30 setembro 2020

Poemas dos dias que correm

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

***

lamento por diotima

o que vamos fazer amanhã
neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?

amarfanhar-nos numa cadeira
ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina?
o que vamos fazer amanhã

que não seja um ajuste de contas?
o que vamos fazer amanhã
do que mais se sonhou ou morreu?
numa esquina talvez te atropelem,

num relvado talvez me fusilem
o teu corpo talvez seja meu,
mas que vamos fazer amanhã
entre as árvores e a solidão?

Vasco Graça Moura, in “O Concerto Campestre”

29 setembro 2020

Do conhecimento da vida (e do corpo) pelos sinais

Disclaimer: este post pode ter uma certa quantidade de lugares-comuns revestidos de um certo dramatismo.

Nos últimos meses fui confrontado com dois casos de cancro em crianças e um caso num bebé. Com excepção desta última situação (sou amigo da mãe e da sua família) não conheço as crianças nem os Pais, apenas alguns avós. Há uns meses, rapaz da minha idade, de quem não era amigo próximo mas que conhecia há muitos anos, morreu com um tumor cerebral. Um destes dias soube também que um parente, poucos anos mais velho do que eu, sofria do mesmo mal. Só falo do que se passou nestes últimos meses, não há necessidade de encontrar outros exemplos de um passado mais ou menos recente.

Estou, por motivos puramente preventivos, numa altura de exames médicos. Talvez esteja tudo óptimo, talvez um dos exames ou das análises revele um parâmetro ligeiramente deslocado, algo que, não sendo preocupante, indique uma necessidade de atenção. 

Entre o parágrafo dos dramas e o parágrafo de uma certa normalidade há um ponto comum, que não é a senilidade insensível de quem os escreve. Tanto o sufoco de quem vê um filho, ou se vê a si próprio, diagnosticado com uma doença grave como os resultados de análises triviais têm uma importância que não é despicienda e que os une: os sinais. Nada como lembrar Rui Veloso a cantar Carlos Tê: Que adianta saber as marés / Os frutos e as sementeiras / Tratar por tu os ofícios / Entender o suão e os animais / Falar o dialecto da terra / Conhecer-lhe o corpo pelos sinais. 

Em virtude de ser presidente de uma associação que lida com crianças com cancro, e de ser quase presidente de uma confederação mundial de associações semelhantes, o tema cancro pediátrico entra-me pelo computador todos os dias: um artigo que é preciso escrever, uma conferência via zoom, um texto científico para ler, um plano estratégico, sei lá mais o quê. Há uma altura a partir da qual o tema, apesar de todo o seu dramatismo, se torna excessivamente científico, árido, estatístico, racionalmente sofredor. São números, gráficos com tendências, referências a medicamentos ou a formas de cancro; não são rostos familiares, sofrimentos aos quais possa atribuir um rosto ou um nome. Saber que um bebé, que esteve em minha casa há pouco tempo e por cuja mãe tenho ternura e amizade, tem um neuroblastoma, dá forma humana à aridez dos documentos ou das estatísticas. É, de certa forma, o rosto de todos os rostos que não consigo ver.   

A vida dá-nos sinais: é o caminho árduo de um parente a 10 anos de cumprir a esperança de vida estatística, é o diagnóstico de cancro em crianças, é uma análise fora do intervalo recomendado para pessoas saudáveis da minha idade. São sinais de tudo: da fragilidade da vida, da necessidade de uma certa auto-vigilância (vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora, diz a Bíblia) da responsabilidade para com os outros, para que não desapareçamos com a casa (uma metáfora para a nossa existência) por arrumar, a meio de quezílias recorrentes, de zangas antigas, de relações cortadas. Para que não desperdicemos a vida, cuja duração nos é (quase) totalmente imprevisível, em inutilidades.  

Todo este post se reveste, seguramente, de um grande lugar-comum, de frases já batidas ou de pensamentos que ficam ocos se não forem recheados com acções. É verdade. Porém, se eu escrever sobre este tema é porque pensei sobre este tema, e talvez isso se torne em acção. Se assim não for, Sartre não tinha razão: o inferno não são os outros.

