30 abril 2016

Pensamentos Impensados

Capitães do baril
Estive nos dias 25, 26 e 27 em Paris, e tive ocasião de ver a RTP Internacional. No dia 25, como é natural, festejou-se o 25/4 à exaustão; no dia 26 continuação do dia anterior e, no dia 27, um programa de lavagem ao cérebro, de mais de 1 hora, sobre os capitães de Abril.
Pobres emigrantes! Será só isto que a Pátria tem para se lembrar deles?

Tecnologias
Nas minhas deambulações por Paris pensei nos pobres parisienses que não devem ter acesso à TV por cabo nem à internet. Pelo menos não vi os quilómetros de fios pretos que tanto colorido dão às fachadas dos nossos prédios.

Mais aborto
Akeçila quer dizer sovaco.

Ar abismos
Dor de barriga em árabe diz-se ALCÓLICA.

25 de Abril e os gatos
Uma no cravo e outra na serradura.

Pronúncia de morte
Dr. Mário Soares, que é feito de mon ami Miterand?
Sobre esse senhor não me pronuncio.

Cantando espalharei por toda a parte
O "espalhamento" dos portugueses pelo Mundo chama-se diospiro.

Numismódica
Sou fortemente contra a moeda única; gosto de ter muitas moedas.

SdB (I)

29 abril 2016

Ler Qohélet: À procura de quem procura a verdade *

Existem livros particularmente preciosos em momentos de transição, individuais ou coletivas. Ajudam-nos muito a compreender profundamente a natureza das crises que vivemos, dão palavras às emoções, aos sentimentos, às dores. Iluminam zonas escuras, às quais só palavras maiores que as nossas conseguem dar-lhes um nome, chamá-las, iluminá-las.

A elevá-las. Como poderíamos reaprender a falar-nos e a olhar-nos ainda nos olhos, após as guerras e os holocaustos, se não tivéssemos a “Divina comédia”, os “Cantos” de Leopardi, os “Demónios” de Dostoevskij, “José e os seus irmãos”, de Mann, “Os miseráveis”, de Hugo, “O estrangeiro”, de Camus, “Se isto é um homem”, de Primo Levi? Estes e outros grandes livros produzem sempre o mesmo efeito admirável de Ésquilo que, com “Os persas”, era capaz de fazer chorar os atenienses, levando-os a identificarem-se com a dor dos persas, por eles derrotados na batalha. Estes mitos e estes livros reconstituem o que a política não pode reconstruir, saram – beijando-as – feridas que parecem insanáveis, regeneram uma nova fraternidade humana.

Alguns livros, porém, não são preciosos apenas durante o período das crises: são essenciais. Quando um mundo terminou e o novo ainda não se vislumbra, nos “sábados santos” da existência das pessoas e dos povos, a companhia de alguns livros torna-se o pão quotidiano da alma. O Qohélet é um deles. Sempre me fascinou este livro tão diferente dos outros textos bíblicos, comparável apenas a Job, a algumas páginas de Jeremias, de Isaías, dos Salmos, do Evangelho de Marcos. Um livro cuja leitura pode mudar a vida, pode introduzir-nos numa fé e numa humanidade novas e adultas. Com e como Job, Qohélet é uma profunda e eficacíssima cura das principais doenças de todas as fés, religiosas e laicas: a ideologia e a procura de fáceis consolações como respostas banais a perguntas difíceis e tremendas.

Qohélet foi escrito para quem quer salvar a própria vida e a si próprio da eterna tentação da ideologia. Os homens religiosos e os sensíveis à ação do espírito começam a sua história de fé seguindo a voz que os chama, começam a segui-la com outros companheiras e companheiros de viagem e, depois, criam instituições para guardar e servir aquela voz na história. Chega, porém, pontualmente a tendência-tentação invencível de não se contentar com a nudez daquela voz e, rapidamente, à volta da primeira voz dos pais nasce a ideologia dos filhos. Formam-se, assim, as religiões onde, com o bom grão da fé, se acumula, nos anos e nos séculos, a palha da ideologia da fé que, com o tempo, cresce e se multiplica. E, se não fossem os profetas e os sábios a salvar, cada um a seu modo, o bom grão, a palha chegaria a cobrir todo o trigo, até a sufocá-lo. Esta dinâmica serve para todas as fés religiosas e laicas onde, se não são idolatrias, se encontram também os profetas e os sábios, que são a principal prevenção e cura das ideologias.

Com Job e com Qohélet, a tradição sapiencial bíblica atinge um cume altíssimo, porventura insuperável, e torna-se dom universal para todas as mulheres e todos os homens que procuram proteger, da ideologia, a própria fé. A ideologia é a morte da fé porque toda a ideologia religiosa é sempre idolatria, é a transformação de YHWH num bezerro de ouro. É assim que as fés se tornam ética, manuais de boa convivência cívica, práticas de piedade, coleção de falsas consolações, religiões económicas.

Qohélet, como e juntamente com Job, é o grande inquisidor e refutador da religião contributiva, da ideia radicadíssima na sua (e nossa) cultura que o justo é recompensado com bens, saúde, filhos e providência e que o ímpio é desventurado e pobre porque é culpável de uma culpa, sua ou dos seus antepassados. Ler Qohélet, despidos e desarmados, é, portanto, antídoto contra a nova-antiga idolatria meritocrática que está a invadir, sem encontrar qualquer resistência, as empresas, a política, a sociedade civil e, também, até alguns setores das Igrejas.

As ideologias são ações comuns, mas são também criações individuais, porque cada crente produz a própria ideologia, que se instala no coração da experiência religiosa. Fé e ideologia crescem juntas, entrelaçadas uma na outra, e só um trabalho duro e determinado pode – e deve – ocasionalmente, distinguir, separar, fazer penetrar a lâmina nas fibras para cortar e curar, e recolocar-se, pobre e manso, à escuta.

A produção de falsas (porque fáceis) consolações é um fruto típico de uma fé tornada ideológica. Inventam-se paraísos artificiais, seguros e claros, em vez do verdadeiro, incerto e misterioso e geram-se ilusões apenas porque se é incapaz de elaborar as desilusões de qualquer fé não vã.

A Bíblia – hebraica e cristã – quis conservar Qohélet entre os seus livros mais preciosos, um livro onde não está nem YHWH nem a fé dos Patriarcas, não se vê a terra prometida, nem há Moisés, nem a sua Lei. Se, na Bíblia, está Qohélet, então no coração do humanismo bíblico há também lugar para quem, como “O que fala na assembleia” (isto é, Qohélet, o Eclesiastes), coloca à vida e à fé as perguntas mais extremas, radicais, nuas, escandalosas – algumas tão inconvenientes que os vários editores e redatores do texto sentiram a necessidade de as corrigir.

A presença de Qohélet no coração da Bíblia e da tradição hebraico-cristã é uma ferida, porque a travessia de Qohélet não é geradora se não sentimos a dor – nossa e do mundo – à medida que encontramos as suas palavras. Mas, como muitas feridas fecundas, esta presença é também uma abertura da Bíblia para cada homem e cada mulher que procura a verdade, mesmo para quem não sente a necessidade de dar um nome religioso a esta sua procura. Da janela de Qohélet, o humanismo bíblico sai e chega ao último duvidoso ser humano amante e investigador da verdade; mas, através desta janela, é toda humanidade que entrou e continua a entrar dentro da Bíblia e, uma vez entrada, a tornaram mais bela, mais humana, mais verdadeira com a sua humanidade honesta, revestindo-a também com as carnes de quem, da Bíblia, não compreendia Isaías ou o Evangelho de Marcos, mas compreendeu e amou o cantor da “vanitas”.

O livro de Qohélet foi escrito em Israel, durante a conquista grega, quando um grande império estava a impor a sua língua e a sua cultura. Alguns intelectuais hebreus estavam fascinados com aquele novo mundo e com os seus valores de procura da felicidade, do lucro, dos bonitos corpos, do prazer e da juventude. Porém, havia entre os seus contemporâneos quem via nesta “globalização” a crise profunda da cultura de Israel. Qohélet estava entre estes últimos e, por isso, a leitura do seu livro é meditação utilíssima, bastante necessária, para quem, hoje, numa nova idade de globalização e de uniformização de valores, quer pensar, em profundidade, na natureza do novo mundo e dos seus dogmas.

