31 março 2017

Crónicas de um universitário tardio - O Detalhe *

L. entendia que um comboio era um conjunto mais ou menos harmonioso de sistemas composto por rodas, motores, tirantes, equipamentos pneumáticos, engrenagens, componentes hidráulicos, relés, bobinas, rolamentos e mancais, parafusos e porcas de diâmetro variado. Entendia ainda que se assemelhava ao corpo humano pelo facto da panóplia de órgãos em andamento ter uma existência não vazia, isto é, não desprovida de sentido. No homem é a locomoção, no comboio é a deslocação, ambas relacionadas com o movimento de gente. Conceptualmente não haveria, por isso, diferença entre um fémur e um solenóide, porque ambos servem o mesmo propósito - levar alguém do ponto A ao ponto B. Por outro lado, tanto no homem com no comboio há uma noção do excesso, que pode ser sensorial ou espacial. No homem há o vómito, que é o sintoma físico da intemperança. No comboio há uma porta por fechar devido ao excesso de corpos por metro quadrado. A porta que não se fecha equivale, em conceito, à boca que se abre, porque ambas são a manifestação do descomedimento.

L. entrou no comboio e sentiu a não conformidade. Estava demasiado próximo dela, uma desconhecida, e o comboio não tinha conseguido exercer o alívio da sufocação. A porta não se fechara para impedir a entrada, como por vezes a boca não se abria para permitir a saída. L. estava colado a ela, a desconhecida, e sofreu o desconforto inicial. Fixou-lhe tudo com um pormenor que poderia ser perturbador. Viu-lhe os olhos assimétricos, o olho direito ligeiramente inclinado para cima na direcção do exterior da face. Uma ligeiríssima diferença, só detectável com a contiguidade demasiado chegada das caras. 2 graus? 3 graus? Qual a inclinação relativamente à linha média horizontal que atravessava as duas órbitas oculares? Havia as sobrancelhas, castanhas, talvez um pantone 126, mas que também poderia ser um 1265. A sobrancelha esquerda tinha uma pequena falha, uma clareira – 1 mm? - onde não crescera nada. A testa era um paralelogramo estreito, talvez com 4 cm de altura por 8 de largura. E o nariz? Como era o nariz desta desconhecida, de quem ele estava tão próximo que quase a poderia tocar se a língua dele, de L., fosse ligeiramente mais comprida do que a média? Talvez 12 cm bastassem para que a ponta da sua língua e um dos seus 17 músculos lambessem a ponta do nariz dela. Um nariz que era equilibrado, bem implantado no meio da cara, sem qualquer vestígio de formação vesiculosa cutânea.

L. estava cada vez mais próximo, porque os corpos nunca estão totalmente estáticos, além de que não há um conhecimento absoluto de como funcionam as posições relativas de pessoas que estão imóveis. L. sempre sentira que, mesmo quieto, se aproximava de um qualquer vizinho, ainda que este também estivesse quieto, como se a distância vital entre os corpos fosse algo de incontrolável e desobediente à vontade das pessoas. E estava tão perto daquela desconhecida que sentiu nascer dentro de si a vontade de a beijar. Aquela visão do detalhe, aquela proximidade, aquela análise exaustiva das cores, dos ângulos, das pequenas falhas, dos equilíbrios, das assimetrias estava a criar-lhe um desejo de lhe tocar nos lábios, pequenos em termos de largura (4 cm?), pintados de um vermelho que seria um pantone 1788, embora não estivesse certo. Era uma desconhecida, mas isso era irrelevante. O que importava era a proximidade dos lábios, e um estudo pormenorizado de uma face que lhe provocava um sentimento de atracção. Como poderia ele dominar este achegamento forçado causado por um comboio demasiado povoado e que não rejeitara o excesso humano?

L. ainda teve tempo de analisar as orelhas, os brincos na forma de uma pérola encaixada numa flor que abre, os lobos excessivamente grandes (2 cm parecia-lhe muito). Mas os lábios, os lábios!, e o apelo daquele vermelho (pantone 1788 ou 1795?) daquela boca entreaberta, não sabia se em convite explícito se em dificuldade respiratória. Uma desconhecida... L. inclinou-se e cedeu ao impulso decorrente de uma análise demasiado próxima. Tocou-lhe nos lábios com os seus próprios lábios e fez pressão. Sentiu que os lábios da desconhecida cediam, amolecidos, húmidos, receptivos, e que se entreabriam para o receber. E ele ali ficou, durante alguns segundos (10, 15?) num beijo humano, a mordiscar-lhe as partes carnudas, a identificar-lhe os contornos com a ponta da língua.

Sabes porque pareço uma desconhecida para ti? Porque não te percebo, não entendo nada do que tu dizes! Comboios e vómitos? E olha lá, com tanta igualdade conceptual, preferes ter a mão num fémur, como tens agora no meu, ou num solenóide?

JdB 

* publicado originalmente em 15.03.2013

30 março 2017

Dos opostos complementares

- Tu sabes o que é um milagre, Jorge? Sabes o que é um milagre?

E o Jorge, de olhos postos numa gravura que se descreve já de seguida, a dizer que sim, que sabia, pois então. O milagre é um feito religioso insólito, que supõe uma intervenção especial e gratuita de Deus...

- Pela tua rica saúde, Jorge! O milagre não é isso. Isso que descreveste é um espectáculo de fogo de artifício para deleite dos néscios. O problema do milagre, como a humanidade o vê desde sempre, está no desejo do espectáculo, da coreografia, da encenação. E no entanto, o mais importante está no dia seguinte. O milagre, Jorge...

E o Jorge a manter-se de olhos fixos na gravura, pese embora a atenção que dá à Pureza, sua namorada, uma rapariga sobre o baixo, com um ligeiro excesso de peso e de volume ao nível das nádegas e ancas, muito loira e de olhos azuis de água paradisíaca. Mas a gravura, meu Deus!

- ... o milagre, Jorge, pode não ser mais do que uma cozinha impressiva de autor. Lava-nos o palato ou os olhos, mas é efémera, porque actua apenas nos sentidos. O milagre está no dia seguinte, na reverberação de uma palavra que redimiu, na lembrança de uma mão imposta sobre uma pústula, na persistência de um pensamento escutado. O milagre, naquele instante preciso em que Jesus curou o cego ou o paralítico ou o possesso, pode não ser mais do que pirotecnia, uma encenação ousada de uma ópera clássica. Todos estes personagens têm de ser revisitados nas suas casas, nos seus misteres, nas suas relações com os outros ou com o seu eu mais íntimo. O que ficou do milagre? Que mudanças houve que perduram no tempo, como uma cozinha de avó?

O raciocínio de Pureza era imbatível. Mas havia aquela gravura: Salomé, a sensual, e João, o Baptista, frente a frente, segurando ambos, numa metáfora simultaneamente carnal e cruel, uma espada e uma bandeja de prata. Por trás, o tetrarca, rei servidor de império ocupante, de semblante sucumbido e de olhos raiados de lascívia e discernimento, para quem aquela carne dançarina não era mais do que o prenúncio do inferno banhado a sangue inocente. 

Jorge era isto - as paredes crivadas de gravuras, as estantes de livros e a mente de ideias, tudo sobre o mesmo tema obsessivo: os opostos complementares, as simetrias de espelho, as saliências e as reentrâncias. Salomé e o Baptista como representantes do êxtase e da ascese; Cristo e a pecadora como representantes da virtude e do pecado; o branco e o negro na mesma tela, uma taça de gelo a arder, um puzzle, não como momento de lazer, mas como exercício de encaixe. 

Pureza aproximou-se dele e enlaçou-o pela cintura.

- Gostas da gravura, Jorge?

E o Jorge a dizer que sim, que gostava e a deixar-se abraçar, tocar, beijar, a ouvir mimos no pescoço, nos ouvidos, nos olhos, na pele efervescente de sensualidade e amor, nas mãos arrastadas de quem explora e amansa, de quem inquieta e provoca o seu inverso. E a campainha da porta a tocar quando o mundo estava em silêncio, quieto, imóvel, expectante de dois corpos que se agitarão ao som de um desejo. À porta, frente a uma Pureza loira, de olhos muito azuis transparentes, baixa e algo volumosa, está Désirée, uma nativa da Martinica, muito alta, muito escura, com uns olhos negros de carvão e uma finura de corpo que impressiona como um milagre inesperado. No sofá, ainda de olhos postos no êxtase e na ascese, no branco e no negro, no contraste dos dois nomes femininos, Jorge sorri, quase envergonhado, quase despudorado:

- faz-te confusão, Pureza?  

JdB       

29 março 2017

Poemas dos dias que correm

Poema da Auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

António Gedeão, in 'Máquina de Fogo'

***

Impressão Digital

Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'

28 março 2017

Duas Últimas

Ouvi há dias, penso que na Antena 1, uma entrevista com Gabriela Shaaf, cantora filha de pai suíço e mãe italiana que viveu em Portugal nos anos setenta/oitenta do século XX. Dela tinha umas memórias já muito pouco avivadas, embora me lembre perfeitamente que alguns dos meus amigos mais chegados foram seus fans entusiastas, mais até do que eu.

Percebi que deixou Portugal há cerca de 30 anos, vivendo actualmente em terras helvéticas. E também que deixou os palcos há um montão de tempo, tendo explicado, com sinceridade e coragem, que tal se deveu a ter desenvolvido uma fobia que a impossibilitou de continuar a actuar em púbico. Um pânico incontrolável e desproporcionado, que lhe abafava a voz e a fazia esquecer as letras.

Como também sou dado a algumas fobias, relacionadas com exposição pública, que me enervam e corroem sempre que a ela me tenho de submeter - e que luto por não evitar, mesmo que por vezes de forma inglória - fui especialmente sensível à dita explicação.

