03 março 2015

Duas Últimas

Dizem-me que se sabe pouco de Henrique Rego (1893 – 1963). Terá sido funcionário subalterno do Ministério da Guerra e um dos mais férteis poetas populares do fado. A junção destas duas linhas do seu curriculum – a secura profissional e a produção artística - não é por acaso. Nada leva a crer que fosse homem de grandes estudos e, mesmo assim, compôs alguns dos versos mais bonitos do fado, quando Pedro Homem de Mello, David Mourão Ferreira e Camões ainda não tinham sido divulgados à exaustão ao som do Mouraria, ou do Menor, ou das criações de Alain Oulman. Foi amplamente cantado por Alfredo Marceneiro, que o considerava um dos seus poetas preferidos.

Em Colchetes de Oiro, o poeta que preferia a densidade dos enredos ao marialvismo glosa o mote em quatro décimas. Podia tê-lo feito em duas, poupando nas linhas. Mas preferiu a versão comprida, exibindo um donaire criativo que apraz realçar. São versos de “puro lirismo, celebrando toda a ternura de um amor convencional, sem os pecados que fizeram condenar, pelos moralistas, os primeiros fados” (in Poetas Populares do Fado Tradicional, Daniel Gouveia e Francisco Mendes, 2014).

Abaixo, um confronto onde ninguém se digladia para que todos ganhem. Há nuances na utilização da letra: por pudor, tradição ou noção das coisas, Pedro Moutinho não canta a última décima. Ela não lhe pertence, de facto. Alfredo Marceneiro canta-a, porque foi escrita para si. Ou talvez para o filho, que é o terceiro elemento na doçura daquele ninho. Gosto de fixar a atenção na expressividade com que Marceneiro entoa os versos mas dados por minha mão e minha boneca de encanto. Bem marcados, como se fossem esses - acima de tudo esses - que lhe exigissem a diferença e lhe definissem a virtude num certo estilar.

Para aqueles, como eu, que detectam um encanto especial na palavra "desdoiro", informo que o dicionário diz "deslustre, vergonha, mancha". 

Divirtam-se, em sendo caso disso.

JdB

***

Colchetes de oiro

Toma lá colchetes d’oiro
Aperta o teu coletinho
Coração que é de nós dois
Deve andar conchegadinho

P’ra ficar mais belo ainda
Teu coletinho de rendas
Aqui trago minha linda
A mais modesta das prendas
Não quero que tu te ofendas
Nem que tomes por desdoiro
Não te ofertar um tesoiro
Digno do teu coração
Mas dados por minha mão
Toma lá colchetes d’oiro

São minúsculas estrelas
Que se perderam no ar
E a lua p’ra reavê-las
Pôs de atalaia o luar
Ainda as pude apanhar
No meu nocturno caminho
E fiz delas com carinho
Estes colchetes, portanto
Minha boneca de encanto
Aperta o teu coletinho

Se fores de noite à rua
Deves guardá-los com jeito
Não quero que a dona lua
Toque ao de leve o teu peito
Que eu sempre guardei respeito
Pela grandeza dos sóis
Mas vim a saber depois
E fiquei compenetrado
Que devia ser respeitado
Coração que é de nós dois

Os corações dos amantes
Só se conseguem prender
Com colchetes fulgurantes
Dos que te vim oferecer
Mais tarde quando nascer
Do nosso amor, um filhinho
Na doçura deste ninho
Nos dirá por sua vez
Coração que é de nós três
Deve andar conchegadinho


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