Qohélet é um inestimável companheiro de viagem para quem procura olhar de modo não ideológico e impiedoso os dogmas e os cultos enganadores dos impérios que chegam, para nos dominar. A grande força deste livro antigo está, portanto, na sua capacidade única de olhar, na sua nudez, o que parece novo e fascinante, sem ceder um centímetro moral à necessidade de consolação frente ao mundo tal qual é. Este autor anónimo antigo teve a força e a coragem ética e espiritual de colocar perguntas radicais ao seu mundo em crise, que conseguem falar com uma força e profundidade imensas, também hoje, também a nós. Desperta o desejo de pensar sem medo e com coragem aos próprios impérios e aos servidores dos ídolos do prazer e do dinheiro.

Qohélet é guia leal na edificação e uma vida adulta, não ideológica, verdadeira, um amigo incómodo e, por vezes, desconcertante, que nos ama porque não desiste enquanto não tentamos responder às suas perguntas dolorosas e libertadoras.

Quando chega o dia – e ai de nós se não chega! – em que o véu da primeira fé cai e a vida se revela, tudo o que constituiu o enredo da nossa experiência espiritual e ideal parece comédia ou tragédia. Os companheiros de ontem tornam-se apenas atores e máscaras de um guião escrito por ninguém, uma peça de teatro do absurdo, connosco no papel de protagonistas. Encontramo-nos, subitamente, sós num palco vazio, com os cenários desmontados e arriados. Neste dia, dramático e esplêndido, aparecem sempre duas possibilidades. Podemos começar nós a escrever, desta vez propositadamente, um guião para uma nova comédia-tragédia. E, assim, transformamos aquele palco que, até ontem pensávamos que era a vida verdadeira, na nossa única nova vida. O teatro torna-se vida. Não suportamos a nudez do palco vazio e desolado, e tornamo-nos escritores, encenadores e atores da nossa comédia. Negamos e fugimos da realidade e, para sobreviver, entramos voluntariamente no nosso “The Truman show”. A segunda possibilidade está em querer iniciar, finalmente, a vida espiritual: saímos do teatro, pomo-nos a caminhar ao longo dos caminhos do mundo, e começamos a procurar uma nova fé, nas dores e alegrias verdadeiras da gente verdadeira à nossa volta.

Descobrimos Job, os Salmos, e começamos a ser lidos e cantados por eles. E, depois, por vezes, encontramos Qohélet e, com o barro do seu nada verdadeiro, começamos a fazer tijolos para construir a nossa nova casa. Qohélet não nos guia na construção de uma catedral; apenas nos faz obreiros de uma casa dos homens que já não querem viver dentro de uma ficção consoladora. Uma casa sóbria e sem ídolos onde, um dia, talvez, possamos reaprender também a rezar.


* Luigino Bruni
In "Avvenire"
Trad.: António Antão
Publicado aqui em 27.04.2016

28 abril 2016

Músicas dos dias que correm



Devido ao adiantado da hora não tive oportunidade de ouvir por inteiro este vídeo oficial de Terra, o álbum de estreia de Marta Pereira da Costa, uma das únicas (ou a única?) mulher portuguesa a tocar guitarra portuguesa.

***

O raciocínio seguinte não se aplica a este disco, que não conheço. Não sei se é um disco de fado, ou se é um disco onde também se toca fado. Mas, como já qui o escrevi uma vez, o que é fado hoje em dia? A pergunta pode replicar-se no sentido do meu post de ontem: o que é Veneza? O que é Roma?

Num raciocínio muito radical, talvez o fado puro já não exista, a não ser tocado amadoristicamente nalgumas casas de fado. Perdeu-se a proximidade - talvez mesmo alguma pureza - com o advento da técnica, dos grandes recintos, da necessidade de ganhar novos públicos. Por outro lado, talvez Veneza pura já não exista. Pouco se ouve o italiano, antes uma babel de línguas ávidas de conhecer, de ver, de fotografar para mostrar aos amigos e colegas de trabalho. Talvez as cidades de hoje sejam uma construção arquitectónica, não uma construção sociológica.

Entre ser-se imobilista ou defender-se a pureza das coisas há um fio de cabelo. Não sei onde é a fronteira. O que sei é que se discute a redução do turismo apesar das vantagens para o PIB; o que sei é que se discute (ou eu discuto, atirado a ninharias que não interessam) se o que hoje se chama fado ainda é fado. 

Para já fiquemos com Marta Pereira da Costa, que eu tive o gosto de ouvir ao vivo no Estoril. Como diria Mark Twain - e podia ser um bom slogan para o disco - comprem Terra; já não se fabrica.

JdB

27 abril 2016

Da repetição e da recordação

Para Platão, todo o conhecimento é reminiscência. Para Kirkegaard, repetição e recordação são um mesmo movimento, mas em sentidos opostos: aquilo de que nos recordamos, já foi; a repetição propriamente dita é uma recordação para a frente. Por isso a recordação provoca nostalgia, tristeza, enquanto que a repetição, em sendo possível, torna o Homem feliz. 

O tema da repetição embateu-me na testa num dia qualquer da semana passada, tendo-se reavivado este fim de semana quando li um artigo no Observador sobre turismo. Eu próprio repeti viagens por gosto, por força das circunstâncias, por afecto. Como já o afirmei, uma parte substantiva de mim viaja em busca do regresso a casa. Repetimos viagens, talvez não repitamos as emoções - a nossa circunstância é diferente, os sítios estão diferentes, os nossos sentidos são diferentes. E no entanto, grande parte das cidades - pelo menos as zonas históricas - permanecem inalteradas de há muitos anos para cá. 

Para Kirkegaard havia dois tipos de viagens: as interiores e as exteriores. E havia dois tipos de viajantes: (i) os que numa cidade vão conhecer o que é suposto conhecer-se; e (ii) os que conhecem intensamente uma parte, ignorando sítios paradigmáticos (p. ex., ir a Paris e desconhecer a Torre Eiffel). Com o avançar do tempo as minhas viagens perderam um pouco o pendor cultural (museus, palácios, etc.) para se debruçarem mais sobre a vida das ruas. Comecei a privilegiar estar sentado numa esplanada e ver gente a passar, adivinhando-lhes a vida. Nada de muito original, portanto. 

Veneza (Photo by Ian Gavan/Getty Images)

Com excepção de Londres, a minha viagem mais repetida talvez tenha sido Roma: fui em 1982 ou 1983; repeti em 1986 e por alturas de 2002 ou 2003, num âmbito profissional. Visitei-a pela última vez em 2011, parece-me. Em 1982 sentava-me calmamente nas esplanadas, nas escadarias, na Trinitá dei Monti, na Piazza Navona, na Fontana di Trevi. Comia na rua ou em tascas, tentava exercitar o meu italiano com os locais. Em 2011, quase 30 anos depois, o que mudou nesta viagem repetida? A Roma arquitectónica estava lá toda, inalterada. A Piazza Navona continuava a ser, com as suas fontes, uma das mais bonitas praças do mundo; a Fontana di Trevi ainda tinha moedas lançadas pela superstição ou pela tradição. O que mudou, repito? O ruído ambiente: nas esplanadas ouve-se chinês, americano, francês, castelhano; atirar uma moeda para uma fonte é um exercício de atleta com treino, porque não há qualquer garantia de que a moeda, que é atirada de tão longe, caia onde deve. O que mudou de Roma? O que mudou na nossa relação com Roma quando o ruído ambiente também muda?