Devido à sua curta carreira, não há na net muitos vídeos disponíveis de músicas de Gabriela Shaaf. Deixo-vos com a que ficou em 2º lugar no "Festival da Canção de 1979", perdendo apenas para "Sobe, sobe, balão sobe", interpretação de Manuela Bravo. Já agora, festival com apresentação de Manuela Moura Guedes, minha colega de faculdade uns anos antes...

Espero que apreciem.

fq

27 março 2017

Da santidade

Na semana passada o Papa Francisco aprovou o milagre que permite a canonização dos pastorinhos de Fátima, Jacinta e Francisco. É sobre isso que quero discorrer, não esquecendo a minha condição de católico.

A minha relação com os santos não assenta numa dimensão de devoção, mas de admiração. Isto é, não nutro devoção por Santo António de Lisboa, por São Judas Tadeu, pela santa das causas impossíveis que é a Santa Rita de Cássia, ou por S. Teresa de Ávila. Também não nutro, por isso, qualquer devoção por S. João Paulo II e, no futuro, pelos pastorinhos de Fátima. A minha relação com os santos é sustentada pela admiração que tenho pela vida que levaram, pelas suas qualidades e pelas suas fragilidades. Revejo-me na ideia de que um santo é um pecador que não desiste e desconfio das vidas absolutamente virtuosas. Admiro Santo Agostinho pelo seu pensamento e pela sua obra; admiro S. Bartolomeu dos Mártires pelo seu despojamento; admiro S. Maximiliano Kolbe pelo seu sacrifício (na sua proximidade com o martírio). Na mesma linha de pensamento, não sou devoto de Madre Teresa de Calcutá, sou admirador de Madre Teresa de Calcutá. Por outro lado, tenho alguma dificuldade de convivência com esta ideia dos santos como agentes de mediação ou de intercessão. Fará sentido eu rezar a S. João Paulo II para que este interceda junto de Deus para que eu seja como ele? Noutro sentido, por que motivo rezaria eu (ou não se reza com fervor) a S. João da Cruz ou a S. Nuno de Santa Maria? E porque não, já agora, a Santo Higino, Papa e Mártir, que a igreja celebra no meu dia de aniversário?

O registo da santidade, no sentido da canonização, é conferido pelo milagre.  Em termos formais, o milagre é um feito religioso insólito, que supõe uma intervenção especial e gratuita de Deus, e tanto é um sinal ou uma manifestação de uma mensagem de Deus ao homem, como uma chamada à conversão. Podem distinguir-se três classes de feitos milagrosos: 

  • aquilo que supera as forças da natureza, isto é, um feito que a natureza não poderia realizar (a ressurreição de um morto); 
  • aquilo que supera as forças da natureza, não pelo feito em si, mas pelo sujeito em que se realiza (o cego que vê, por exemplo); 
  • aquilo que supera as forças da natureza quanto ao modo (por exemplo, um doença curável num ano e que se cura numa semana).

Ao que parece, a canonização dos pastorinhos assenta num qualquer milagre (cujos pormenores não foram ainda divulgados) realizado numa qualquer zona do Brasil. Nuno Álvares Pereira foi canonizado com base, parece-me, numa senhora que não ficou cega quando azeite a ferver lhe entrou para os olhos. Que milagre é este? Devemos acreditar, sem qualquer desrespeito pelas pessoas em questão, que é assim que Deus intervém na vida do Homem? A canonização de Madre Teresa - cuja vida de entrega aos mais pobres de entre os mais pobres é, já de si, um milagre, para além de ser a prova viva e contemporânea da presença de Deus - está dependente de um acontecimento pequenino face à magnitude da vida dela? É por aqui que Deus se manifesta ou nos chama à conversão? E o milagre da entrega ao próximo é inferior a algo que por agora não tem explicação, mas que poderá ter daqui a 20 anos?

[Por outro lado ainda, nesta minha deambulação de não devoção aos santos (mas de admiração pelas vidas de muitos deles) não sou apreciador (a não ser do ponto de vista artístico) da estatuária religiosa que invade as nossas igrejas, e que deriva de costumes antigos de contar a história da nossa religião por via de imagens, como se fosse uma banda desenhada em 3D, porque o analfabetismo impedia as pessoas de ler a Bíblia.]

Não sendo um dogma de fé, nenhum católico é obrigado a acreditar que Nossa Senhora apareceu a três crianças em Fátima, há 100 anos. Eu acredito que sim, que houve qualquer coisa que se passou ali, naquele sítio, por um motivo que é insondável, que tem a dimensão de um mistério por descobrir. O milagre de Fátima não é a aparição de Nossa Senhora, mas o surgimento de Fátima como ponto de encontro do mundo crente ou espantado, como lugar geométrico de caminhos de conversão, de peregrinação, de desespero ou de agradecimento, de abandono a uma fé que pode transformar vidas ou consolar tristezas. Fátima é um espaço muito maior do que o recinto que encerra, porque é o somatório de todas as almas que ali estão, presentes ou à distância; é dos únicos locais do mundo onde todos falam a mesma língua e cada peregrino é irmão do peregrino ao lado, e cada peregrino chora e ri com o peregrino ao lado.

Não me interessa o milagre de que os pastorinhos terão sido obreiros no Brasil, porque isso não representa nada, na minha opinião. O milagre dos pastorinhos é terem sido os protagonistas, terem querido ser os protagonistas ou ter acontecido terem sido os protagonistas daquele acontecimento que gerou o milagre à escala planetária: Fátima, como ponto de partida ou como ponto de chegada para milhões de pessoas ao longo destes cem anos; Fátima como agente de transformação das nossas mãos, dos nossos olhos ou das nossas bocas; Fátima como altar do mundo, de onde nunca saímos iguais, mesmo que não percebamos a diferença. O resto é o resto, nada mais do que isso.


JdB  

26 março 2017

IV Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Jo 9,1-41

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença.
Os discípulos perguntaram-Lhe:
«Mestre, quem é que pecou para ele nasceu cego?
Ele ou os seus pais?
Jesus respondeu-lhes:
«Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais;
mas aconteceu assim
para se manifestarem nele as obras de Deus.
É preciso trabalhar, enquanto é dia,
nas obras d’Aquele que Me enviou.
Vai cegar a noite, em que ninguém pode trabalhar.
Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo».
Dito isto, cuspiu em terra,
fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego.
Depois disse-lhe:
«Vai lavar-te à piscina de Siloé»; Siloé quer dizer «Enviado».
Ele foi, lavou-se e ficou a ver.
Entretanto, perguntavam os vizinhos
e os que antes o viam a mendigar:
«Não é este o que costumava estar sentado a pedir esmola?»
Uns diziam: «É ele».
Outros afirmavam: «Não é. É parecido com ele».
Mas ele próprio dizia: «Sou eu».
Perguntaram-lhe então:
«Como foi que se abriram os teus olhos?»
Ele respondeu:
«Esse homem, que se chama Jesus, fez um pouco de lodo,
ungiu-me os olhos e disse-me:
‘Vai lavar-te à piscina de Siloé’.
Eu fui, lavei-me e comecei a ver».
Perguntaram-lhe ainda: «Onde está Ele?»
O homem respondeu: «Não sei».
Levaram aos fariseus o que tinha sido cego.
Era sábado esse dia em que Jesus fizeram lodo
e lhe tinha aberto os olhos.
Por isso, os fariseus perguntaram ao homem
como tinha recuperado a vista.
Ele declarou-lhes: «Jesus pôs-me lodo nos olhos;
depois fui lavar-me e agora vejo».
Diziam alguns dos fariseus:
«Esse homem não vem de Deus, porque não guarda o sábado».
Outros observavam:
«Como pode um pecador fazer tais milagres?»
E havia desacordo entre eles.
Perguntaram então novamente ao cego:
«Tu que dizias d’Aquele que te deu a vista?»
O homem respondeu: «É um profeta».
Os judeus não quiseram acreditar
que ele tinha sido cego e começara a ver.
Chamaram então os pais dele e perguntaram-lhes:
«É este o vosso filho? É verdade que nasceu cego?
Como é que agora vê?»
Os pais responderam:
«Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego;
mas não sabemos como é que ele agora vê,
nem sabemos quem lhe abriu os olhos.
Ele já tem idade para responder: perguntai-lho vós».
Foi por medo que eles deram esta resposta,
porque os judeus tinham decidido expulsar da sinagoga
quem reconhecesse que Jesus era o Messias.
Por isso é que disseram:
«Ele já tem idade para responder; perguntai-lho vós».
Os judeus chamaram outra vez o que tinha sido curado
e disseram-lhe: «Dá glória a Deus.
Nós sabemos que esse homem é pecador».
Ele respondeu: «Se é pecador, não sei.
O que sei é que eu era cego e agora vejo».
Perguntaram-lhe então:
«Que te fez Ele? Como te abriu os olhos?»
O homem replicou:
«Já vos disse e não destes ouvidos.
Porque desejais ouvi-lo novamente?
Também quereis fazer-vos seus discípulos?»
Então insultaram-no e disseram-lhe:
«Tu é que és seu discípulo; nós somos discípulos de Moisés;
mas este, nem sabemos de onde é».
O homem respondeu-lhes:
«Isto é realmente estranho: não sabeis de onde Ele é,
mas a verdade é que Ele me deu a vista.
Ora, nós sabemos que Deus não escuta os pecadores,
mas escuta aqueles que O adoram e fazem a sua vontade.
Nunca se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos
a um cego de nascença.
Se Ele não viesse de Deus, nada podia fazer».
Replicaram-lhe então eles:
«Tu nasceste inteiramente em pecado e pretendes ensinar-nos?»
E expulsaram-no.
Jesus soube que o tinham expulsado
e, encontrando-o, disse-lhe:
«Tu acreditas no Filho do homem?»
Ele respondeu-Lhe:
«Senhor, quem é Ele, para que eu acredite?»
Disse-lhe Jesus;
«Já O viste: é Quem está a falar contigo».
O homem prostrou-se diante de Jesus e exclamou:
«Eu creio, Senhor».
Então Jesus disse-lhe:
«Eu vim para exercer um juízo:
os que não vêem ficarão a ver;
os que vêem ficarão cegos».
Alguns fariseus que estavam com Ele, ouvindo isto,
perguntaram-Lhe:
«Nós também somos cegos?»
Respondeu-lhes Jesus:
«Se fôsseis cegos, não teríeis pecado.
Mas como agora dizeis: ‘Não vemos’,
o vosso pecado permanece».