JdB               

27 setembro 2020

26º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 21,28-32

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos do povo:
«Que vos parece?
Um homem tinha dois filhos.
Foi ter com o primeiro e disse-lhe:
'Filho, vai hoje trabalhar na vinha'.
Mas ele respondeu-lhe: 'Não quero'.
Depois, porém, arrependeu-se e foi.
O homem dirigiu-se ao segundo filho
e falou-lhe do mesmo modo.
Ele respondeu: 'Eu vou, Senhor'.
Mas de facto não foi.
Qual dos dois fez a vontade ao pai?»
Eles responderam-Lhe: «O primeiro».
Jesus disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Os publicanos e as mulheres de má vida
irão diante de vós para o reino de Deus.
João Baptista veio até vós,
ensinando-vos o caminho da justiça,
e não acreditastes nele;
mas os publicanos e as mulheres de má vida acreditaram.
E vós, que bem o vistes,
não vos arrependestes, acreditando nele».

25 setembro 2020

Textos dos dias que correm

O Ponto mais Alto da Moral Consiste na Gratidão

O ponto mais alto da moral consiste na gratidão. E esta verdade proclamá-la-ão todas as cidades, todos os povos, mesmo os oriundos das regiões bárbaras, neste ponto estão de acordo os bons e os maus. Haverá quem aprecie sobre­tudo o prazer, outros haverá que julguem preferível o esforço activo; uns consideram a dor como o sumo mal, para outros a dor não será sequer um mal; alguns inclui­rão a riqueza no sumo bem, outros dirão que a riqueza foi inventada para o mal da humanidade e que o homem mais rico é aquele a quem a fortuna nada encontra para dar; no meio desta diversidade de posições uma coisa há que todos afirmarão, como soe dizer-se, a uma só voz: que devemos gratidão àqueles que nos favorecem. Neste ponto toda esta multidão de opiniões se mostra de acordo, mesmo quando por vezes pagamos favores com injúrias; e a pri­meira causa de ingratidão é não podermos ser suficiente­mente gratos. A insensatez chegou ao ponto de se tornar perigosíssimo fazer um grande benefício a alguém; como se considera uma vergonha não pagar o benefício, julga-se preferível não existir ninguém que no-lo faça! Goza em paz o que de mim recebeste; não to reclamo, não to exijo. Basta-me saber que te fui útil. Não há ódio mais violento do que o proveniente de um benefício não honrado!

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

***

A Gratidão não é Coisa de Pouca Monta

Ninguém poderá ser grato se não desprezar tudo aquilo que excita a atenção do vulgo: se quiseres, de facto, retri­buir um favor terás que estar disposto a enfrentar o exílio, a derramar o teu sangue, a resignar-te à indigência, a con­sentir mesmo que a tua inocência seja posta em causa e se sujeite a infames boatos. Um homem grato não é coisa de pouca monta. Habitualmente, a nada se dá mais valor do que a um benefício enquanto o solicitamos, mas a nada se dá menos valor depois de obtê-lo. Sabes o que ocasiona em nós o esquecimento dos favores recebidos? É o desejo daqueles que procuramos obter! Não pensamos no que já conseguimos, mas só no que ainda procuramos alcançar. Somos desviados do caminho recto pelas riquezas, as hon­ras, o poder e outras coisas mais que a opinião comum considera valiosas mas que em si mesmas nada valem.

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

24 setembro 2020

Duas Últimas (sugerido por mão amiga)

 

Confirmei uma estranheza vaga que me chegou via faculdade: num tempo ido, os Beatles gravaram uma música que se chama Komm, gib mir deine hand. Para os curiosos, no youtube é fácil encontrá-la com este nome. Estranhamente, é igual a uma música que a banda gravou, e que se chamava I wanna hold your hand. A versão alemã seria traduzida por vem, dá-me a tua mão, a versão inglesa por quero segurar a tua mão. Confesso que não me atirei a uma leitura comparada das letras em ambas as versões. O meu alemão é básico e, se o não fosse, talvez a análise fosse dolorosa, dada o carácter genericamente gutural da língua germânica. 

Confesso ainda que, se não soubesse o que estava a ouvir, talvez achasse que ouvia a versão original; ou talvez fosse apenas a qualidade do som, não sei. O importante é que eu ouvia a mesma música, sendo que para outras pessoas eu poderia estar a ouvir uma música diferente, pese embora a melodia igual e os intérpretes iguais.

O que ouvimos quando ouvimos uma música numa língua que não a nossa? O que nos encanta quando nos encanta uma música numa língua que não a nossa? O que dançamos e o que cantamos? A música, a letra, ou ambas? O raciocínio acima não é desligado da música que aqui apresento: quem não sabe francês pode gostar desta música? Se sim, do que gosta? É a melodia, ou talvez a interpretação, naquela toada de samba juvenil? E o que canta quem canta esta música mas não domina a língua? Canta sons, apenas. Porém, se não percebe o que canta, tanto faz cantar em francês ou num dialecto esquimó. É assim?