Volto ao artigo do Observador, lembrado de dois amigos que, na semana passada, foram a Veneza pela primeira vez. Alguns números: nos últimos 30 anos, 46% da população de Veneza saíu da cidade - hoje são apenas 55.000; as previsões mais aterradoras apontam para que em 2030 não haja gente local a viver naquela cidade; há 22 milhões de visitantes por ano, sendo que apenas 2 milhões visitam museus pelo que, depreendo, o resto anda pelas ruas e canais. Ouve-se falar italiano em Veneza? E que impacto tem isso na forma como andamos de vaporetto ou nos sentamos numa esplanada na Praça de S. Marcos?

A ideia de viajarmos para conhecer a vida local talvez tenha os dias contados, se entendermos vida local como interagir com os nativos. Não há garantia, ao contrário do que diria Kirkegaard, de que a repetição nos faça mais feliz; para um tipo de viajante, e relativamente a determinados locais, sobra-nos a recordação. Volta, nostalgia, estás perdoada.

JdB    

26 abril 2016

As escolhas do gi.

#21 Daniel Know, Blue Car

Daniel Knox assina um disco homónimo, aqui representado por esta canção, "Blue Car". Ninguém sabe bem de onde apareceu este cavalheiro, para além das referências óbvias que se encontram na internet. Digamos que é mais um tipo, americano americano, que saíu, por um momento, da obscuridade, por um qualquer alinhamento dos astros. Música espectral, dorida aqui e ali, belíssima. Apostamos que a discoteca lá de casa deste rapaz é coisa para valer a pena. Palpites..



***
# 22 Glockenwise, Heat

Os rapazes de Barcelos continuam de pé no acelerador. Naturalmente mais maduros, com mais "savoir faire", deram-nos, este ano, um novo disco, no qual brilha esta "Heat", canção de puro roquenrole vitaminado, com "riffs" potentes, uma melodia orelhuda e aquele dose de energia e de electricidade que faz a diferença, neste particular campeonato.

25 abril 2016

As obras dos Museus do Vaticano que narram a misericórdia de Deus


O papa Francisco, desde o início do seu pontificado, não cessa de repetir e mostrar-nos que «Jesus de Nazaré com a sua palavra, com os seus gestos e com toda a sua pessoa revela a misericórdia de Deus»: se se deseja saber qual é a intenção de Deus, como age, então - antes de tudo - é preciso deter-se a observar Jesus, como se move de compaixão e olha, toca e reergue os pobres e os desalentados da história, como oferece perdão, como sabe tomar conta de crianças, mulheres e homens de muitos modos feridos, para os restituir à vida e aos seus afetos mais queridos.

«No curso dos séculos a arte soube narrar com felicidade a misericórdia de Deus, o seu cuidado paciente e tenaz pelo feliz cumprimento da vida de cada ser humano. Nos Museus do Vaticano, que eu tenho o privilégio de dirigir, agrada-me ficar bastante tempo diante de algumas obras que, a meu ver, a representam de modo exemplar.» É com estas palavras que abre a conversa o professor Antonio Paolucci, de 77 anos, desde 2007 à frente dos Museus do Vaticano.

«A primeira obra que desejaria citar é a "Lamentação sobre Cristo morto", de Giovanni Bellini, o veneziano Bellini, dito o Giambellino, um dos maiores pintores de todos os tempos, prossegue o responsável. «Esta magnífica pintura representa o Cristo deposto da cruz; rodeiam-no José de Arimateia e Nicodemos, os piedosos judeus que tomaram sobre si o cuidado do seu corpo após a morte e o depuseram no sepulcro. E depois, em primeiro plano, está ela, a Madalena, que entre as suas toma a mão do amado, num ato de dedicação total. Esta mulher, "a pecadora" por antonomásia, que na iconografia católica é sempre belíssima e vestida com roupas preciosas, chora a morte de Jesus. É preciso olhar atentamente o seu rosto terno, apaixonado, amoroso, e o seu gesto: as mãos que apertam aquelas agora inertes do Cristo são o foco da composição, o elemento mais comovente: aí vejo a misericórdia, o poder e a beleza regeneradora do perdão de Deus».


Deambulando pelas salas dos museus embate-se numa obra que, afirma Paolucci, entre todas as que estão expostas, poderia constituir o símbolo do Ano da Misericórdia: a "Transfiguração" de Rafael. A pintura, a última executada pelo mestre de Urbino, representa dois episódios narrados seguidamente nos Evangelhos sinóticos: ao alto, a transfiguração de Cristo, rodeado dos profetas Moisés e Elias, e em baixo, em primeiro plano, a multidão e o rapaz que será por Ele curado no regresso do Monte Tabor. «Considero a "Transfiguração" a obra-prima das obras-primas», diz o professor. «É a pintura que se coloca no vértice de toda a produção de Rafael, concluindo-a e exaltando-a do ponto de vista cronológico e estilístico. A parte inferior da obra, caracterizada por tons escuros, dramaticamente realistas, quase à maneira de Caravaggio, é ocupada pelo drama de todos e de cada um, do medo, das paixões humanas, da esperança contrastada. O jovem possuído pelo mal, como todo o ser vivo debaixo do céu, espera ser libertado do infortúnio que o oprime e devasta. Os personagens que estão ao seu lado querem ajudá-lo, sabem que a sua salvação será também a deles. Mas só Cristo, transfigurado no Tabor, pode salvar. Na escuridão da vulnerável natureza humana - isto é o que Rafael quer narrar - resplandece o Salvador. Na parte alta da pintura triunfa a luz. A luz é vocábulo do Filho, por isso o seu rosto, belíssimo, resplandece como o sol do meio-dia. Cristo como sol que ilumina o mundo: Cristo que salva e perdoa».


Para Paolucci a Capela Sistina, com as obras-primas de Miguel Ângelo e de outros admirados artistas, como Pietro Perugino, Sandro Boticelli e Domenico Ghirlandaio, é uma paragem imprescindível em ordem à misericórdia divina. Lá, naquelas paredes, está tudo: as origens do mundo e o seu destino, o Antigo e o Novo Testamento, a incarnação do Filho e o seu ligame irreversível com o homem, o juízo para todos e para cada um, o ciclo total do catecismo e da vida, a da humanidade e a de cada um de nós. Na Sistina está contida a história da salvação, a história do olhar e do toque criador e misericordioso do Senhor. Aconselho permanecer entre estas obras pelo menos uma hora, e até mais. Num museu não é necessário ver tudo, correndo de uma sala para a outra, numa espécie de bulimia do belo e de consumismo cultural. É preciso deixar-se agarrar e encantar, sem pressa».

Cristina Ugoccioni 
In "Vatican Insider" 
Trad.: Rui Jorge Martins 
Publicado aqui em 22.04.2016

24 abril 2016

5º Domingo do tempo Pascal

EVANGELHO – Jo 13,31-33a.34-35

Quando Judas saiu do cenáculo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Agora foi glorificado o Filho do homem
e Deus glorificado n’Ele.
Se Deus foi glorificado n’Ele,
Deus também O glorificará em Si mesmo e glorificá-l’O-á sem demora.
Meus filhos, é por pouco tempo que ainda estou convosco. Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros. Como Eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros».

23 abril 2016

Pensamentos impensados

Braços de Morfeu
Se se dormir de óculos os sonhos tornam-se mais nítidos.

Fados
O Hilário saberia cantar poemas sérios?

Arquitonturas
Na altura da sua construção, as pirâmides do Egipto foram consideradas Arte Nova.

Linhas com que se cose
A nossa relação está por um fio, disse o dente ao fio dental.

Nova Física
Quanto pesa um litro de vácuo?

Estatísticas
Em 2015 apenas houve 1 assalto a hospitais; esta ano já se registaram mais 50%.

Sufrágios
Nas eleições para o Futebol Clube do Porto havia uma lista única, encabeçada por Pinto da Costa, que votou. Que pena o voto ser secreto para se saber se votou no Pato Donald ou nos 7 anões. Ridículo! É uma espécie de juiz em causa própria.

Lixívia vs. tombos
Os Bancos branqueiam? Não, os Bancos baqueiam.