25 março 2017

Pensamentos Impensados

Frenesim
Em que se parece Marcelo com o hino do Benfica? São papoilas saltitantes.

Latinhas
Os presos, quando acabam o tempo de prisão, deveriam ser condecorados com a Ordem da Liberdade.

Tradu...som
Ave Cesar, morituri te salutant.
As aves do Cesar morrem de saúde.

Necrossorria
Um dia, se Deus me der vida e saúde, hei-de morrer.

Pontos de vista
Pano encharcado nas ventas é argumento sólido ou argumento líquido?

Acidente
O morto está estável e não aspira cuidados.

Saúde
A ASAE devia andar em cima dos cirurgiões plásticos tendo em vista a carne adulterada.

Dietas
As carnes vermelhas fazem mal, pelo que não devem comer-se carnes importadas da China e da Coreia do Norte.

SdB (I)

24 março 2017

Poemas para o dia de anteontem

Londres

Vagueio por estas ruas violadas, 
Do violado Tamisa ao derredor, 
E noto em todas as faces encontradas 
Sinais de fraqueza e sinais de dor. 

Em toda a revolta do Homem que chora, 
Na Criança que grita o pavor que sente, 
Em todas as vozes na proibição da hora, 
Escuto o som das algemas da mente. 

Dos Limpa-chaminés o choro triste 
As negras Igrejas atormenta; 
E do pobre Soldado o suspiro que persiste 
Escorre em sangue p'los Palácios que sustenta. 

Mas nas ruas da noite aquilo que ouço mais 
É da jovem Prostituta o seu fadário, 
Maldiz do tenro Filho os tristes ais, 
E do Matrimónio insulta o carro funerário. 


William Blake, in "Canções da Experiência"

(Tradução de Hélio Osvaldo Alves)

Textos dos dias que correm

Ambiente

Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nos sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.

Um deus, no sentido pagão, isto é, verdadeiro, não é mais que a inteligência que um ente tem de si próprio, pois essa inteligência, que tem de si próprio, é a forma impessoal, e por isso ideal, do que é. Formando de nós um conceito intelectual, formamos um deus de nós próprios. Raros, porém, formam de si próprios um conceito intelectual, porque a inteligência é essencialmente objectiva. Mesmo entre os grandes génios são raros os que existiram para si próprios com plena objectividade.

Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrem de fora, e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro, tanto que é o lado de fora que se vê.

Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente.

Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.

Fingir é conhecer-se.

Fernando Pessoa

1ª publicação in “Presença”, nº 5. Coimbra: Jun. 1927.

23 março 2017

Vânia e as listas de Antonino

Como acontece quase sempre na história das famílias, antes de Antonino perceber já os pais de Antonino haviam percebido: numa viagem a Salamanca, quando o rapaz tinha 15 anos e revelava de forma clara, ainda que não acintosa (que neste caso se traduziria por uma precocidade enervante) uma queda para a pintura enquanto observador, Antonino quis visitar todos os museus e palácios da cidade onde esta forma de arte fosse preponderante. Contudo, não seguiu um critério geográfico, que consistiria em fazer troços pequenos do palácio A para o museu B; não seguiu um critério cronológico, ou de estilo, que passava por ir do mais antigo ao mais moderno, ainda que a inversa também fosse possível. Antonino seguiu um critério meramente numérico e crescente no mapa da cidade - de 1 até n, sendo que podia deslocar-se a uma ponta da cidade para ver o séc. XV e, seguidamente, deslocar-se à outra ponta para contemplar o séc. XXI, desde que estes museus e / ou palácios específicos fossem numericamente seguidos. 

Quando entrava no museu ou palácio, Antonino pedia imediatamente um catálogo dos artistas expostos e, num ápice (havia uma espécie de queda natural para a coisa, o que a tornava rápida e pouco fastidiosa, ainda que preocupante) Antonino seleccionava os artistas começados por A - e era esses que via em primeiro lugar, seguindo depois para a letra B. A rotina repetia-se até Z, sendo que de permeio havia o W e o Y para engrossar as variáveis. Isso implicava - e esse facto não carece de explicação - subir escadas e descer escadas à procura do D ou do N, podendo viver com a desilusão de uma letra orfã e só, sem nenhum nome que lhe fizesse companhia.

Antes de Antonino perceber a obsessão, já os pais de Antonino haviam percebido a obsessão: eram os catálogos, os cânones, as listas (listas de tudo, mas também listas de listas, talvez mesmo listas de listas de listas). O inferno, não como temor, mas como lista iconográfica de torturas; a História de Portugal, não como um conjunto de grandezas e misérias, mas como uma lista de dimensão genealógica: A pai de B, que é pai de C, que é pai de D e de E, de quem nasceu o terceiro bastardo E3; o livro de linhagens de D. Pedro, conde de Barcelos, não como um documento medieval pioneiro, mas como uma lista prática de informações relevantes (por oposição à genealogia de Jesus, uma lista não prática, mas que também constava na sua lista de listas). 

Após o curso de História e uma pós-graduação em arquivismo na variante catálogo, Antonino seguira uma carreira de bibliotecário de autarquia, criando e recriando listas, imaginando ordenações, congeminando frequências e tendências, diversificando o rol de compras mensais tomando em consideração a ordenação alfanumérica de prazos de validade, número de fornecedores por distrito e lista de órgãos sociais com predominância da letra J. Vânia, deitada ao seu lado, tinha feito um curso de pintura, praticava ioga, meditação e voluntariado aos fins de semana num lar de idosos. 

Para eles era a primeira noite - uma noite chuvosa, ventosa, a levantar tudo pelo ar: folhas, papéis de jornal, cascas de maçã, passarinhos mortos e caídos dos ninhos, aromas de frango assado. Vânia tinha uma figura invejável, fruto de uma boa genética, que, quanto à alimentação, a rapariga ia a um cozido, a uma farófia, a uma léria ou a uma sopa da pedra, sem medo e sem remorso. Era alta, esbelta, vistosa sem ser exuberante, com uns olhos azuis de cortar a respiração e uma ligeiríssima e interessante assimetria dos dentes da frente. Antonino beijou-a com fervor carnal e paixão afectiva, porque não conseguia separar os sentimentos. Tocou-lhe com jeito e educação, elogiou-a com simplicidade e gosto. Pediu-lhe desculpa pela interrupção e, debruçando-se sobre a gaveta da mesa de cabeceira, olhou brevemente lá para dentro, retomando o afago, o beijo, o elogio.

Terminaram ofegantes, como o vento na rua que tudo transportava. Antonino fora fazer um chá de gengibre e limão e Vânia, debruçada sobre uma nudez que provocava inveja e perturbação, abriu rapidamente a mesa de cabeceira, vencida por uma curiosidade que só na mente dos mais perversos seria travestida de desconfiança. Na gaveta, lado a lado, encontrou uma lista de pintores com nomes começados por V e que faziam ioga e / ou meditação e / ou voluntariado e uma lista traduzida do indiano e intitulada catálogo de posições felizes para uma noite carnal. Encontrou, por fim,  a capa do livro Penitencial, de Martim Pérez, que abriu ao acaso. Se alguum se banhou en banho com as molheres e as vyo nuas e ainda a sua molher meesma, jajue dous dias em pan e augua

Antonino assomou ao quarto, precedido pelo aroma do chá, e perguntou-lhe: vamos tomar um banho? Vânia perguntou, sorrindo: gostas de pão e água?

JdB
        

22 março 2017

Porque não há som mais bonito do que o do violoncelo


Violoncelo

Chorai arcadas 
Do violoncelo! 
Convulsionadas, 
Pontes aladas 
De pesadelo... 

De que esvoaçam, 
Brancos, os arcos... 
Por baixo passam, 
Se despedaçam, 
No rio, os barcos. 

Fundas, soluçam 
Caudais de choro... 
Que ruínas, (ouçam)! 
Se se debruçam, 
Que sorvedouro!... 

Trêmulos astros, 
Soidões lacustres... 
_ Lemes e mastros... 
E os alabastros 
Dos balaústres! 

Urnas quebradas! 
Blocos de gelo... 
_ Chorai arcadas, 
Despedaçadas, 
Do violoncelo. 

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra' 



21 março 2017

Dos fascínios inexplicados


Na verdade, a posição quase impossível em que se encontra serve, quanto a mim, para esconder o seu belo rosto adormecido, que não merecemos contemplar. 

Cruzo-me com esta imagem e com este texto no livro "Entre o Céu e a Terra", de Rui Chafes, que mão amiga me emprestou a propósito do meu (futuro) doutoramento.  Diria, na minha ignorância, que é uma escultura moderna. Afinal a sua conclusão data de 1600, e é da autoria de Stefano Maderno, um jovem escultor incumbido pelo Papa Clemente VIII de reproduzir exactamente a figura do corpo incorrupto de Santa Cecília aquando da abertura do seu túmulo, um ano antes. 

