre a sua vida duvidosa,
estranhando que as freiras não a tivessem já informado. E revela-lhe o nome de
origem: Ida Lebenstein, rebaptizada de Anna, no convento. O mais curioso é a
fleuma imperturbável da miúda que, do alto dos seus 18 anos, mantém sempre uma
serenidade inexplicável, que nada tinha de indiferença nem de falta de
discernimento. Assim será ao longo de toda a viagem, que constitui a trama da película,
qual road-movie, a nível físico,
psíquico e espiritual. Na investigação sobre o desaparecimento da família, Ida embarca
com uma estranha, que calha a ser sua parente
o seu oposto (aparentemente): licenciosa e viciada nos analgésicos sociais comuns e mais
acessíveis: a bebida, as mãos obsessivamente agarradas ao cigarro, e os homens
que vai conhecendo em encontros fugazes, cultivando a ilusão de ser uma diva
sedutora e descomprometida, ela que vive a custo a ironia de ter perdido a
família durante a perseguição nazi. Embora também exiba os louros da resistente
indomável, que escapara ao destino da maioria. Apesar da pose de mulher
independente, livre e lutadora intrépida, tem bem a noção de que lhe faltara coragem
e generosidade para tratar do bebé que sobrevivera. Ela que perdera o seu filho
único. Pior (ou mais incompreensível): permitira-se fazer carreira, com
distinção e zelo, durante a vaga estalinista, na qualidade de magistrada activista
nas purgas bolcheviques aos alegados traidores do processo revolucionário em curso. Se dúvidas tivéssemos, a
homenagem póstuma da nomenklatura confirmam a parte discutível do seu passado, igualmente
manchado de sangue alheio, para lá de todo o idealismo político. Neste
episódio, a ironia e o humor imperam, praticamente sem atenuantes.
A culpa da maioria pela sorte horrenda dos
seus compatriotas, uns durante a guerra, outros nas décadas posteriores,
atravessa transversalmente toda a sociedade polaca, dos católicos aos judeus, passando
pelos comunistas e oportunistas-carreiristas. Poucos escapam. Sem juízos sobre
as opções de uns e outros – mas apenas revelações lúcidas – P.A.P. revê o
século XX do seu país natal, com boa dose de objectividade e compaixão. Sobretudo
compaixão, simbolizada pela figura silenciosa da noviça acabada de sair da
clausura, que fala através de uns olhos bem atentos ao próximo, capazes de
avançar até ao coração, sem invadir nem devassar. Só uma incrível bondade,
preferindo ouvir, ouvir infinitamente.
A visita ao passado de personagens maculadas
pelo crime de homicídio, ensaia brechas de perdão quando recordado sob o olhar
paciente e sereno de Ida. Todos precisam de ser perdoados. Por isso, agarram-se
ao rosto puro e seguro, como uma rocha, de uma rapariga que não fora ainda contaminada
pelo peso dos passos em falso, dados nas horas turvas e, quase sempre
violentas, onde tudo parece consentido e os seres humanos têm a ilusão de ser
inimputáveis.
Numa das reflexões híper lúcidas de Santo
Agostinho (354-430), percebemos o ridículo de nos arvorarmos em juízes do
próximo, por mais escroque que o consideremos. Porque todos vivemos do perdão, como alertava Bento XVI. Segue um excerto
sobre a lógica de perdoar, na mesma senda refrescante da obra-prima de P.A.P., com
mais sentido e urgência do que se reconhece:
«Julgas que podes encontrar um
único homem entre o género humano a quem não se possa contabilizar alguma falta
para com um irmão?
Todos os homens são, portanto
devedores e credores simultaneamente. Por isso, Deus, que é justo, deu-te uma
regra para seguires para com o teu irmão (…). Existem, com efeito, duas obras
de misericórdia que nos podem libertar. O próprio Senhor as formulou de uma
forma breve no seu Evangelho: “Perdoai e
ser-vos-á perdoado.”, “Dai e
dar-vos-ão.” (Lc.6, 37-38). A primeira tem a ver com o perdão, a segunda
com a caridade.
O Senhor fala do perdão. Ora tu
desejas obter o perdão dos teus pecados e tu tens também pecados a perdoar a
alguém. (…) Quereis ser perdoados? “Perdoai
e ser-vos-á perdoado.” Quereis receber? “Dai e dar-vos-ão.”
Que dívidas queres que te sejam
perdoadas? Todas, ou uma parte? Vais responder: todas. Faz, portanto o mesmo
para quem te está devedor.»
Do «Sermão 83»
Voltando ao filme: era na miúda magra, de sobretudo
claro e véu a encobrir os cabelos ruivos, em contraste com a tia mundana e
nervosa, que uns e outros confiavam. Inclusive os segredos mais inconfessáveis.
É que a humanidade precisa de confiar em alguém. Não se pode levar a suspeita e
a acusação até ao limite, sob pena de tornar impossível a vida em sociedade. Ora,
Ida tinha autoridade natural. É maravilhosa e misteriosa a tranquilidade com
que interpela o assassino dos seus pais sobre a razão de não jazer também na
vala clandestina, aludindo à sua morte com um distanciamento incrivelmente sábio.
Numa
paragem do caminho, Ida ajoelha-se aos pés de um cruzeiro, sob o olhar
condescendente
da tia, que se vai habituando ao estilo extraterrestre
da sobrinha.
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Uma nota sobre a escolha desta actriz amadora,
descoberta por um amigo do realizador, num café, impactado pela força que
irradiava da miúda a ler, na mesa ao lado. Quando a pôde ver sem maquilhagem e com
roupa simples, P.A.P. percebeu que descobrira, finalmente, Anna. Estava desesperado,
depois de entrevistas falhadas a mais de 400 profissionais, que não quadravam nada
com a difícil personagem. O desafio foi, depois, demover
Agata Trzebuchowska a deixar-se filmar e plasmar na
tela a sua personalidade magnética, iluminada por uns olhos firmes e penetrantes,
capaz de enfrentar os maiores reveses e de sarar os traumas mais arreigados.