SdB (I) 

22 abril 2016

Do passado e do futuro

Heráclito, grego que viveu e morreu por alturas do Século V a.C., percebeu que a a água do rio que passava por ele nunca era a mesma. Para o filósofo, só a mudança e o movimento são reais. Mais de dois mil anos depois, aparentemente sem nenhuma conexão entre ambos os personagens da cultura mundial, Francisco de Goya, espanhol, desenhava nas paredes de sua casa um quadro terrível, intitulado qualquer coisa como Saturno devorando os seus filhos. De acordo com uma interpretação tradicional, o quadro representa Chronos que, receoso de perder o poder para os seus filhos, os comia à nascença.


O pintor espanhol ter-se-á baseado num quadro de Rubens sobre o mesmo tema 


O que liga Heráclito e Goya (ou Rubens)? Aparentemente nada, a não ser que entendamos que Chronos não devora o futuro mas o passado. Os filhos não representariam o o porvir, o caminho pela frente, mas apenas o passado. Chronos devora o passado para o passado não o devorar a ele. Tal como Heráclito, o tempo flui, só a mudança e o movimento são reais. A água que no rio me banha os pés já não volta a banhar-me.

Os quadros são incomodativos pela sua violência gráfica. Não sei mesmo qual deles incomodará mais. Resta-nos, por isso, uma interpretação mais desafiante que aligeire o sangue que escorre e a carne que é repuxada. Imaginemos Saturno - ou Chronos - não a alimentar-se do que já foi, o que lhes alimentaria a nostalgia, mas a alimentar-se do que está para vir. Algum futuro, como sabemos, só se constrói eliminando o passado. E eliminar pode não significar matar, mas apenas guardá-lo no sítio certo.

JdB

21 abril 2016

Do recato *

Educação, sempre. Imprescindível a simpatia. Talvez simplicidade, que não deve confundir-se com simplismo. A certeza de que um apelido ou um berço nos dão deveres, mais do que direitos. Com o mesmo à-vontade comer codornizes no seu sarcófago com um príncipe e migas gatas com um trabalhador do campo.

Matilde explica tudo isto a uma sobrinha usando uma voz serena sem ser paternalista, convicta sem ser irredutível. Compõe o vinco de umas calças elegantes, para que fique rigorosamente paralelo à canela,  e roda no dedo um bonito anel que lhe foi oferecido por uma avó, tinha ela 18 anos. Agora, passados quase 40, a jóia mantém a sua elegância discreta, sinal da intemporalidade de algumas coisas. E continua, para explicar o que é, no seu entendimento, frisa, ser-se educado e, além disso, ser-se fino, um conceito que ela usa como o cardamomo – com parcimónia. 

Uma vida discreta, sem alardes do que se tem ou faz. O pudor na revelação pública da sua vida, mantendo dentro de casa o que deve estar dentro de casa. Saudar quem está à sua frente segundo os hábitos do outro. Não evidenciar a diferença que diminui. Ser elogioso sem ser bajulador. Perceber a diferença entre requinte e ostentação, porque até na humildade se pode ser requintado. Vestir-se sobriamente, o que não é contraditório com elegância. O tom de voz certo e uma linguagem adequada, que não ofenda pela vulgaridade nem pela sobranceria.

Matilde é dona de um antiquário que herdou e desenvolveu. Quando está na loja recebe qualquer cliente com uma amabilidade e um sorriso genuínos. Usa o mesmo tom de voz para explicar quem eram os bons gravadores, a impossibilidade de se encontrar uma Nossa Senhora de Fátima do século XVIII, o menor valor dos retratos (mesmo sendo um Columbano), ou que não há tamanho abaixo quando se fala de vasos chineses da dinastia Ming... A vida corre-lhe bem, financeiramente desafogada, socialmente rica, dentro dos parâmetros que ela tão claramente – sem notas de imposição – explicou à sobrinha.

Uma vez por mês Matilde agarra no carro – um Mercedes discreto, preto – e segue para fora de Lisboa. A empregada da loja informa que a Sra. D. Matilde foi tratar de assuntos profissionais e por aí se fica, até porque não sabe mais. No entanto, foi-lhe explicado o valor da sobriedade comercial, porque a aquisição de antiguidades é feita, muitas vezes, à custa da debilidade financeira de famílias que acabaram em apartamentos modestos, cartões de crédito sucessivos, noites agarradas ao ferro, memórias de palacetes e criadagem emolduradas em casquinha nacional. Matilde é recatada, porque ser-se educado é não comentar  a desgraça alheia.

Ao fim do primeiro dia Matilde está em Toxofal de Baixo, nas proximidades da Lourinhã. Estaciona o carro na garagem de um prédio e entra discretamente, resguardada por trás de uns óculos escuros de marca. Utiliza o elevador para subir ao 3º esquerdo, toca à campainha que imita um gongo oriental e entra, depois de se assegurar que não foi vista. Dez minutos depois está vestida com uns hot pants vermelho sanguíneo, um top cor-de-rosa com um decote de uma generosidade que já não se usa, e um anel grande numas unhas tingidas de azul turquesa. Faz amor com Abílio, um empregado de café que ostenta um bigode preto fino, umas patilhas bem aparadas e um problema sério de joanetes. Matilde grita muito, porque gosta de verbalizar o prazer que recebe. Depois, deitada na cama e revelando uma nudez onde a expressão pudor não tem lugar definido, responde a perguntas que ela própria fez, para uma revista social (O Toxofal Elegante) que ela inventou. O Abílio é o homem da minha vida; agora sim, estou feliz; estamos a amadurecer a nossa relação mas há uma cumplicidade muito grande; o Abílio ajuda muito em casa, cozinha com muita paixão..

O sol põe-se em Toxofal de Baixo. Matilde veste um fato de treino, calça umas havaianas e avança para a cozinha, porque é dia de bola e alguém tem de lavar a loiça da semana. Restam-lhe dois dias, e há tanto amor para fazer... Não sabe se voltará mais, porque há um presságio de morte na sua relação com Abílio. Tudo começou com umas aulas de kuduro nos bombeiros locais e com a professora, vinda expressamente  de Luanda, cuja generosidade de nádegas levou o empregado de café a revirar os olhos. E isso, no fundo, é o princípio da lascívia e da traição. 

A menina pode ter fetiches à vontade. Não pode é falar neles, porque as pessoas finas não falam dessas coisas...

JdB

Nota: publicado originalmente em 10.05.2012

20 abril 2016

Das diferenças

Fotografia de Alfredo Cunha

Porque são temas novos, ou sobre os quais nunca discorri, ou ainda relativamente aos quais tenho dificuldades de entendimento profundo, é frequente apanhar ideias no ar, e daquilo que oiço nas aulas reter apenas um fragmento de qualquer coisa. No outro dia foi a diferença entre pesar e dor, palavras sobre as quais nunca me ocorreria encontrar diferenças substantivas. Ao que parece - ou segundo Kirkegaard - no pesar percebemos o sofrimento alheio, enquanto que na dor sentimos o sofrimento alheio. Explicando com dois exemplos simples: um ateu sente pesar pelo sofrimento de alguém que tenha perdido a fé, porque não tendo fé, não saberá o que é perdê-la. Um Pai sente dor quando alguém perde um filho porque, sendo Pai, imaginará o que é esse sofrimento em si.

Abaixo alguma diferença sobre lembrar ou recordar.   

JdB

***

Lembrar ou Recordar

A recordação não tem apenas que ser exacta; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da recordação. 

Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação. 

A diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O ancião perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo com a representação popular ele é profeta, é divinamente inspirado. A recordação é afinal também a sua melhor força, a sua consolação: consola-o com esse alcance da visão poética. 

A infância, pelo contrário, possui em grau elevado a memória e a facilidade de apreensão, mas não tem o dom da recordação. Em vez de dizer-se «a idade não esquece o que a juventude aprende», poder-se-ia talvez dizer: «o que a criança retém na memória, recorda-se o ancião». Os óculos do velho são feitos para ver ao perto. Se na juventude é preciso usar óculos, as lentes servem para ver ao longe, pois que à juventude falta a força da recordação, que consiste em afastar, em pôr à distância. Mas a recordação feliz da velhice tanto quanto a feliz capacidade de apreensão da criança são dom da natureza, uma graça que concede a sua preferência aos dois períodos mais desprotegidos da vida, que contudo, em certo sentido, são também os mais felizes. Mas é também por isso que a recordação, tal como a memória, é por vezes apenas detentora de casualidades. 