Fixei esta imagem durante alguns minutos nos olhos. Permaneceu durante horas na minha mente, a ponto de tê-la enviado a alguém três dias depois de me confrontar com ela. Confessei imediatamente que há algo que me fascina na obra, mas não sei exactamente o quê... Seria a ideia de um rosto que não merecemos contemplar? Seria o facto de eu achar que era moderna e afinal não ser? Seria a posição, muito semelhante à que eu uso para dormir? Seria uma certa dimensão de total desprendimento, de pouca importância de si, de ausência (aparente, apenas aparente) de dignidade, de fausto e de riqueza? Seria "apenas" uma beleza carregada de movimento estático? 

Há um certo encanto em identificar coisas (frases, pormenores, jogos de cores, perspectivas - o punctum, de que já aqui falei mais do que uma vez) em algo com que nos cruzamos. Normalmente é isso que me acontece - oiço / vejo / leio e sublinho mentalmente a ideia. Um dia, como já aqui contei, foi um tango, talvez, que usava a expressão silêncio conventual. Mas pode ser uma passagem de uma música clássica (os 2'14" do segundo andamento da 7ª sinfonia de Beethoven), a simetria de um renque de arcadas ou uma sombra imprevista de um candeeiro. No entanto, e até onde me lembro, foi a primeira vez que isto me aconteceu: estar fascinado com alguma coisa (neste caso uma escultura) e não fazer a mais leve ideia porquê.  

JdB 

20 março 2017

Vai um gin do Peter’s?

Dos melhores filmes desta temporada é «MANCHESTER BY THE SEA»(1), premiado com os dois Óscares para Melhor Actor Principal e Melhor Argumento Original. Mal parece americano, tal o tom intimista, as personagens subtis e intensas, a comunicação com imensos silêncios. Silêncios em todos os matizes: dos cúmplices aos opressivos, passando pelos espirituais, os sábios, os reflexivos, os expiadores, os inquisitivos, os provocadores, os enigmáticos, os que não toleram a vulgaridade, mas também os sofridos, os angustiados e os associais. 

Uma curiosidade: o mote inicial da trama foi dado por Matt Damon ao amigo dramaturgo Kenneth Lonergan, que atravessava uma fase difícil, pelo que ganharia em ter um novo projecto em mãos. Até se propunha ser MD o realizador. Mas por dificuldade de agenda, quando o projecto arrancou mesmo, Matt acabou por se ficar por co-produtor, afirmando sobre o resultado final: «This is a movie that will stay with people. His characters are so deeply and richly drawn, with such great detail, that you believe in them.»

Lee, o protagonista primorosamente encarnado pelo actor Casey Affleck (mereceu o Óscar), surge-nos sorumbático, psicologicamente entrincheirado num casulo desesperante. Alheado da realidade, é um ausente. Desligou-se dos sabores, das cores, dos cheiros, da musicalidade da vida, arrastando um corpo que terá deixado fugir a alma.


Porém, à medida que o passado é revelado, percebemos que já fora o oposto, à parte da tendência para a copofonia. 

Tudo mudara, quando uma terrível desgraça lhe reduziu a vida a cinzas, por dentro e por fora. A dor lancinante congelou-lhe a alma e petrificou-o, em todos os aspectos. Desistiu de viver e abandonou a simpática vila de Manchester (Nova Inglaterra, nos EUA). Foram os polícias que o impediram de se precipitar no suicídio, quando teve ir prestar declarações à esquadra do bairro. Ele que esperava uma punição exemplar, teve antes de se contentar com a compaixão e o bom senso das autoridades a destoarem do sentimento de culpa que o devorava. Dilacerado e desesperado, a bondade alheia só lhe adensava o sentimento de miséria e de ser miserável. Dramático o tempo recusar-se a recuar... pois aquele seu horrendo descuido levara-lhe, para sempre, quem mais gostava. 

Desde então, aguentava o dia-a-dia sem gosto, nem paciência, exilado numa cidade desengraçada. Trancado no círculo vicioso dos antipáticos e quezilentos, os problemas multiplicavam-se como cogumelos. Até tem dificuldade em perceber que determinada cliente queria dar-lhe uma gorjeta, apesar de a ter ouvido confidenciar a uma amiga estar apaixonada por ele. Só que nada o fazia vibrar. 

Nisto, quebra-se mais um elo com a morte prematura do irmão protector, vitimado por uma doença grave. Em testamento, o irmão lança-lhe o desafio mais difícil, mas mais regenerador: um novo laço afectivo com a responsabilidade da paternidade – confia-lhe a custódia do sobrinho. Felizmente, tivera a sensatez de não o prevenir. Parecia provocação, pois Lee quase perdera o contacto com o miúdo, desde que decidira abandonar Manchester by the Sea. Em tempos idos, divertira-se imenso com aquela criança, mas por muitas e boas razões, agora, achava-se impreparado para adoptar um liceal espigado e irreverente, com uma lata descomunal e vontade de gozar a adolescência, recusando sair da pequena vila à beira-mar, onde o tio já não conseguia viver. Começavam desencontrados. 

A rotina robótica de Lee vê-se abalada nos alicerces, qual terramoto benigno. Aos poucos, no meio de tropeços e mal-entendidos, destreinado do convívio humano, esforça-se por retomar a normalidade de uma vida de família. Principia o degelo. Sob a couraça de aço insensível, aquele tio deixa adivinhar um coração meigo e generoso, mas em ferida. Claro que se exprime desajeitadamente, protegendo-se nos longos silêncios, embora se sujeite a tudo para tentar dar o melhor ao e pelo sobrinho. Resulta num aselha amoroso e incansável. Obviamente, não abunda em pedagogia, apesar de nunca lhe faltar a melhor das boas vontades.

A trama avança entre o presente e constantes flash-backs, bem encaixados no fio da narrativa, que culmina no encontro fortuito entre Lee e a ex-mulher – Randi. Esta mostra-lhe o recém-nascido no carrinho, fruto da nova relação. Entrecortada entre soluços, pede-lhe desculpa pelas acusações tremendas logo após a tal noite trágica. Assume continuar destroçada, tal como ele e, em choro convulsivo, declara que o ama. As lágrimas irrompem do coração desfeito da mulher e mãe arrependida até ao tutano. Também a ela lhe pesa horrivelmente o passado e quer dizer-lho, pois sabe que partilham o mesmo sofrimento. Randi deixa antever o desgosto por já não conseguir refazer a vida com o seu amado. Confessar tudo isto permitia fazer alguma justiça a Lee e oferecer-lhe o consolo da sintonia mais custosa – na agonia. Sob a capa de uma nova família, afinal, também Randi suportava mal o dia-a-dia, pelos mesmos motivos, ao mesmo ritmo cardíaco e com as mesmas lacunas afectivas. Nisto, continuavam lado-a-lado, intrinsecamente ligados. 

Lee – demasiado habituado a sofrer sozinho, incompreendido – tinha desaprendido o choro e não lhe ocorria partilhar a sua dor dantesca com a amada. Sem querer esclarecer nada, numa precipitação delicada, despede-se em acelerado. Desde há anos que prescindira de esclarecer, de desabafar, de ser consolado. Talvez nem se achasse merecedor de consolo. Acreditava que o tempo das palavras e das alegrias se tinha extinguido, para ele.

Percebemos quanto a condição de Lee, votada ao silêncio por opção (e alguma incapacidade), lembrava vagamente a exigência das clausuras monásticas. Percebemos também que um filme centrado num homem que parecia incapaz de amar é, sobretudo, sobre o amor mais fundo e autêntico, o único capaz de arrebatar aquele homem desfeito. Descobrimos um amor conjugal que, embora já sem vida comum, é proclamado alto e bom som, quando dito com a verdade com que Randi o explicita e Lee o silencia. À sua maneira, também Lee tinha declarado o amor intocado, na tarde passada no hospital, aquando do óbito do irmão. Ao elencar as pessoas a quem teria de ser comunicada a notícia fatídica, lembrou a mulher. E baralhou os amigos, que só lhe conheciam a ex-mulher. Perceberam, depois, que falavam todos da mesma, pois Lee continuava a conjugar Randi no presente do indicativo.  

Envolve ainda um amor fraternal e paternal, que fora feliz e caloroso no passado. No presente, balbucia os primeiros passos de um recém-regressado à vida, a quem o sobrinho adolescente interpela impertinentemente, cansado das aselhices do tio no convívio humano: «Uncle Lee, are you fundamentally unsound?».

Sem pretender ser uma tese sobre dor e soluções possíveis, «Manchester by the Sea» é a prova de que as mensagens ditas pelo avesso e através do silêncio passam lindamente. Como apostas ganhas: a da subtileza é garantida. Nos valores comparativos: se, já em tempos remotos e bem menos barulhentos, a palavra não passava de prata, enquanto calar valia ouro, na nossa época, empanturrada de soundbites, a cotação do silêncio só pode ter disparado. Não menos que diamante. Filme imperdível, mas a precisar da disposição certa.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA

Título original:                   MANCHESTER BY THE SEA
Título traduzido em Portugal:   MANCHESTER BY THE SEA 
Realização:                           Kenneth Lonergan
Argumento:                           Kenneth Lonergan (Óscar)
Produzido por:                   Matt Damon, Chris Moore, Lauren Beck, Kimberley Steward e Kevin Walsh 
Fotografia:                           Jody Lee Lipes
Banda Sonora:                   Leslie Barber
Duração:                                   2h17 (137 min.)
Ano:                                         2016
País:                                  EUA
Elenco:                                Casey Affleck (Lee) - Óscar Melhor Actor, Michelle Williams (Randi, a mulher de Lee), Kyle Chandler (o irmão de Lee), Lucas Hedges  (o sobrinho Patrick).