E o que acontece se a música for em português? Que importância damos à letra? 

JdB

23 setembro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

HINO DA QUARENTENA?  

Sons vitamínicos e com bom ritmo ascenderam a hinos da (esperemos que única) quarentena, por regiões e, nalguns casos onde a letra teve peso, também por língua. Confirma o condão da música para juntar e animar multidões, sendo a expressão de arte mais interplanetária pela sua linguagem universal. 

No Sul da Europa, houve um mano-a-mano feliz, começado em Espanha pela compositora madrilena Elena Iturrieta, e continuado em Portugal pela voz forte e fresca da Xana Guilherme.  

Uma e outra só fazem música por hobby, apesar do óbvio talento de ambas. A espanhola, conhecida no meio artístico pelas iniciais do seu nome – “ELE”, que à espanhola soa “élé” –, é professora de inglês. A portuguesa trabalha no Bankinter, o que calhou em cheio para ser a vocalista-mor da banda sonora da campanha publicitária do banco, dedicada à confiança para espalhar esperança durante o insólito do confinamento. O sucesso foi imediato, tornando-se viral. 

A letra musicada por Elena/ELE foi escrita pelo argentino e especialista em marketing Leandro Raposo, a apelar para um sentido na vida que não se deixe aprisionar pelo dinheiro. De certo modo, tocou num tema evitado durante o confinamento, sobre a regressão económica severa que aquela paragem representou para muitos.  Esse foi o lado negativo daquele tempo. Nas notícias, os bombardeios diários cingiam-se quase só às estatísticas sobre os efeitos da pandemia em termos de saúde pública.

No anúncio do Bankinter, a ária inspiradora da ELE valoriza-se com a sequência de imagens concebida pelos três cracks da recém-criada empresa publicitária Sioux Cyranos, a partir dos detalhes bem escolhidos dos desenhos impressos nas notas monetárias que circulam pelas quatro partidas do mundo. Tanto pormenor interessante, quase sempre habitado de gente sorridente, interessada nalguma coisa, inspira empatia. Dá vontade de procurar afinidades e  descobrem-se tantas que nunca os traços étnicos ensombram, antes acentuando a base comum essencial. Como num jogo sem-fronteiras, o mundo fica um pouco mais familiar:

Se na voz intimista da ELE, a canção se torna interpelativa e convida a pensar, na cadência ritmada da Xana a mesma música adquire uma vitalidade ainda mais contagiante num convite para acordar... Reagir, recuperar ânimo, acreditar que o rol de semanas fechados em casa passará, e convém não largar o leme do barco, menos ainda desistir de ter rumo e de continuar a aproveitar os ventos, mesmo pequenos sopros incertos, para seguir caminho, conforme faça sentido para cada um. É divertido resultar a versão da portuguesa a mais salerosa das duas, talvez pela personalidade e clareza da sua interpretação: 

Tirando partido do conforto dos concertos zooms surgidos durante o confinamento da Primavera, o Bankinter ainda ofereceu aos internautas do globo um concerto do grupo da ELE, que arranca com a versão publicitária «Volverán eses Momentos de las cosas cotidianas» mas, ao min. 3:58, flui o concerto recheado da mistura de blues e acordes de jazz da compositora, que inclui (no meio) uma interpretação doce de  I WISH YOU WERE HERE dos Pink Floyd: 

Quando este período for olhado com maior distância temporal, será mais fácil perceber o alcance do que vivemos, triar o que valeu a pena e foi um ganho, clarificar o que deixou de interessar, ao jeito das limpezas de fundo nas grandes arrumações. Claro que a ideia é sempre e só ficar com o que é bom… Soará a Mick Jagger mas esta máxima muito saudável já vai com dois mil anos. Vem de S.Paulo e continua a resistir ao teste do tempo, embora resulte sempre desafiante e exigente ‘pegar-lhe’. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


22 setembro 2020

"O dilema das redes sociais"

O título que encima este post refere-se a um documentário que passa na Netflix, e cujo trailer pode ser visto aqui. Recomendo vivamente a atenção a estas 1h34', que "explora[m] o perigoso impacto das redes sociais nas pessoas, com especialistas em tecnologia a soarem o alarme sobre as suas próprias criações."  