Soren Kierkegaard, in 'In Vino Veritas'

19 abril 2016

As escolhas do gi.

# 19 John Grant, Disappointing

Este moderno trovador, antiga voz dos The Czars e belíssimo autor, já em registo individual, do disco "Queen of Denmark", honra-nos com mais umas quantas canções que, dúvidas houvesse, nos elucidam sobre um homem que combina superlativamente orquestrações luxuosas e de inegável pendor clássico, uma voz quase operática mas sempre contida, letras manifestamente confessionais, melodias que ficam no ouvido.. Escutem esta faixa e perceberão o que queremos dizer. Nada "disappointing", garantimos.



***

# 20 Márcia, A Insatisfação

A nossa "girl next door" favorita - ou uma das, vamos lá.. - regressou, em 2015, com mais um disco que evidencia plenamente a sua capacidade de compositora, letrista e intérprete, cada vez com maior domínio da sua arte. Música delicada, aparentemente frágil, de uma beleza comovente, que nos chega em pezinhos de lã, mas que nos agarra e morde por dentro.

18 abril 2016

Vai um gin do Peter’s?

O que seria da humanidade sem o tempo. Não é só o vinho do Porto que sai favorecido. Também a arte precisa do efeito do tempo para ficar limpa de toda a espuma atordoante do momento e recuperar o seu sentido profundo. No fundo, obter o privilégio de mostrar em pleno o que é, depois de esfumadas as aparências.

Uma alegoria poética contava que numa ilha distante, habitada pela Felicidade, pela Tristeza, pelo Conhecimento e por muitos outros atributos, correu a notícia de que aquele pequeno pedaço de terra se iria afundar. Todos se precipitaram a arranjar maneira de fugir dali, em barcos, à boleia, como fosse possível. Só um tardava em levantar ferro – o Amor, que queria resistia até ao limite, para lá do razoável. Quando a água quase submergia o pouco que restava da ilha, começou este último resistente a pedir ajuda aos que ia avistando, na sua azáfama para se porem a salvo. Mas as respostas não eram encorajadoras. Da Riqueza, que viajava num iate de luxo, ouviu: Não há espaço; aliás, já estou com excesso de peso. Referia-se à carga cheia de preciosidades que levava consigo. A Vaidade, no alto do seu veleiro lindo, explicou-lhe: Nesse estado encharcado, sujavas-me o barco. Tem paciência... Nem a Tristeza estava disponível: Oh Amor, estou tristíssima. Não consigo estar com ninguém -- preciso de ficar sozinha. A própria Felicidade passou pelo Amor, mas estava tão radiante que nem ouviu o pedido de socorro! Quando já não contava com ajudas, alguém de muita idade disse-lhe: Eu levo-te. Vem comigo! O Amor sentiu-se tão agradecido e feliz, que se esqueceu de perguntar o nome do seu salvador.

Chegados ao porto, o navegador desconhecido seguiu o seu caminho, discretamente. Só nesse momento o Amor se deu conta de que tinha perdido a oportunidade de saber quem o salvara, na vigésima quinta hora. Lembrou-se, então, de recorrer a outro amigo, mais velho e sábio, o Conhecimento, para tentar descobrir.  A resposta foi imediata: O Tempo. 

Mas porquê o Tempo?, espantou-se o Amor. 

Porque só o Tempo é capaz de compreender como o Amor é grande e tão necessário!

Aproveitando um saudável hiato temporal de cerca de meio século, o National Film Registry dos Estados Unidos decidiu revisitar a produção de Hollywood para escolher as obras que mereceriam cuidados especiais de arquivo, para chegarem nas melhores condições às gerações vindouras. Na lista dos filmes imperdíveis entrou aquele que acompanha a biografia de um homem intemporal ou, melhor dito, de todos os tempos, conforme reza no título da obra dedicada a Thomas More: «A Man for all Seasons». De 1966, este título em inglês arcaico cita um conterrâneo de More – Robert Whittington – que, em 1520, lhe elogia a integridade e as raras virtudes, considerando-o por isso apto a enfrentar qualquer circunstância histórica, qualquer época.

More é conhecido pelos seus méritos profissionais, que impressionaram o difícil Henrique VIII e intimidaram Cromwell, além de outros pares do Reino, vários deles a conviver mal com o seu êxito pessoal e político. Não é pouco ter sido o primeiro Chanceler do Reino leigo e, ainda por cima, escolhido por um monarca tão rigoroso quanto caprichoso. Também não é pouco, os seus calhamaços sobre figuras históricas terem inspirado Shakespeare. “Ricardo III” é um dos exemplos.

S.Thomas More retratado por Holbein, o Jovem (1527).

A somar à envergadura intelectual, à erudição e à notável sabedoria de vida, More possuía uma cortesia e um charme que faziam dele uma companhia extraordinária. Numa época de transportes rudimentares, Thomas M. arranjou amigos por toda a Europa ocidental, nomeadamente Erasmo de Roterdão, que deixou escrito o quanto apreciava conviver com a família do inglês: «Verdadeiramente, é uma felicidade conviver com eles». 

Como pai e marido foi também exemplar, educando os quatro filhos com um esmero inédito, incluindo as filhas no ensino dado aos rapazes, que tinha disciplinas muito variadas: latim, grego, lógica, astronomia, medicina, matemática e teologia. O seu temperamento jovial e divertido contribuíam para o ambiente animado da casa de família, sempre repleta de amigos de todas as idades. Curiosamente, foi um genro o primeiro a deixar escrita uma biografia sobre More. 

Entre as suas múltiplas qualidades, foram a serenidade e o sentido de humor finíssimo que ficaram mais associados à sua personalidade, reconhecido inclusive pelos diversos adversários que pululavam no mundo bafiento da corte de um rei voluntarista e belicoso. Calha que o humor é dos atributos que quadra pouco com os políticos (não vá apoucar-lhes a imagem) e q.b. desvalorizado nos santos de quem se conhecem episódios divertidos, como se pudesse diminuir-lhe o grau de heroísmo e bravura. À parte de prováveis equívocos sobre o conceito de santidade, precisamente o humor é um traço dominante em More, tendo-lhe sido de extrema utilidade em momentos críticos da carreira pública, enquanto Chanceler. Desempenhou-a de forma tão harmoniosa e valorosa que foi escolhido para Patrono dos políticos e governantes.

Algumas das suas tiradas são antológicas, revelando uma riqueza de perspectivas, que ajudam a explicar o alcance profundo e incisivo que o humor pode ter.

Seguem-se um par de citações atribuídas a Sir Thomas More, que foi pródigo a escrever, sendo a sua obra mais célebre a «Utopia». Os meses passados na prisão na Torre de Londres, não só não lhe ensombraram a boa disposição, como serviram para pôr a escrita em dia e multiplicar os documentos legados à posteridade. E deram uma boa ajuda ao argumentista (Robert Bolt) do filme e da peça de teatro de «A Man for all Seasons», ao construir os diálogos para a figura histórica do Chanceler do Reino:  

«I neither could nor would rule my King. But there’s a little... little, area... where I must rule myself. It’s very little—less to him than a tennis court.» – a tentar consolar a mulher explicando-lhe por que não podia ceder ao que considerava ser um capricho perigoso do soberano. 

A um conhecido a quem More aconselhou a carreira do ensino: 
Sir Thomas More: Why not be a teacher? You'd be a fine teacher; perhaps a great one.
O interlocutor: If I was, who would know it?
Sir Thomas More:  You; your pupils; your friends; God. Not a bad public, that.