Local das filmagens:          EUA:  Lynn,  Manchester-by-the-Sea (Massachusetts), hospital de Beverly
Prémios:                                  2 Óscares, 2 Baftas (nas mesmas categorias dos Óscares), 1 Globo de Ouro, etc.
Site oficial:                          manchesterbytheseathemovie.com
https://filmspot.pt/trailer/manchester-by-the-sea-334541/

19 março 2017

III Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Jo 4,5-42

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
chegou Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar,
junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José,
onde estava a fonte de Jacob.
Jesus, cansado da caminhada, sentou Se à beira do poço.
Era por volta do meio dia.
Veio uma mulher da Samaria para tirar água.
Disse lhe Jesus: «Dá Me de beber».
Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.
Respondeu Lhe a samaritana:
«Como é que Tu, sendo judeu,
me pedes de beber, sendo eu samaritana?»
De facto, os judeus não se dão com os samaritanos.
Disse lhe Jesus:
«Se conhecesses o dom de Deus
e quem é Aquele que te diz: ‘Dá Me de beber’,
tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva».
Respondeu Lhe a mulher:
«Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo:
donde Te vem a água viva?
Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob,
que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu,
com os seus filhos a os seus rebanhos?»
Disse Lhe Jesus:
«Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede.
Mas aquele que beber da água que Eu lhe der
nunca mais terá sede:
a água que Eu lhe der tornar se á nele uma nascente
que jorra para a vida eterna».
«Senhor, suplicou a mulher dá me dessa água,
para que eu não sinta mais sede
e não tenha de vir aqui buscá la».
Vejo que és profeta.
Os nossos pais adoraram neste monte
e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar».
Disse lhe Jesus:
«Mulher, podes acreditar em Mim:
Vai chegar a hora em que nem neste monte
nem em Jerusalém adorareis o Pai.
Vós adorais o que não conheceis;
nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus.
Mas vai chegar a hora – e já chegou –
em que os verdadeiros adoradores
hão de adorar o Pai em espírito a verdade,
pois são esses os adoradores que o Pai deseja.
Deus é espírito
e os seus adoradores devem adorá l’O em espírito e verdade».
Disse Lhe a mulher:
«Eu sei que há de vir o Messias,
isto é, Aquele que chamam Cristo.
Quando vier há de anunciar nos todas as coisas».
Respondeu lhe Jesus:
«Sou Eu, que estou a falar contigo».
Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus,
por causa da palavra da mulher.
Quando os samaritanos vieram ao encontro de Jesus,
pediram Lhe que ficasse com eles.
E ficou lá dois dias.
Ao ouvi l’O, muitos acreditaram e diziam à mulher:
«Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos.
Nós próprios ouvimos
e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».

***

«Dá-me sempre desta água»: O encontro de Jesus com a samaritana

Depois de nos ter apresentado as tentações de Jesus e a sua transfiguração, no ano litúrgico A a Igreja propõe, através de excertos do quarto Evangelho, um percurso que nos ajuda a aprofundar o significado do Batismo. No terceiro domingo da Quaresma meditamos no encontro entre Jesus e a mulher samaritana, no qual é revelado o dom da água da vida (João 4, 5-42).

De Jerusalém Jesus deve regressar à Galileia, e poderia fazê-lo passando o vale do Jordão. A estrada era mais plana, mais segura, e permitia não ter de atravessar a Samaria, terra cujos habitantes eram há séculos inimigos dos judeus, de tal maneira que os tinham como impuros e heréticos, e por isso os molestavam quando a atravessavam.

Todavia, diz o texto que Jesus «tinha de» passar pela Samaria, um "dever" que exprime uma necessidade divina: a obediência a Deus. Precisamente porque foi enviado não só aos judeus, Jesus atravessa aquela região para realizar a sua missão. Por causa disso receberá o insulto de quem não o compreende: «És um samaritano e tens demónio» (João 8, 48). Mesmo assim Jesus aceita encontrar aqueles que são considerados inimigos e ímpios. Por isso vai procurar esse povo desprezado e faz-se samaritano entre os samaritanos, parando junto a um poço, como o samaritano da parábola parou junto de quem tinha sido atingido por salteadores (cf. Lucas 10, 33-35).

Na hora mais quente do dia chega à Samaria, «cansado da caminhada», e vai sentar-se próximo do poço de Sicar, o poço de Jacob. Está fatigado e com sede mas não tem meios para chegar à água. Chega então uma mulher que, talvez por causa do seu comportamento imoral publicamente reconhecido, é obrigada a ir para a estrada àquela hora, para não se encontrar com quantos a desprezam.

Jesus pede-lhe: «Dá-me de beber». Ao ouvir aquelas palavras na língua dos judeus, ela maravilha-se: alguém que está na sua mesma condição de assedentada lhe pede de beber, lhe pede hospitalidade, mas é um inimigo, alguém que deveria sentir-se superior a ela. Uma mulher samaritana poderia esperar apenas desprezo de um homem judeu; Ele, ao contrário, faz-se pedinte junto dela. Eis a verdadeira autoridade vivida por Jesus: a sua capacidade de aumentar o outro, de o fazer crescer.

Espantada, a mulher pergunta a Jesus: «Como é que Tu, judeu, pedes de beber a mim, uma mulher samaritana?». Que abaixamento! É isto que a toca e acende uma dinâmica relacional, num face a face cordial, sem mais barreiras. Entre Jesus e a mulher, com efeito, caiu um muro de separação, melhor, dois: um devido à inimizade entre samaritanos e judeus, e outro cultural e religioso de injusta disparidade, que impedia um homem, em particular um rabi, de conversar com uma mulher. Mas se uma pessoa não pode ir a Deus, é Deus que a vai procurar, porque ninguém pode ser excluído do seu amor: é o que narra Jesus com o seu comportamento.

Ele, intuindo que o diálogo promete ser de qualidade, começa a intrigar a mulher: «Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz "dá-me de beber", haverias de lho ter pedido e Ele ter-te-ia dado água viva». A mulher tem sede, Jesus tem sede, mas, na realidade, quem dá de beber ao outro? Há uma sede de água de Jesus e da mulher, tornada mais premente pelo calor, mas há também uma outra sede que lentamente emerge... Jesus sabe que há uma sede mais profunda e sabe que o poço simboliza a Torá, a parte das Escrituras que os samaritanos tinham como a única que continha a Palavra de Deus e à qual devem chegar para viver como crentes. Jesus sabe também que esta mulher, figura da Samaria adúltera (cf. Oseias 2, 7), tentou aplacar a sua sede através de caminhos desacertados: teve vários homens, bebeu toda a espécie de água, vítima e artífice de amores desacertados...

E assim Ele revela a sua condição, mas sem a condenar, antes convidando-a a aderir à realidade e, em consequência, a regressar ao Deus vivo. A samaritana, curiosa, quer saber mais: «Quem és Tu que dás essa água viva? Serás talvez maior que o nosso pai Jacob? Tens realmente uma água que dessedenta para sempre? Onde vais buscar essa água viva?». O patriarca Jacob não só tinha escavado aquele poço profundo, como, segundo a tradição judaica, tinha o poder de fazer subir a água apenas com a sua presença. Jesus é talvez maior que Jacob, poderá talvez dar água que sobe do poço, água viva?

A mulher aceita colocar-se em jogo e recebe, em troca, uma promessa extraordinária: «A água deste poço não mata a sede para sempre, a Lei de Moisés não mata a sede definitivamente, mas Eu dou uma água que se torna fonte inesgotável para a vida eterna». Jesus anuncia-lhe o inaudito, o humanamente impossível: há água por Ele dada que, em vez de ser extraída do poço, torna-se fonte que jorra, água que sobe da profundidade. Beber a água por Ele dada significa encontrar em si uma fonte interior: essa água é o Espírito derramado por Jesus nos nossos corações, Espírito que jorra para a vida eterna, que no coração do crente se torna "mestre interior".

A samaritana começa a intuir algo, e então pede: «Senhor, dá-me dessa água!». Aqui, Jesus dá uma reviravolta imprevista ao diálogo. «Vai chamar o teu marido e volta aqui». Que tem isto a ver com o marido? Na verdade Jesus conhece bem a situação da samaritana, porque «conhecia aquilo que há em cada homem» (João 2, 25). Ele lê na vida amorosa desgraçada daquela mulher a vida idolátrica dos samaritanos com os ídolos estrangeiros. Lê simbolicamente a história do Reino do Norte, Israel, chamado pelos profetas de «mulher adúltera e prostituta» devido à infidelidade ao Esposo único, o Senhor Deus, e ao adultério com os falsos ídolos (cf. Oseias 2,4 - 3,6).

A mulher, respondendo que agora não tem marido, que anda à procura de amantes, confessa não ter encontrado o esposo único, sempre fiel no amor, mesmo em caso de traição. Jesus está diante do povo samaritano para lhes dizer que o Senhor nunca os abandonou, que o quer atrair a si e celebrar com ele bodas de aliança eterna. É por isso que a samaritana, para além da água, deve encontrar quem é a fonte, atrás do dom deve descobrir o doador.

Na resposta dada a Jesus, reconhece implicitamente os seus numerosos fracassos, a sua sede frustrada de comunhão e de amor; é uma mulher na miséria, que conhece donos mas não um esposo, uma mulher explorada e abandonada. Mas descobrindo-se a si mesma, descobre que Jesus é profeta, e logo lhe pergunta onde é possível adorar, onde é possível encontrar Deus e começar uma vida de comunhão com Ele: em Jerusalém, como dizem os judeus, ou no monte Garizim, como defendem os samaritanos?