As redes sociais no que me diz respeito (e ainda que por motivos diferentes) afectam duas gerações: a minha e a dos meus filhos. Afectará ainda quem tem netos crianças / jovens, acima dos 11 ou 12 anos. A maneira como afecta é, no entanto, diferente, com um grau de perigosidade diferente para este último escalão etário.

Aqui há algumas semanas escrevi sobre uma rede social específica (o Instagram), manifestando o meu espanto pelo facto de haver gente que quer seguir gente. Não gente vulgar a seguir gente invulgar, mas gente vulgar a seguir o seu semelhante. A Maria que quer seguir o que o Manel faz, ou vice-versa. Gente que segue amigos, ou que segue a Cristina Ferreira ou a Dolores Aveiro. Gente que me diz claramente que é motivada pela curiosidade. 

O documentário em apreço aborda pouco esta dimensão. Aborda, sobretudo, a manipulação dos impulsos de consumo, a viciação, a exposição, o isolamento e, muito importante também, uma certa perda do sentido crítico. Embora não saiba pormenores, percebi que houve um movimento criado através destas plataformas (ou outras, sei lá eu...) que levava as pessoas a acreditar que a Terra era plana; teve, ao que parece, grande adesão. Mas quem fala na planeza da Terra fala de outros temas mais verosímeis, da área da política actual. Eestas dimensões - adição, exposição, influenciação, etc., afectam, talvez, gente mais nova.

No caso da minha geração ou da geração dos meus filhos as redes sociais têm outros impactos, nomeadamente a exposição dos filhos (ainda que seja, dizem-me, bastante segura). Nalguns casos, a impossibilidade (penso que acontece no Facebook, mas não afianço) de eliminar as fotografias que se colocam, pelo que a imagem de uma criança de cuecas na praia fica na net para sempre, mesmo que o adulto que já foi esta criança não goste da situação.

Há ainda outro problema, que me incomoda particularmente: a utilização excessiva do telemóvel, como se, à mesa da refeição, fosse algo que existe entre um cérebro e um garfo e que, por isso, tem de estar ao lado do guardanapo; e a perda de tempo (em bom rigor, ler um livro ou conversar com alguém é sempre mais útil do que saber o que a Cristina Ferreira veste ou a que restaurante foram as dezenas de pessoas que outras pessoas seguem). Ainda me questiono sobre a ideia que pensam pessoas têm de si próprias, ao acharem que a maior parte das suas vidas é motivo de curiosidade (quase) diária para quem quer que seja. 

Vejam O Dilema das Redes Sociais. Não se arrependerão.

JdB

21 setembro 2020

Textos dos dias que correm

Somos Uma Nação Que Se Regenera

Que somos nós hoje? Uma nação que tende a regenerar-se: diremos mais: que se regenera. Regenera-se, porque se repreende a si própria; porque se revolve no lodaçal onde dormia tranquila; porque se irrita da sua decadência, e já não sorri sem vergonha ao insultar de estranhos; porque principia, enfim, a reconhecer que o trabalho não desonra, e vai esquecendo as visagens senhoris de fidalga. Deixai passar essas paixões pequenas e más que combatem na arena política, deixai flutuar à luz do sol na superfície da sociedade esses corações cancerosos que aí vedes; deixai erguerem-se, tombar, despedaçarem-se essas vagas encontradas e confusas das opiniões! Tudo isto acontece quando se agita o oceano; e o mar do povo agita-se debaixo da sua superfície. O sargaço imundo, a escuma fétida e turva hão-de desparecer. Um dia o oceano popular será grandioso, puro e sereno como saiu das mãos de Deus. A tempestade é a precusora da bonança. O lago asfaltite, o Mar Morto, esse é que não tem procelas.

O nosso estrebuchar, muitas veze colérico, muitas mais mentecapto e ridículo, prova que a Europa se enganava quando cria que esta nobre terra do último ocidente era o cemitério de uma nação cadáver. Vivemos: e ainda que semelhante viver seja o delírio febril de moribundo, esta situação violenta, aos olhos dos que sabem ver, é uma crise de salvação, posto que dolorosa, e lenta. Confiemos e esperemos: o nome português não foi riscado do livro dos eternos destinos.