A um amigo, o duque de Norfolk, que o instava a desistir do braço de ferro com o rei, ao menos em nome da camaradagem: 
Duque:  Oh confound all this.  I'm not a scholar, I don't know whether the marriage was lawful or not but dammit, Thomas, look at these names! Why can't you do as I did and come with us, for fellowship!
Sir Thomas More: And when we die, and you are sent to heaven for doing your conscience, and I am sent to hell for not doing mine, will you come with me, for fellowship?

Ainda a Norfolk, exemplificando com ironia onde cada um encontra os limites entre a obediência à autoridade e a zona inviolável da consciência:
Sir Thomas More:  Have I your word that what we say here is between us two?
Duque:  Very well.
Sir Thomas More:  And if the King should command you to repeat what I may say?
Duque:  I should keep my word to you.
Sir Thomas More: Then what has become of your oath of obedience to the King?
Duque:  You lay traps for me!
Sir Thomas More:  No, I show you the times.

Num diálogo muito construtivo com a filha e o genro, a quem escreveu inúmeras cartas, a desconstruir os preconceitos sobre bons e maus e a típica tentação da justiça directa e imediata. Educativo até ao fim:
Margaret More: Father, that man's bad.
Sir Thomas More: There's no law against that.
William Roper:    There is: God's law.
Sir Thomas More: Then God can arrest him.

Com graça, observava ao genro (William Roper), que veio a escrever a primeira biografia de More:  
«Now, listen, Will. Two years ago you were a passionate churchman. Now you're a passionate Lutheran. We must just pray that when your head's finished turning, your face is to the front again.» 

Nas diatribes armadilhadas e duras com Cromwell, More conjugava rigor e habilidade, mantendo o discernimento e até um distanciamento corajoso a enfrentar o cerco em que alguns o tentavam enredar, invejando (entre outras más razões) a estima que o rei tinha por ele:   
Sir Thomas More: You threaten like a dockside bully.
Cromwell:   How should I threaten?
Sir Thomas More:  Like a minister of state. With justice.
Cromwell: Oh, justice is what you're threatened with.
Sir Thomas More: Then I am not threatened.

A contrapor ao Cardeal Wolsey,  que pactuava com o novo relacionamento do rei com Ana Bolena, pouco tempo depois decapitada, como More: 
Cardeal: That... thing out there; at least she's fertile.
Sir Thomas More: She's not his wife.
Cardeal: No, Catherine's his wife and she's barren as a brick; are you going to pray for a miracle?
Sir Thomas More: There are precedents.

Defendendo-se vigorosamente das insinuações caluniosas de Cromwell: «I am the king's true subject, and I pray for him and all the realm. I do none harm. I say none harm. I think none harm. And if this be not enough to keep a man alive, then in good faith, I long not to live.»

À hora da morte, ainda brinca com o carrasco por o enviar para Deus. Nesse momento derradeiro, rezou pelo rei e por todos os súbditos do seu país muito amado, deixando uma última mensagem para clarificar o seu ponto, a aplicar à letra o sábio lema sobre a divisão de poderes –  a César o que é de César…  
«I am commanded by the King to be brief, and since I am the King's obedient subject, brief I will be. I die his Majesty's good servant but God's first.»

Ao Arcebispo Cranmer, que reage ao recado de More ao seu algoz: 
Começou por dizer More ao carrasco, dando-lhe uma moeda: I forgive you right readily. Be not afraid of your office; you send me to God.
Contrapõe o Archebishop:  You're very sure of that, Sir Thomas?
Sir Thomas More:  He will not refuse one who is so blithe to go to him.

Ficará para um próximo gin o filme de Zinnemann «A Man for all seasons», premiado com 6 Óscares, a incluir os principais, além de vários Globos de Ouro, Baftas e ainda um prémio do Festival Internacional de Moscovo, no auge do comunismo e da Guerra Fria. Até a capital do império soviético se vergou à qualidade do filme-biográfico de um homem de todos os tempos.  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

17 abril 2016

4º Domingo do Tempo Pascal (ou Domingo do Bom Pastor)




EVANGELHO – Jo 10,27-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo, disse Jesus:
«As minhas ovelhas escutam a minha voz.
Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me.
Eu dou-lhes a vida eterna e nunca hão-de perecer
e ninguém as arrebatará da minha mão.
Meu Pai, que Mas deu, é maior do que todos
e ninguém pode arrebatar nada da mão do Pai.
Eu e o Pai somos um só».

16 abril 2016

Pensamentos Impensados

Fernando Pessoa - o verdadeiro face-book [Fotografia de Ana da Cunha de Alvim sob ideia de SdB(I)]

Chinesices
Comprei uma gabardina na loja dos chineses; quando não chove é impermeável.

Brotoejas
Tinha uma comichão horrível na cabeça; coçava-a com unhas e pentes.

Encolhimentos
Contrair matrimónio: diz-se quando um dos cônjuges morre e o casal fica mais pequeno.

Modernismos
Os meus Pais, frase correcta.
As minhas mães, até mete nojo.

Nome...acções
Os Partidos, quando chegam ao poder, põem os cargos à frente dos boys.

Repousos
Enquanto a Troika vai e vem, folgam os Costas,

Despensamentos pensados
O Panamá é o país com a taxa mais elevada de residentes a viver no estrangeiro.
(enviada por SdB (II).

SdB (I)

15 abril 2016

Da genética

Nota prévia: muito embora o tema seja da ordem do quotidiano das pessoas, a motivação para este post não é pessoal; apanhei o tema ontem, numa aula, e escrevi-o a correr antes do jantar.

***

Seguramente que já todos nós dissemos ou ouvimos dizer a frase de alguém referindo-se a um dos seus progenitores: só espero é não ficar como ele / ela... Isto significa que há uma determinada característica ou feitio dos nossos Pais que, de facto, não queremos herdar. Algo que detestamos. Estou certo de que dizemos isto dos nossos Pais, mas não estou certo de que tenhamos consciência que os nossos Pais disseram isto dos Pais deles, porque algumas características são como heranças bem geridas - passam de Pais para filhos. E eles, os nossos Pais, talvez não tivessem querido também ficar com aquela característica.

A genética é tramada. Cabe-nos o melhor e o pior, e é esse melhor e esse pior, temperado - bem ou mal - com outro sangue e com outras circunstâncias, que deixaremos aos nossos filhos. Curiosamente, quando temos consciência de que não queremos herdar determinada característica temos suficiente clareza de espírito e suficiente maturidade para poder avaliar se já temos esse defeito dentro de nós. Mas ao dizer só espero é não ficar como ele / ela estamos a usar uma espécie de desejo pagão ou fezada no destino, como se a genética má estivesse sujeita a encomenda ou fosse uma fatalidade de que gostaríamos de fugir, mas cujo destino não está nas nossas mãos. O problema é que está e, ao olharmos demasiadamente para os nossos Pais naquilo que eles têm de mau, esquecemo-nos que por vezes somos iguais.

Por outro lado, conheço gente suficiente para me ter cruzado com pessoas adictas, com pessoas coléricas, com pessoas que desapareciam da circulação de pai, mães e irmãos para nunca mais terem voltado, com pessoas que mentem sempre. Há um gene que provoca tudo isto ou algumas destas pessoas têm uma enzima a mais ou a menos? Há alguma motivação química por trás de pessoas que partem portas com uma fúria, jogam, bebem ou compram desalmadamente. 

Gosto de pensar que a genética é tramada, mas que felizmente há a genética e que isso depende de características que correm em famílias, não em substâncias desequilibradas nas nossas veias. Não chegarei a esse estado da técnica (não do progresso, porque me parece que não é) mas há o risco de um investigador descobrir a tal enzima e, com isso, diminuir a população de adictos ou coléricos no mundo. Um dia mais tarde eliminamos os preguiçosos em nome da produtividade e, logo logo a seguir, abatemos os orgulhosos ao efectivo, para depois atacar os que precisam de atenção e os que choram com mais facilidade.