Jesus anuncia-lhe então a hora: «Crê-me, mulher, chega a hora - e é esta - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e Verdade», isto é, no Espírito Santo e no próprio Jesus Cristo, que é a Verdade, a última e definitiva narração de Deus. Sim, o lugar da autêntica liturgia cristã já não é um lugar-santuário, monte, templo ou catedral, mas é a morada do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ou seja, é a nossa pessoa inteira, corpo de Cristo (cf. 2 Coríntios 13, 5) e «templo do Espírito» (1 Coríntios 6, 19).

Diante desta palavra, a samaritana ousa confessar a própria expetativa: ela e a sua gente esperam o Messias profético, o novo Moisés, esperam aquele que revelará tudo. E é nesse momento que Jesus lhe diz: «Eu sou - o nome de Deus -, que te falo». A mulher revelou-se na sua miséria, Jesus revela-se na sua verdade de Messias, de Cristo, enviado de Deus.

A partir de então o encontro humaníssimo com Jesus transformou aquela mulher numa criatura nova, tornando-a testemunha e evangelizadora. É por isso que, «deixando a sua ânfora» - gesto que diz mais do que muitas palavras -, corre à cidade a testemunhar o que lhe aconteceu. Para a samaritana, testemunhar é antes de mais recordar os acontecimentos, narrar a própria experiência: alguma coisa de decisivo ocorreu na sua vida, e isso provocou nela uma mutação, uma conversão. E assim, depois de ter recordado os factos, sugere uma interpretação: «Será Ele o Messias?». Não impõe a quantos a escutam um dogma, nem uma verdade expressa em termos rígidos, mas propõe uma leitura que lhes permitirá tomar uma opção em liberdade, movidos pelo amor. Sugere mais que conclui, e assim acende o desejo do encontro.

«A fé nasce da escuta» (Romanos 10, 17), dirá o apóstolo Paulo: da escuta de Jesus nasceu a fé da samaritana, da escuta da samaritana nasceu a fé da sua gente. E da fé provém o conhecimento, do conhecimento o amor: este é o acontecimento cristão, admiravelmente sintetizado no encontro de duas pessoas sedentas!


Enzo Bianchi 
In "Monastero di Bose" 
Trad.: SNPC 

Publicado em 16.03.2017

18 março 2017

Pensamentos Impensados

Trajes menores
O slip que o Super Homem usa por cima dos collants pode ser considerado roupa interior?

Banca rota
Leio nos jornais: Caixa com prejuízo recorde. Vou recordar.

Vidas duplas
Lázaro partiu e repartiu.
Lázaro finou e refinou.

É só saúde
Marcelo alicia no país das maravilhas.

Português
Qual o plural de Banco? Banca.

Seq-ço
Os micróbios não têm sexo, daí não perceber como se reproduzem. Impressora 3D?

Geometrices
Buraco redondo com três metros quadrados.

Justiça
Julgamentos à porta fechada têm juizes em causa imprópria.

SdB (I)

17 março 2017

Crónica de um doutorando tardio

Naquilo que poderia ser uma espécie de aforismo, Fernando Pessoa afirmou, no seu ensaio O Provincianismo Português, que “quando um doido sabe que está doido, já não está doido.” Num tempo não muito distante desse, Pascoaes escreveria um livro autobiográfico intitulado O Pobre Tolo. Não estava tolo e, muito menos ainda, era tolo. Talvez fosse apenas excêntrico, no sentido de viver fora do centro das coisas, fora da normalidade estatística da vida comum. Talvez tivesse a excentricidade dos génios, dos que pertencem às franjas da distribuição normal dos dons.

Na parte em prosa do livro citado, Pascoaes repete por três vezes, numa vintena de linhas, que "a infância persegue a velhice". E tem esta espécie de epílogo luminoso: "a infância persegue a velhice, a aurora persegue a noite. Persegue a noite e há-de alcançá-la e dissolver-lhe todas as sombras; e a noite será dia! Também a infância há-de alcançar o pobre tolo; e o pobre tolo há-de ser, outra vez, um anjo". E a ideia de anjo é a ideia da pureza, da existência divina, da tolice como significado de idiotia e a idiotia como significado de sem instrução e sem instrução como significado de criança pura e criança pura como significado de anjo.

Um destes dias, a propósito do meu post sobre a surpresa, o riso e o sorriso (críptico e pouco inteligível, ao que parece) falava de uma das razões para o encanto que descubro no regresso à faculdade: a capacidade que ainda tenho [ou que (re)descobri] de me surpreender com as coisas, de aprender com as pessoas, de ter vislumbres de encanto mesmo nas coisas que para os outros são pouco mais do que banais. E veio-me à memória o excerto de uma carta que enviei a um bom Amigo há um bom par de anos, e que me parecem palavras premonitórias para uma altura em que o regresso à escola era frase de publicitário, palavras que já aqui pus mais do que uma vez para adornar o mesmo raciocínio: sabes, cada vez mais tenho a certeza de que não invento nada, não crio nada, não deslindo nada. Uso as palavras que outros inventaram, tenho as sensações que outros já definiram. E, no entanto, sinto muitas coisas como se fosse o pioneiro delas no mundo. Vejo-me como uma criança que usa uma gravata pela primeira vez, e que responde ao fatalismo do ”já muitos a usaram antes de ti...” com o prazer singelo da descoberta: “pois eu gosto dela como se fosse o primeiro”.

Ser-se criança é estar-se aberto à surpresa, não se ser condicionado pela vergonha da ignorância. Talvez eu esteja a tornar-me uma criança que olha para tudo com um desejo imenso de aprender, como se me apresentasse à vida com um livro em branco que preencherei com o que aprendo.  Talvez a minha infância persiga, de facto a minha velhice, e por isso eu vá alegre, de mochila às costas, aprender a ser sempre esta criança.

JdB

16 março 2017

Textos dos dias que correm

Onde estão os jovens?

Onde estão os jovens? Esta é uma interrogação comum nas paróquias católicas de vários países, e em breve os responsáveis da Igreja vão poder entender porque é que tantos deixaram as comunidades eclesiais. Em janeiro o Vaticano convidou os bispos a responderem a um questionário de 20 perguntas sobre os jovens, de modo a preparar o sínodo de outubro de 2018, que se centrará no tema "Jovens, a fé e o discernimento vocacional". O documento sublinha que os episcopados não devem só olhar para os jovens que participam na Igreja, mas também para aqueles que estão afastados.

Nos EUA, um estudo realizado pelo Pew Research Center em 2009 concluiu que entre os católicos que se afastaram da Igreja, 80% optaram por essa decisão antes dos 24 anos. Se os bispos de qualquer país desejarem saber porque é que a juventude se distancia, podem começar por estes. Perceberão que o motivo tem menos a ver com a ausência de crença e mais com o facto de os mais novos quererem uma Igreja em que possam acreditar.

Entre as várias causas apontadas no estudo para o abandono, um número relativamente alto aponta para os ensinamentos da Igreja sobre a sexualidade, com 56% dos inquiridos a declarar que não se sentem bem com ele. Há também 48% das pessoas que saíram da Igreja a relatar que não concordam com o magistério sobre o controlo dos nascimentos.

Uma investigação mais recente, realizada em 2014 pela PRRI, mostra que os jovens católicos sentem que os grupos religiosos são demasiadamente críticos sobre questões relacionadas com a homossexualidade. A percentagem de inquiridos que subscreve esta posição situa-se entre os 56% e os 59%, de acordo com a idade.

A sondagem de 2009 também revela que 39% católicos jovens deixam a Igreja por causa da maneira como os seus responsáveis tratam as mulheres. Mesmo entre os católicos que continuam a participar, uma larga maioria gostaria de ver mudanças para elas.

«Olhando para as sondagens ao longo do tempo, tornou-se muito evidente que a longa lealdade das mulheres em relação à Igreja e compromisso com o catolicismo já não podem ser tomados como garantidos», consideram os autores do livro "American catholics in transition" (Católicos americanos em transição), escrito em 2013 por William D'Antonio, Michele Dillon, and Mary Gautier. Os autores notam uma trajetória em declínio durante os últimos 25 anos cuja intensidade ainda não ocorreu entre os homens.

«Diferentemente das suas avós e mães, as mulheres católicas nascidas após o Concílio Vaticano II [1962-1965] parecem ter menos vontade de dar à Igreja institucional o benefício da dúvida e permanecerem leais à Igreja e ao catolicismo enquanto esperam pela mudança», declaram os sociólogos que redigiram a obra. Para explicar o declínio mais acentuado da presença das mulheres nas comunidades cristãs, os autores avançam a hipótese de se dever ao facto de muitos dos ensinamentos acima mencionados afetarem a personalidade feminina.

É interessante notar que entre os motivos dados pelos católicos para deixarem de participar, no estudo de 2009, não mais de 8% referiram que a Igreja se afastou demasiadamente das práticas tradicionais, como a missa celebrada em latim.

Poder-se-ia pensar que aqueles que deixam a Igreja nunca foram "verdadeiros crentes". Ao contrário, a investigação de 2009 revela que apenas 4% dos inquiridos afirmaram que «não acreditam em Deus/Jesus». As pessoas que cresceram como católicas, quer aquelas que abandonaram a Igreja quer as que ficaram, referem níveis de participação em aulas e grupos, durante a infância, praticamente iguais.

Não estamos a perder jovens católicos que foram batizados e nunca puseram os pés numa igreja; estamos a perder os jovens e jovens adultos que esta semana estão sentados ao nosso lado nos bancos da igreja e poderão não estar de regresso no próximo domingo.