Alexandre Herculano, in "Duas Épocas e Dois Monumentos (Questões Públicas - 1843)"

20 setembro 2020

25º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 20,1-16a

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«O reino dos Céus pode comparar-se a um proprietário,
que saiu muito cedo a contratar trabalhadores para a sua vinha.
Ajustou com eles um denário por dia
e mandou-os para a sua vinha.
Saiu a meio da manhã,
viu outros que estavam na praça ociosos e disse-lhes:
'Ide vós também para a minha vinha
e dar-vos-ei o que for justo'.
E eles foram.
Voltou a sair, por volta do meio-dia e pelas três horas da tarde,
e fez o mesmo.
Saindo ao cair da tarde,
encontrou ainda outros que estavam parados e disse-lhes:
'Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?'
Eles responderam-lhe: 'Ninguém nos contratou'.
Ele disse-lhes: 'Ide vós também para a minha vinha'.
Ao anoitecer, o dono da vinha disse ao capataz:
«Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário,
a começar pelos últimos e a acabar nos primeiros'.
Vieram os do entardecer e receberam um denário cada um.
Quando vieram os primeiros, julgaram que iam receber mais,
mas receberam também um denário cada um.
Depois de o terem recebido,
começaram a murmurar contra o proprietário, dizendo:
'Estes últimos trabalharam só uma hora
e deste-lhes a mesma paga que a nós,
que suportámos o peso do dia e o calor'.
Mas o proprietário respondeu a um deles:
'Amigo, em nada te prejudico.
Não foi um denário que ajustaste comigo?
Leva o que é teu e segue o teu caminho.
Eu quero dar a este último tanto como a ti.
Não me será permitido fazer o que eu quero do que é meu?
Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?'
Assim, os últimos serão os primeiros
e os primeiros serão os últimos».

17 setembro 2020

Das profissões novas e antigas

Um olhar sobre parte da baixa pombalina remete o observador para uma época que as gerações vindouras conhecem apenas vagamente. Para pessoas que crescerão no tempo do consumo, da industrialização, da produção em massa ou da contrafacção como negócio em desuso, aquela toponímia irá soar estranha, como se lêssemos Eurico o Presbítero e nos confrontássemos com expressões como gardingo ou Latribe. Na verdade, chegará o dia (já chegou?) em que ninguém saberá o que é um correeiro, um fanqueiro ou um dourador. Talvez venha mesmo a desconhecer-se a expressão sapateiro, substituída que foi por um conjunto de actividades executadas por gente que, vinda de fora, se atira a uma meia sola como se atira a um duplicado de chave ou a uma pilha para comando: com um denodo imposto pelo SEF, pela necessidade de sobrevivência e pelo sotaque cantado.

A indústria, a modernidade e o preconceito social eliminaram nomes de profissões do léxico comum. Somos todos técnicos de qualquer coisa e o ikea, com os seus labirintos unidireccionais e a sua leveza actual, atirariam a palavra dourador para um dicionário antigo, porque dourar é (quase) sinónimo de comprar de novo. Já não há sapateiros na Rua dos Sapateiros, nem correeiros na rua dos Correeiros. Talvez já não haja estes misteres em quase lado nenhum de Portugal, substituídos que foram por máquinas, por importação - ou pelos Centros Comerciais, onde a estética da circulação não é compatível com uma oficina amontoada de sapatos velhos a aguardarem reparação.

Na dinâmica da vida quotidiana desapareceram profissões, apareceram profissões: já não haverá fanqueiros, mas há técnicos cardio, por exemplo. Surgiu uma nova actividade a cujos praticantes se chama cuidadores. Na origem vagamente etimológica da palavra cuidador está a expressão dama de companhia, uma ocupação que não mereceu nome de rua (menos ainda de canoa, para parafrasear David Mourão Ferreira). O cuidador é o sapateiro do ser humano: repara ou, numa visão mais preventiva, evita a deterioração. Porém, a dama de companhia (uma actividade que se conjuga no feminino, como varina ou pedicure) é uma expressão que suscita trocadilhos, como se fosse um eufemismo para favores de cariz erótico.

Nesta recém perseguição a um existência mais lenta, mais bairrista, menos poluente, mais local, o mundo pós-pandémico devia recuperar os artesãos, E, nesse alinhamento, devia recuperar a dama de companhia como pessoa que elimina a solidão, que lê para quem não sabe ou não consegue fazê-lo, que evita que as tardes encurtadas de Outono tenham a exclusividade da Júlia Pinheiro, ou que as manhãs sejam só do Goucha e da outra senhora que é dona parcial do sofá onde se senta para falar de trivialidades. Alguém (pode conjugar-se no masculino, como proxeneta ou mecânico) que partilha as notícias do mundo, as receitas da nova cozinha portuguesa ou o último grito de amor de uma jovem actriz. Uma pessoa, no fundo, que cuida da alma, do cérebro, do coração. Uma cuidadora do software que cada um de nós tem implantado no corpo.