Agata Trzebuchowska encarnando a protagonista |
A banda sonora é outro dos assombros desta
obra, onde tudo é muito estético e poético, mesmo os zooms sobre paisagens e
gentes de aspecto notoriamente rude. Aliás, foi concebido como um filme poema. No
grupo que toca ao vivo, num bar, numa das etapas do caminho, sobressai a
cantora polaca Joanna Kulig, sustentada por excelentes instrumentos de sopro e
bateria. Era o som boémio das noites longas. O jazz superabunda. Em casa de
Wanda, os ritmos intensos e frenéticos do início, dão lugar a Mozart, que volta
ao gira-disco quando a relação com a sobrinha introduz novidade na sua vida.
Aos poucos, a adulta céptica e trocista descobre afinidades com uma noviça
híper convicta, construindo uma relação afectiva estreita, apesar das óbvias
diferenças. Mas na convicção, na bravura, na combatividade e na inquietação
pela verdade – cada uma, à sua maneira –
reencontram-se, sem hesitações.
Gradualmente, vão-se aproximando, muito
por mérito
da paciência de Ida – a amadurecida das duas.
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Elipticamente, acabamos por regressar ao convento,
valorizando-se uma escolha incomum, que não se fica pela vida da maioria, como tinha
sugerido o novo amigo de Ida, saxofonista talentoso, ao desafiá-la para um
futuro em conjunto. São espantosas as observações que o instrumentalista faz a
Ida sobre o par improvável, mas impressionante, que ela forma com a tia
irreverente; ou sobre o efeito poderoso da jovem trajada de véu, no meio boémio
de um bar onde se ouvia John Coltrane.
O silêncio misteriosamente comunicativo de uma noviça, que nunca passa despercebida |
Reunindo em si as duas heranças judaica e cristã
– que formam a matriz europeia – Ida quis voltar a ser também Anna, sem renegar
nada do passado, antes enriquecendo-o e repurificando-o, como simboliza o
enterro dos pais, na campa dos seus antepassados.
Tudo se cruza neste filme densíssimo, onde a
história recente da Europa Central é passada a pente fino, sem poupar ninguém. Nas palavras do
realizador: «Ida is a film about identity,
family, faith, guilt, socialism and music. I wanted to
make a film about history that wouldnʼt feel like a historical film— a film
that is moral, but has no lessons to offer. I wanted to tell a story in which
ʻeveryone has their reasonsʼ; a story
closer to poetry than plot.» (2)
Ali se confrontam a carga insuportável da
culpa com a possibilidade de remissão. Aliás, o primeiro projecto de título era
«Irmã Misericórdia» (Sister of Mercy). Desvela-se a identidade atormentada de
um país, posta em cheque pelos conflitos entre os vários grupos e etnias, que
Ida/Anna poderá reconciliar em si própria, fazendo a simbiose do seu duplo
legado. Nada é assim tão simples pois, estranhamente, o mesmo que tinha morto a
família, por medo dos nazis e cobiça da casa dos Lebenstein, salvara-lhe a
vida, enquanto a tia a enjeitara. A coragem nuns e noutros é entremeada por
atitudes de enorme cobardia. A generosidade de uns e outros é também ensombrada
por fases de egoísmo e avidez ferozes. Ninguém está inocente. Nem ninguém impedido de ser resgatado. A
escolha cabe a cada um. Num artigo de título forte – «Entre anjos e fantasmas»(3) – o crítico de
cinema Luís Miguel Oliveira, observa que P.A.P. remexe nas «feridas do século
XX polaco (…) (e) deixa os fantasmas à solta para fazerem o que têm a fazer:
assombrar as personagens e o espectador.» Como todos os bons filmes – e este é
extraordinário – ficamos a digeri-lo por muito tempo, percebendo como os
fantasmas agitados pelo realizador nos ajudam a rearrumar ideias. Digamos que resultam
numa companhia benigna e sugestiva, talvez por fazermos a experiência descrita
pela jornalista Sidney Levine, ao retratar o filme como «a journey of a fresh soul into the heart of humanity (who) finds that she is
blessed by being able to decide upon her own destiny within it.»
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original:
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IDA
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Título traduzido em Portugal:
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IDA
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Realização:
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Argumento:
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·
Paweł A. Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz (dramaturga britânica)
|
Produzido por:
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·
Eric Abraham, Piotr Dzięcioł,
Ewa Puszczyńska
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Produção:
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Banda Sonora:
|
Kristian
Eidnes Andersen
|
Duração:
|
82 min.
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Ano:
|
2013-2014
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País:
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Polónia,
Dinamarca, Reino Unido e França.
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Elenco:
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Agata Trzebuchowska (Ida Anna)
Agata Kulesza (a tia, Wanda Gruz)
Joanna Kulig
(a cantora e convidada especial)
Dawid
Ogrodnik (o amigo músico)
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Local das filmagens:
|
Polónia
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Site oficial, para aceder ao
trailer:
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http://www.ida-movie.com/
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Prémios:
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Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, eleito o Melhor Filme
Estrangeiro pela British Academy Film
Awards, galardoado com o Lux Prize do Parlamento Europeu, num conjunto de 63
prémios de cinema.
|
(2) Entrevista
com Sydney Levine, publicada no International Film Business Blog, a 8 de
Janeiro de 2015.
(3)
Artigo
do jornal PÚBLICO, publicado a 17/07/2014.
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