Na minha experiência, tendo trabalhado com muitos jovens adultos católicos durante mais de uma década, aqueles que deixam a Igreja fazem-no muitas vezes para preservar o espírito que neles habita. Os jovens católicos querem agarrar-se à sua integridade e sentem que não podem rezar no altar de uma religião que não pratica o que prega. Outras vezes, a sua razão para abandonarem é precisamente a pregação, quando a mensagem da homilia se torna política ou nociva.

Além de criarem novos programas ou maneiras de atrair os jovens, os responsáveis eclesiais também precisam de responder a algumas das preocupações mais profundas, que incluem injustiças estruturais e ensinamentos nocivos que estão a levar os jovens adultos fiéis para fora das portas da Igreja. Mas ao mesmo tempo muitos, incluindo eu, empenharam-se em ficar.

Por isso, quando ouvir alguém perguntar «onde estão os jovens?», diga-lhe que estamos aqui. Alguns tiveram de abandonar, em boa consciência ou para o seu próprio bem-estar, mas outros decidiram permanecer católicos a longo termo. As razões para ficar são muitas, incluindo o nosso amor pela fé, a nossa gratidão pela tradição e o facto de sabermos que se trabalharmos juntos, podemos criar uma Igreja melhor.

Às vezes esqueço-me, mas tento lembrar-me que estou a seguir o rasto de outro jovem adulto, chamado Jesus: uma pessoa de fé marginalizada que mostrou à sua religião e à sua sociedade que o amor, efetivamente, triunfa - mesmo diante do ódio, mesmo sobre o poder da morte.

Hoje, acredito que muitos jovens católicos adultos estão a tentar, à sua pequena medida, fazer o que Jesus fez: ter a certeza de que o amor firma raízes e cresce nos nossos ensinamentos da Igreja, nas nossas políticas públicas. Talvez nunca antes na minha vida eu tenha sentido um desejo tão grande de permanecer unida ao legado de Cristo, trabalhando para uma sociedade e uma Igreja em que podemos acreditar.


Nicole Sotelo
In "National Catholic Register"
Trad.: SNPC
Publicado em 14.03.2017

15 março 2017

Gente que vou conhecendo *

Agarremos as duas dimensões bastantes para caracterizar a Cidália: a física e a comportamental, já que o resto são floreados que pouco acrescentam à identificação da personagem.

Físicamente, a rapariga (38 anos, bióloga marinha, investigadora, amante de ficção científica e da doçaria conventual) situa-se numa espécie de trave olímpica com metade da largura. Alguns, metaforicamente falando, dirão que tomba para o lado de um excesso ponderal mínimo, quiçá imperceptível. Que pena, bastariam um ou dois quilos...; outros, presos à mesma metáfora, dirão que não, que é uma mulher muito interessante (uma educação verbal que suaviza a concupiscência do olhar).

Quanto ao comportamento, Cidália poderia ser classificada com uma palavra apenas: submissa. Em querendo compor-se a descrição poderia acrescentar-se uma segunda, como alguém que revela apelido, nome próprio: submissa. Naturalmente submissa. Profissionalmente é aquilo a que se chamaria, na aridez pouco criativa do jargão das empresas, uma excelente número dois. Discreta, desejosa de uma transparência cómoda, é o sossego dos recursos humanos em tempos de crise: não ambiciona subir.

Invistamos ainda um pouco na intimidade de Cidália, que é casada há 15 anos com Bruno (41 anos, engenheiro informático, coleccionador de revistas temáticas, adepto do Esperança de Lagos e devorador de pipocas) e de quem ele também poderia dizer: submissa. Naturalmente submissa. A bióloga vai por onde o Bruno vai, faz o que o Bruno faz, deixa-o brilhar nos convívios sociais, nos jogos de mímica, no quem quer ser milionário em versão de sofá caseiro, nas noites de sexo ao som dos UHF. Digamos, entrando de mansinho num erotismo arrojado que, no leito, Cidália mantém a mesma atitude promocional: não ambiciona subir. Bruno, gerente de uma empresa no Cacém, é mestre no trocadilho, e entre uma revista sobre processadores e um olhar lascivo, garante que gosta de estar em cima do acontecimento. E ri muito, porque lhe disseram que rir é o melhor remédio.

A lua está cheia e as marés estão altas, e o povo diz que é nessa altura que as mulheres se fixam mais. Numa cama conforama com lençóis de um negro sinistro, Bruno exercita a sua virilidade, revelando um corpo sem adiposidade. Cidália segue-o, cumpre sem louvor e sem gozo, deixa que ele, metaforicamente, afirme saber mais de bivalves do que ela, bióloga marinha e investigadora. Mas num instante, num minúsculo instante, o olhar dela transtorna-se, atravessa os peitorais do informático e aterra numa aldeia da Baixa Saxónia de onde veio o avô, o pai do avô e outros avôs até à quinta geração - porque de mais longe não se herda - e da sua boca começaram a sair, num jorro de água solta, uma infinidade de palavras em alemão. Bruno esquecera a costela teutónica da mulher e surpreendeu-se quando ela gritou Deutschland uber alles. Era tarde...

JdB

* publicado originalmente em 23 de Fevereiro de 2011

14 março 2017

Duas Últimas

Voltei a posar para um amigo que vai pintando sequencialmente uma série de amigos. As primeiras vezes (sim, sou repetente nesta matéria) as duas horas que lá passava eram mais difíceis. Ele concentrado no seu mister, eu, em silêncio, combatendo o sono do pós-almoço e tentando descortinar uma história na paisagem em frente, repleta de casa e vegetação, deserta de gente. Agora é tudo mais fácil: levo o meu iPod, uma coluna boa que me deram que pouco maior é do que uma caixa de óculos e faço a selecção musical: ouvimos milongas, Dick Farney, Diego el Cigala, Borodin ou Saint-Saens. Ele já não requer a minha imobilidade, eu entretenho-me a apresentar-lhe algumas coisas que ele desconhece. Volta e meia encontramos uma boa frase numa letra, como a de alguém que falava num silêncio conventual

Deixo-vos com Ana Vidovic, uma cara simpática e interessante a tocar coisas venezuelanas,  um género musical que muito me apraz e que também nos fez companhia, pelas prodigiosas mãos de John Williams. Una limosna por el amor de Dios remete-nos para um tempo muito passado. Uma esmolinha, pediam os pobres. Tenha paciência, respondiam os mais afortunados, como se a pobreza - e a pobreza genuína, de quem vive da caridade mais básica - se suportasse com uma paciência evangélica; como se a pobreza uma fatalidade na vida de alguns. No fundo, havia que ter paciência para a pobreza, como há que ter paciência para tanta coisa - o trânsito, a carestia de vida, os hotéis cheios do Algarve, a chuva a desoras.

JdB 

 

13 março 2017

Dos olhos e do Lindoso

- Você sabe, aquela ideia dos jornais taparem os olhos das pessoas para que elas não sejam reconhecidas é ridícula. Acha que o Cavaco Silva só reconhecido pelos olhos, e não pela boca? Ou o António Costa com aquela cor indiana? Ou o Tolstoy e aquela barba? Além disso, não sei se você sabe que, no que se refere ao contacto com os outros, a visão é um sentido difícil de interpretar. Ou seja, quando alguém olha para nós nunca sabemos exactamente que olhar é aquele.... Você está a ouvir alguma coisa do que eu estou a dizer, António Bernardo?

António Bernardo sobressaltou-se, mas não tirou as mãos do livro que folheava naquele momento. Há muito que perseguia aquela Resenha Histórica das Famílias Nobres do Alto Lindoso, com profusas ilustrações do autor, que encontrara numa oportunidade fantástica num alfarrabista em mudança de colecção. 

- Estou a ouvir tudo, Matilde. Os olhos, o Cavaco, o Costa e o russo. 

- Há essa coisa da iridologia, uma técnica que permite ver doenças nas pessoas só de olhar para a íris. Mas eu falo de um nível diferente. No fundo, olhar para alguém e perceber o que traduz aquele olhar: raiva, desejo, simplicidade, compaixão. Não lhe descortinar o fígado, mas adivinhar-lhe o momento. Eu acho que sou muito sensível aos olhos de uma pessoa, estou sempre a detectar sinais.

- Acho isso fantástico, Matilde. Eu lembro-me de falarmos nisso quando casámos e você achou que o sacristão tinha olhos de desdém. Eu só via olhos castanhos, mas você via-lhes desdém. 

- Tem de andar mais para trás, António Bernardo. Foram os seus olhos que me perderam naquele cocktail da tia Mariazinha, quando nos conhecemos. Vi-o no jardim e percebi que estava agarrada como uma drogada; os seus olhos revelavam muito do que vim a conhecer e que tanto me atraiu... Riram para mim, percebe?

António Bernardo afagou de novo o livro, mirando-o por todos os lados: estava encadernado com rigor, perícia, gosto, cabedal e ouro. Olhou pela janela aberta da sala e tentou o impossível: sentar virtualmente na sua sala as famílias nobres do Alto Lindoso, como se uma aristocracia de antanho pudesse estar ali com ele, a falar dos sucessos e das conquistas, da fé e das caçadas, da voragem expansionista que estimula e atemoriza; uma conversa aprazível, pares entre pares, sem que a presença de uma televisão, de um aquecedor a óleo ou de um cachimbo estilizado lhes tolhesse o discurso por se perceberem uma nota dissonante. 

Não conseguiu ver ninguém, a não ser a Clara, sua colega no escritório: uma rapariga bonita, da sua idade, jovem advogada que se formara com uma nota fantástica num faculdade desafiante. António Bernardo escondera-lhe o seu casamento que atravessava um ligeiríssimo momento rotineiro, apesar do amor existente. Clara era alta, magra, de feições correctas, vinda de Germil (Ponte da Barca, Lindoso). Acima de tudo adivinhava-lhe os pensamentos olhando-o profundamente nos olhos:

-  Gostavas de beijar-me, António Bernardo? Ou de mais alguma coisa, já agora? Porque é isso que dizem os teus olhos... 