JdB 

    

14 abril 2016

Das aparências

Macbeth, estreia no Lafayette Theatre (Abril de 1936)


All the world’s a stage,
And all the men and women merely players

As You Like It (William Shakespeare, 1564 - 1616)

***

Nos inúmeros cursos em segurança no trabalho que frequentei como formador ou como formando falava-se sempre nas aparências, dando exemplos concretos para explicar que nada do que parece pode, efectivamente, ser: os maus têm cara de mau? Os bons têm cara de bom? Seguidamente mostrávamos alguns retratos de pessoas completamente normais (o que quer que isso signifique): uma jovem loira com cara de namoradinha do liceu; um cavalheiro bem parecido que dava ares do nosso professor da faculdade; uma senhora de meia idade que poderia ser nossa tia, mais este e mais aquele... Um era serial killer, o outro tinha roubado milhões, outro ainda tinha raptado não sei quantas pessoas. No entanto, nenhum destes seres humanos tinha cara de facínora (o que quer que cara de signifique).

Que mérito tem o golfinho naquele seu sorriso de criança bem disposta? Nenhum. O golfinho tem cara de animal manso que, na realidade é. No outro lado da barricada, o tubarão, com aquela dentição afiada, feroz e abundante, tem cara de animal potencialmente cruel que, na realidade, é. E se o tubarão tivesse cara de golfinho? E se o golfinho, pronto a brincar connosco no oceano ou nas piscinas do zoo marine tivesse tal e qual o fácies do tubarão do filme do Spielberg? Entre um cão de raça Labrador e um cão de raça Pitbull há uma diferença grande de ferocidade: um come, dorme, acompanha-nos, deita-se à lareira e faz-nos companhia. O outro, num acesso de mau génio, pode matar-nos ou ferir-nos com gravidade. As caras revelam essa diferença de temperamento? E se a Lassie que nos encantou enquanto crianças se parecesse com um Rottweiler? Somos nós que nos auto-sugestionamos?

***

Suponhamos agora que numa pequena terra de província alguém com um fetiche pelo cinema de acção queria fazer um pequeno 007. Era preciso escolher um James Bond e uma bond girl. Acontece que na vila em questão só há duas pessoas disponíveis: um rapaz gordo, baixo e sem pescoço, e uma rapariga com um problema de estrabismo forte. O agente dos serviços secretos de sua majestade deixa de ser um galã conquistador para ser um canastrão com figura de sapo; a bond girl já não tem uma sensualidade pecaminosa, mas uns olhos escuros voltados para dentro. Para quem nunca viu um 007, bond, james bond é protagonizado por uma barrica, talvez com acne.

No seu livro Wilhelm Meister, parece-me (apanhei esta ideia no ar, numa aula da semana passada), Goethe tem exactamente este raciocínio: se só há um actor coxo para representar o Hamlet, então o Hamlet é coxo. Isto é, o papel adapta-se ao actor, algo que parece inverter a prática habitual. O golfinho é manso porque tem cara de manso, não porque na criação do mundo tenha sido bafejado com essa característica. A bond girl é estrábica, não houve nenhum erro de casting.  

***

Não sei o que faço com o pensamento que deu origem ao texto. Pareceu-me apenas uma ideia forte, numa 4ªf quase chuvosa. Façam o favor de ser felizes.

JdB  
   

13 abril 2016

Poemas dos dias que correm

Fotografia de Robert Doisneau


Te quiero

Tus manos son mi caricia
mis acordes cotidianos
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro

tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldía

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

y por tu rostro sincero
y tu paso vagabundo
y tu llanto por el mundo
porque sos pueblo te quiero

y porque amor no es aureola
ni cándida moraleja
y porque somos pareja
que sabe que no está sola

te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente vive feliz
aunque no tenga permiso

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho mas que dos.

***

Táctica y Estrategia

Mi táctica es mirarte
aprender como sos
quererte como sos

Mi táctica es hablarte
y escucharte
construir con palabras
un puente indestructible

Mi táctica es quedarme
en tu recuerdo
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
pero quedarme en vos

Mi táctica es ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón ni abismos

Mi estrategia es
en cambio
más profunda y más
simple

Mi estrategia es
que un día cualquiera
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
por fin me necesites.

Mario Benedetti (1920 - 2009)

12 abril 2016

Duas Últimas

A semana passada foi uma semana diferente e difícil para a minha família próxima, por força de delicada operação cirúrgica a que um dos meus filhos se teve de submeter.

Posso dizer hoje com alguma segurança que o que havia a fazer correu bem, mas todos sabemos como nestas questões as fronteiras são as mais das vezes ténues e traiçoeiras.

Oportunidade também para alguma introspeção e reflexão sobre o que realmente importa e levamos desta vida, sublimadas pelos frequentes encontros que acontecem nestas situações com pessoas anónimas que fazem do serviço e bem aos outros o seu modo de vida. Agradeço a Deus (que tantas e tantas vezes desmereço, mas Ele lá sabe), na pessoa de todas elas, o feliz resultado alcançado.

Apetece-me por isso postar alguma coisa de diferente em relação aos registos habituais, mais ao estilo alternativo próprio da cultura hipster, linguagem da malta jovem lá de casa, seja isso o que for. Uma banda que mistura sons de origens diferentes, com um agradável resultado.

Espero que também apreciem.   


fq


11 abril 2016

Pensamento impensado

Comenda para uma rica encomenda
João Soares devia ser condecorado com a Ordem das Bochechas. 
Contemplava a família Soares e os ameaçados.

SdB (I)

Da exortação



Qual a diferença entre Miguel Strogoff e Madre Teresa de Calcutá? Qual a diferença entre Jean Valjean e o Padre Maximiliano Kolbe? Ou entre o Major Alvega e Thomas Moore? Não é, seguramente, o facto de uns serem franceses, outro ser luso-britânico, uns serem consagrados e outro um inglês. A diferença é apenas esta - independentemente da valentia ou dos actos de heroísmo de pendor diferente, uns existiram e outros não. Miguel Strogoff, Jean Valjean e o Major Alvega são personagens de ficção, a que se poderiam juntar tantos outros. Madre Teresa, Maximiliano Kolbe e Thomas Moore existiram de facto. De uns poderemos tirar lições de ética, valentia, despojamento, defesa das suas convicções. Os outros, porque nunca existiram, podem suscitar-nos momentos de emoção, apenas. Mas não nos podem dar lições.

Ler um romance pode implicar, como disse na semana passada, a suspensão da incredulidade. Fazemo-lo quando lemos os actos de heroísmo de quem não existiu. Quando lemos a vida de quem viveu a vida numa entrega ao próximo, de quem morreu por amor ao próximo ou na defesa dos seus princípios,  não suspendemos nada. 

***

Durante os últimos dias segui a conferência de imprensa e li o capítulo IV (O Amor no Matrimónio) da exortação Amoris Laetitia do Papa Francisco. E dei por mim a pensar, ao terminar a leitura desse capítulo, que é preciso, de alguma forma, suspender uma espécie de incredulidade. Podemos ler a exortação como um texto bonito, cheio de ideias fantásticas e correctas, que abre as portas para a correcção de uma situação que diminuía tantos e tantos divorciados recasados. Mas podemos ler a exortação com uma suspensão da racionalidade e da lógica e, nesse sentido, abraçá-la como algo que tivesse sido escrito exclusivamente para nós. O Capítulo IV foi escrito só para mim? Sim, se eu suspender essa espécie de incredulidade (porque de facto não foi) e o ler como uma conversa entre duas pessoas que se conhecem tão bem que não têm segredos uma da outra, identificando-se como mais ninguém se identifica no mundo.

Ler a exortação (ou pelo menos o capítulo IV) só faz sentido (sim, sim, tenho consciência da dimensão da afirmação) se for lida como um documento que nos é dirigido de forma pessoal e intransmissível. Porque só assim poderemos dizer: olha isto sou eu, ou então olha, isto é ela ou mesmo olha, isto somos nós os dois ou talvez eu já fui tudo isto.  Repito: o Capítulo IV (porque só li esse) foi escrito individualmente para cada um dos seus leitores. Quando o Manel o lê, lê algo que se refere a ele, que podia ter sido escrita na segunda pessoa do singular; quando a Maria o faz é a mesma coisa. Suspender a incredulidade na leitura desta exortação é abraçar a personalização do que é geral, é crer no impossível e, como isso, repito, deixar entrar o Sublime.

