Praia d'El Rey vista por um iPhone, 6ªfeira, 28 de Maio, pelas 20.00h |
No seu ensaio intitulado Meden Agan, Álvaro T Monteiro fala sobre a iminente partida da mãe, dizendo que na morte dela vê a morte de todos os que lhe são mais próximos. Perante uma óbvia tristeza, remata: "são as saudades de quando éramos pequenos." Não há filosofia elaborada nestes dois pensamentos; não há ideias de além, de reencontros, de eternidade; não há dimensão de fé ou da sua inversa. Há, nestas duas frases que refiro / cito, uma humanidade singela, uma fragilidade terrena que só sente quem vê o mundo expandir-se (passe a contradição) até ficar do tamanho da sua infância. Num repente, são as memórias de "quando éramos pequenos" que ocupam todo o espaço de uma tela, o branco de uma página de livro, as quatorze linhas de um soneto, a infinidade de sinapses. Há um instante onde estas memórias absorvem tudo para, no instante seguinte, serem arrebatadas por uma viagem de onde não se regressa a não ser no formato fotografia, filme, roupa pendurada num armário, recibo da farmácia. Ou talvez não só.
O assunto não vem a despropósito: ontem, ao escrever este texto, cruzei-me com um artigo onde o autor mencionava sons - no caso vertente, um galo a cantar de manhã, um cão a ladrar ao fim da tarde. E falava da arqueologia que evidencia uma armadura ou um ânfora, mas que não consegue evidenciar um som. Todos temos esta incapacidade de transmitirmos aos que nos sucedem na vida e nas gerações, por mais próximos que sejam em afecto e / ou sangue, o que são os sons e os cheiros que colamos à frase são as saudades de quando éramos pequenos. Evidenciamos um casaco, um par de sapatos, uma carta antiga, um livro dedicado. Mas como explicamos o som das gaivotas a perseguirem os barcos que regressam da faina? Como descrevemos o cheiro dos eucaliptos outonais ou das compotas ou do peixe-espada grelhado ao estalar do verão? Como explicamos os sons e os cheiros da praia, dos fins de tarde, das noites quentes, das férias grandes, das famílias todas felizes e inteiras e cá?
Penso que o jogo da apanhada atravessa gerações. Há alguém que foge, há alguém que persegue. Ganha quem chegar ao sítio certo e gritar "coito!", porque ali está em segurança, ali ganhou o jogo, ali não é mais perseguido ou agarrado por um fralda de camisa. Os sons e os cheiros de quando éramos pequenos são o coito das apanhadas dos adultos. É aí que nos refugiamos quando um telefonema quebra a largueza do céu que prolonga o mar e instala uma nota desajustada na afinação do dia. Quando a alma se enregela a partir de fora, é aí que buscamos conforto, porque os cheiros e os sons da nossa infância são o agasalho que nos protege.
São as saudades de quando éramos pequenos...
JdB
1 comentário:
Nós só éramos quando éramos pequenos, depois do tempo de pequenos o coletivo foi mingando ou falhando.
As saudades são da roda , quando éramos á volta da fogueira a sonhar e a acreditar. Éramos beduínos pelas areias da quimera e da esperança, éramos tribo. Todavia, fomos domesticados, fomos socializados, passámos a ser uma soma de eus. Acabou o éramos , substituído pelos excludentes era e sou.
O que comove é recordar essa pertença de tribo, e perceber-se que a vida corre inexoravelmente para o sozinho, á custa de muitos abandonos. Hoje é só a véspera de outro adeus.
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