E António Bernardo sorria e beijava-a de olhos muito abertos, para que a Clara, nascida no Lindoso, lhe visse a alma, o desejo ou talvez, quem sabe, o remorso pela traição à Matilde, a mulher de quem ele gostava e para quem os olhos não tinham supostamente segredo.

- Estás triste, António Bernardo? Os teus olhos não enganam...

António Bernardo pousou o livro, deitando um último olhar a uma das profusas ilustrações do livro, fixando o olhar num senhor antigo, afagando um podengo à lareira. Olhou para a Matilde e quis esquecer a Clara, a elegância da Clara, a clarividência da Clara (uma associação onde encontrava um presságio curiosos...). Fixou os olhos em Matilde que, sorridente, lhe devolveu o olhar:

- Não me faça esses olhos doces, António Bernardo, de cão triste que quer um afago e cinco minutos de atenção. Já o conheço tão bem... Esses olhos nunca me enganaram. Quer ir beber um chá para se animar?

António Bernardo levantou-se e agarrou Matilde pela cintura. Levantou-a e sentou-a nas costas de um sofá. Depois, olhando muito para ela, beijou-a ardentemente, sensualmente, com uma voracidade inaudita. Afagou-a como se afaga uma fato novo ou um livro raro - com sensibilidade e paixão. Desejou-a mais do que nunca e disse-lho. Um desejo carnal, quase animal, carregado também de um amor que ele conseguia dividir com a Clara (Germil, Lindoso). No fim, deitados os dois no sofá, semi-vestidos e ofegantes, sorriram um para o outro.

- O que lhe dizem os meus olhos agora, Matilde?

JdB     

         

12 março 2017

II Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Mt 17,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão
e levou os, em particular, a um alto monte
e transfigurou Se diante deles:
o seu rosto ficou resplandecente como o sol
e as suas vestes tornaram se brancas como a luz.
E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele.
Pedro disse a Jesus:
«Senhor, como é bom estarmos aqui!
Se quiseres, farei aqui três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés a outra para Elias».
Ainda ele falava,
quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra
e da nuvem uma voz dizia:
«Este é o meu Filho muito amado,
no qual pus toda a minha complacência. Escutai O».
Ao ouvirem estas palavras,
os discípulos caíram de rosto por terra a assustaram se muito.
Então Jesus aproximou se e, tocando os, disse:
«Levantai vos e não temais».
Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus.
Ao descerem do monte, Jesus deu lhes esta ordem:
«Não conteis a ninguém esta visão,
até o Filho do homem ressuscitar dos mortos».

11 março 2017

Pensamentos Impensados

Meio e metade
Oiço na TVI um repórter dizer meio dia e meio. Meio quê? Meio bife? Meio de Transporte? Não haverá meio de travar estas calinadas?

Meio soprano refere-se à metade do umbigo para cima que é onde está o diafragma, os pulmões, a traqueia e os órgãos da fala.

Quanto é a metade de 8? Peguem no 8 e cortem-no de alto a baixo, e verão que uma metade é um 3 e a outra é um E. Logo, a metade de 8 E3.

Carreiras
O CEO não é o limite.

Velocidades
O campeão dos 100 metros, corrida, é um best célere.

Mistérios
Ainda não percebi o caso dos ovos chocos do Panamá. Ainda vão atirar as culpas para cima do galo.

Escribas
Hércules tinha umas colunas, só não se sabe em que jornal.

Novo acordo
O óptimo é inimigo do ótimo.

SdB (I)

10 março 2017

Textos dos dias que correm

izhphoto/Bigstock.com

Perdi-te, mas procuro-te

A Igreja é um grande hospital ao serviço 24 horas sobre 24 há dois mil anos. Um hospital ao serviço para todos. Para quem tem um seguro e para quem não o tem. Para os ricos e para os que nada têm. Para gente famosa e para gente desconhecida e marginal. Um grande hospital em que se enfrenta cada doença, por muito avançada que esteja, por infeciosa e mortal que seja. Um grande hospital em que se entra doente e se sai curado, como a mulher com hemorragia. Entra-se perseguidor e sai-se apóstolo, como Paulo. Entra-se pecador e sai-se santo, como Santa Maria Egizíaca. Entra-se lobo e sai-se cordeiro, como S. Moisés, o Etíope. Entra-se cadáver em decomposição e morto há quatro dias, e ressuscita-se, como Lázaro. Porque na Igreja não há morte. Não há mortos. A Igreja é a terra dos vivos, onde há vida e sobreabundância de vida, isto é, Cristo.

A Igreja oferece há séculos os seus próprios medicamentos, de modo a salvar o mundo; há séculos ela própria tem resultados miraculosos: gera santos. Em nenhum outro lugar, onde quer que seja, nascem santos, a não ser na Igreja. Noutros lugares encontramos pessoas boas, santos não. Porque os santos, homens como nós, que connosco partilham enfermidades e doenças, entraram na Igreja e entregaram-se sem reservas às diretivas do médico. E Cristo, que não só é médico mas também pai, entrega-se a quantos se lhe entregaram. Inclina-se sobre eles amorosamente, totalmente, como só Ele sabe; conforta, assiste, cura, santifica e glorifica. O Cristo misericordioso faz-se tudo para todos para salvar o homem.

A Igreja, mesmo se a renegamos, continua uma mãe que anseia por recolher os seus filhos. Anseia e espera, na esperança de que nós, mesmo depois de muitos anos, a ela voltemos. Mas o nosso regresso à Igreja pressupõe uma consciência, que não é vazia. Há um Pai que nos ama fielmente, de maneira inalterável para sempre. Qualquer que seja o estado em que nos apresentemos, qualquer que seja o lugar de onde somos provenientes, por quão dissolutos que possamos ter sido, há um Pai que saiu ao caminho e nos espera.

Se conseguíssemos dizer às pessoas esta única poderosa e consoladora verdade: que na Igreja dás lágrimas e recebes remissão; que Cristo não se ocupa dos nossos pecados mas do nosso arrependimento. Se conseguíssemos dizer aos jovens para não hesitarem, qualquer que seja a maneira como viveram, a regressar à Igreja. Porque a Igreja é mãe e, quando a ela voltamos, não pergunta para saber o que fizemos, mas olha-nos nos olhos para ver o que sofremos, a que farrapos fomos reduzidos. A vida da Igreja e o seu amor por nós não dependem nem da nossa miséria nem da nossa santidade, mas de Cristo.

Se conseguíssemos dizer aos nossos filhos que o sacerdote, qualquer que seja, é capaz de fazer aquilo que nem sequer os anjos podem fazer: a divina liturgia. Ou seja, ele faz descer Deus à Terra. Faz descer a Mãe de Deus. Faz descer milhares de anjos que se aglomeram ali, no templo, mas que nós não temos olhos para ver. Esta é a divina liturgia. Homens e anjos e santos juntos. Vivos e defuntos, avós e bisavós, os crentes de todos os séculos. Todos membros de Cristo. Corpo de Cristo. Ossos de Cristo. Contigo que amo e contigo que negligencio. Com os familiares e com os inimigos. Todos um só corpo. Isto acontece em cada liturgia. Isto acontece na Igreja. Para nós. Esta é a Igreja. Mãe de uma força ilimitada, de um alcance ilimitado. Basta que nos confiemos a ela. (...)

Vivemos em tempos extremos. O rio parece não ter retorno. O pecado multiplicou-se à desmesura, e disso todos somos culpados. Sentimo-nos inocentes, mas não o somos. Todos temos uma quota de responsabilidade, mesmo se não o queremos reconhecer. Por isto chora a Igreja.

Se não nos arrependermos nunca amaremos como ama quem obteve misericórdia, nem nunca compreenderemos como ama a Igreja. Há a história de uma mãe viúva que perdeu a sua filha adolescente. Tinha ido para a capital e vivia de forma bastante livre, em casas de prazer. Era impossível encontrá-la. Desesperada, a mãe fez várias cópias de uma fotografia sua e por baixo escreveu: Filha minha, perdi-te, mas não te esqueci. Filha minha, perdi-te, mas procuro-te». A mãe colou-a junto às casas de má reputação. Um dia, anos depois, a jovem, entrando numa dessas casas, encontrou-se diante da fotografia da sua mãe. E pela primeira vez, depois de anos, no seu coração deserto abriu-se uma fenda e começaram a jorrar lágrimas. Pela primeira vez, depois de anos, os olhos da filha rebentaram de pranto. Pela primeira vez, depois de anos, recordou-se da sua origem, da mãe que a tinha gerado, e regressou, para nunca mais sair.

É isto que também a Igreja tem feito por nós. Colocou em todo o lado a sua fotografia: o ícone, o campanário, o Evangelho, o confessor, a estola santa. Colocou em todo o lado a sua fotografia e diz, também a nós, as mesmas palavras: «Filho meu, perdi-te, mas não te esqueci. Filho meu, perdi-te, mas procuro-te». Na esperança que também o nosso coração de pedra abra uma fenda. Na esperança de que os nossos olhos, ressequidos pela "esclerose do coração", infundam lágrimas. Na esperança de que regressemos à verdadeira mãe. À mãe que salva, tem compaixão e bendiz o mundo. Esta é a Igreja dos apóstolos. Esta é a Igreja dos Padres. Esta é a Igreja dos santos. É esta Igreja que tem sustentado o universo.


Maria Mourzà
Cristã ortodoxa ligada espiritualmente ao Monte Athos
In "L'Osservatore Romano", 8.3.2017
Trad.: SNPC
Publicado em 08.03.2017

Acerca de mim

Arquivo do blogue