Talvez a suspensão total da incredulidade seja colocarmos todos no mesmo saco - Miguel Strogoff, o Major Alvega e a Madre Teresa, Jean Valjean juntamente com o Pe. Maximilano Kolbe e com Thomas Moore. Porque todos foram heróis e nos ensinaram alguma coisa. Mesmo os que não existiram.

JdB

   

10 abril 2016

3º Domingo do Tempo Pascal

EVANGELHO – Jo 21,1-19

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
Jesus manifestou-Se outra vez aos seus discípulos,
junto do mar de Tiberíades.
Manifestou-Se deste modo:
Estavam juntos Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo,
Natanael, que era de Caná da Galileia,
os filhos de Zebedeu e mais dois discípulos de Jesus.
Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar».
Eles responderam-lhe: «Nós vamos contigo».
Saíram de casa e subiram para o barco,
mas naquela noite não apanharam nada.
Ao romper da manhã, Jesus apresentou-Se na margem,
mas os discípulos não sabiam que era Ele.
Disse-lhes Jesus:
«Rapazes, tendes alguma coisa de comer?»
Eles responderam: «Não».
Disse-lhes Jesus:
«Lançai a rede para a direita do barco e encontrareis».
Eles lançaram a rede
e já mal a podiam arrastar por causa da abundância de peixes.
O discípulo predilecto de Jesus disse a Pedro:
«É o Senhor».
Simão Pedro, quando ouviu dizer que era o Senhor,
vestiu a túnica que tinha tirado e lançou-se ao mar.
Os outros discípulos,
que estavam apenas a uns duzentos côvados da margem,
vieram no barco, puxando a rede com os peixes.
Quando saltaram em terra,
viram brasas acesas com peixe em cima, e pão.
Disse-lhes Jesus:
«Trazei alguns dos peixes que apanhastes agora».
Simão Pedro subiu ao barco
e puxou a rede para terra,
cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes;
e, apesar de serem tantos, não se rompeu a rede.
Disse-lhes Jesus: «Vinde comer».
Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-Lhe:
«Quem és Tu?»,
porque bem sabiam que era o Senhor.
Jesus aproximou-Se, tomou o pão e deu-lho,
fazendo o mesmo com os peixes.
Esta foi a terceira vez
que Jesus Se manifestou aos seus discípulos,
depois de ter ressuscitado dos mortos.
Depois de comerem,
Jesus perguntou a Simão Pedro:
«Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes?»
Ele respondeu-Lhe:
«Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus: «Apascenta os meus cordeiros».
Voltou a perguntar-lhe segunda vez:
«Simão, filho de João, tu amas-Me?»
Ele respondeu-Lhe:
«Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas».
Perguntou-lhe pela terceira vez:
«Simão, filho de João, tu amas-Me?»
Pedro entristeceu-se
por Jesus lhe ter perguntado pela terceira vez se O amava
e respondeu-Lhe:
«Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus:
«Apascenta as minhas ovelhas.
Em verdade, em verdade te digo:
Quando eras mais novo,
tu mesmo te cingias e andavas por onde querias;
mas quando fores mais velho,
estenderás a mão e outro te cingirá
e te levará para onde não queres».
Jesus disse isto para indicar o género de morte
com que Pedro havia de dar glória a Deus.
Dito isto, acrescentou: «Segue-Me».

09 abril 2016

Pensamentos impensados

Actores
António Costa sempre na ribalta: é o Tó de palco.

A preto e branco
Mercado negro inundado de produtos brancos. Prevê-se grande aumento de mulatos.

Dar à costa
Uma entrevista em simultâneo ao Primeiro Ministro e ao Governador do Banco de Portugal seria um frente a frente ou um costa a costa?

Taco a taco
Gostava de ver um frente a frente entre António Vitorino e Marques Mendes; como são homens inteligentes, seria um duelo de gigantes.

Ausência de côr
José Eduardo dos Santos é preto. É claro!

Toma lá, dá cá
Dá Deus poses a quem não tem mentes.

Execuções não fiscais
Nos países onde não se pratica a pena de morte deveria haver um carrasco não executivo.

Penas
Passei a fotografia de uma pessoa que morreu para uma "pen". Tornou-se numa alma penada.

SdB (I)

08 abril 2016

Pensamento impensado

Bofetões
As ameaças do Ministro da Cultura não são próprias do neto de um padre. 
Se eu tivesse que dar bofetadas nas bochechas da família Soares só o faria de luvas antissépticas.

SdB (I)

Da contradição

M. C. Escher

- Eu sou um merda!- Gritara Paulo, sem largar o meu rosto.
- Merda sou eu! - Gritara o Tiago. - Sabe o que que eu sou? 
- Merda sou eu! - Insistira Paulo.
- Sabe o que eu sou? Um fracassado. Pronto.
- Merda sou eu!
- Eu sou um merda fracassado. Sou mais merda que você.
Paulo largara meu rosto e agarrara a cabeça de Tiago.
- Eu sou mais merda do que vocês todos!
- Porquê?
- Porque eu era melhor do que vocês todos. Eu era o melhor de todos! Pra vocês chegarem a merda, não precisou muito. Eu, sim, tive que cair. Eu é que sou mais merda. 

Luís Fernando Veríssimo (in O Clube dos Anjos, pg. 35)


(...) e as igrejas, as lojas, os homens, sendo por toda a parte iguais, não vale a pena partir para ir apenas e em definitivo, sentir a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas». 

Eça de Queiroz (in Correspondência, carta à Condessa de Ficalho, 1885).

***

Agora ando nisto: pego em frases ou pensamentos aparentemente desligados entre si e tento encontrar-lhes algo que os junte.  Não faço isto como auto-flagelação do tempo que ainda é pascal, mas como treino mental cujo resultado interessa a alguns que me apreciam, a outros que tentam encontrar uma brecha por onde introduzir um lança amavelmente crítica.

Gosto de Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro que é filho de Erico Veríssimo, e de quem li algumas obras, nomeadamente a referida acima. Gosto ainda mais do Eça, de quem li tudo, parece-me. O que têm as citações em comum, para além de serem a criação de dois grandes escritores? A expectativa, que o dicionário refere como esperança fundada em promessas ou probabilidades e o tombo gerado por essa expectativa. Ou, talvez melhor, a contradição, que é uma forma de expectativa (frustrada). A queda decorrente é mais um lugar-comum para enfeitar um blog de criatividade reduzida à 6ªf. Bastava-nos, para isso, a sabedoria popular do quanto mais alto se sobe maior é a queda

Paulo é mais merda do que todos, porque era o único que não era merda. Há aqui uma expectativa de sucesso que não se verifica e, nesse sentido, a derrota é maior. Se somos os melhores de todos como nos podemos tornar no mais merdoso de todos? É a expectativa - a contradição. Eça sente e melancolia que inspiram as multidões estranhas. Numa turba não é suposto encontrar-se a melancolia, porque há movimento, agitação, braços que nos tocam, rostos que nos fitam, movimentos que nos impedem de ficar quietos e de sentir a felicidade de estarmos tristes. Há uma expectativa de elevação do contentamento, não a possibilidade de nos sentirmos abatidos por uma multidão estranha. É a queda  - a contradição.  

A contradição faz tudo por nós: tem uma dimensão pedagógica, pois põe Paulo no sítio onde ele deve estar, que é no lugar do mais merdoso onde ele nunca se veria; tem uma dimensão de encanto, que nos permite sentirmo-nos melancólicos onde deveria haver lugar para o ruído e a alegria. Tem, por fim, uma dimensão de certeza surpreendente: toda a pessoa extrovertida precisa da solidão e toda a pessoa introvertida ficaria louca aqui, na Cartuxa (Padre Isidoro, in O Segredo da Cartuxa).  

JdB

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