O cuidador executa, realiza, actua. A dama de companhia está, é, vive. Enquanto se achar que o mundo vive só da acção, e não da contemplação do Outono do outro, não iremos longe como humanidade...

JdB

15 setembro 2020

Textos dos dias que correm

A Dor como Padrão para a Intensidade dos Sentidos

Normalmente, a ausência de dor é apenas a condição física necessária para que o indivíduo sinta o mundo; somente quando o corpo não está irritado, e devido à irritação voltado para dentro de si mesmo, podem os sentidos do corpo funcionar normalmente e receber o que lhes é oferecido. A ausência de dor geralmente só é «sentida» no breve intervalo entre a dor e a não-dor; mas a sensação que corresponde ao conceito de felicidade do sensualista é a libertação da dor, e não a sua ausência. A intensidade de tal sensação é indubitável; na verdade, só a sensação da própria dor pode igualá-la.

Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'

***

O Homem não Foge da Dor

Não é verdade que o homem procure o prazer e fuja da dor. São de tomar em conta os preconceitos contra os quais invisto. O prazer e a dor são consequências, fenómenos concomitantes. O que o homem quer, o que a menor partícula de um organismo vivo quer, é o aumento de poder: é em consequência do esforço em consegui-lo que o prazer e a dor se efectivam; é por causa dessa mesma vontade que a resistência a ela é procurada, o que indica a busca de alguma coisa que manifeste oposição.

A dor, sendo entrave à vontade de poder do homem, é portanto um acontecimento normal - a componente normal de qualquer fenómeno orgânico. E o homem não procura evitá-la, pois tem necessidade dela, já que qualquer vitória implica uma resistência vencida.

Tome-se como exemplo o mais simples dos casos, o da nutrição de um organismo primário; quando o protoplasma estende os pseudópodes para encontrar resistências, não é impulsionado pela fome, mas pela vontade de poder; acima de tudo, ele intenta vencer, apropriar-se do vencido, incorporá-lo a si. O que se designa por nutrição é pois um fenómeno consecutivo, uma aplicação da vontade original de devir mais forte.

Em tudo isto, a dor não só tem por consequência necessária a diminuição da sensação de poder, como até serve, na maioria dos casos, como excitante da mesma sensação de poder, sendo o obstáculo um stimulus dessa vontade de poder.

Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'

14 setembro 2020

Duas Últimas

Aparentemente estes fados não têm nada de muito assinalável, apesar da interpretação sempre fantástica de Amália. Achei graça, no entanto, a um pormenor: sendo o fado, até uma certa altura, povoada de letras dos chamados poetas populares, é curioso que a cantadeira (quem quer que seja, e que canta algo na primeira pessoa do singular) trate alguém por "você". Mais curioso ainda é perceber que, do ponto de vista do português, os versos "passei por você há pouco" estão bastante errados, o que é um pormenor curioso, já que Frederico de Brito (conhecido por "Britinho") era um excelente poeta. Talvez houvesse uma necessidade de rimas...

Já o segundo fado, igualmente bonito e bem interpretado é (quase) irrepreensível do ponto de vista do português. Achei curioso, mais uma vez, o tratamento por "você". O mistério desapareceu quando percebi que o autor da música e da letra era Lupicínio Rodrigues, um brasileiro...

JdB  

Passei por você há pouco

Ria como ri um louco

Ria sem saber de quê

Não se ria, não se gabe

Pois você ainda não sabe

Se eu gosto ou não de você

Não se ria, não se gabe

Pois você ainda não sabe

Se eu gosto ou não de você

 

Você diz que eu não o quero

Que não tenho amor sincero

Mas nunca me diz por quê

Eu não sei bem se é amor

Mas vá lá p'ra onde for

Vejo a sombra de você

Eu não sei bem se é amor

Mas vá lá p'ra onde for

Vejo a sombra de você

 

Não lhe peço que me queira

Nem que eu queime a alma inteira

Nada quero que me dê

O que eu sinto é só comigo

Mas deixá-lo, não lho digo

Nem que eu morra por você

O que eu sinto é só comigo

Mas deixá-lo, não lho digo

Nem que eu morra por você


Alfredo Marceneiro / Frederico de Brito


***



Vingança


Eu gostei tanto, tanto quando me contaram

Que a encontraram

Bebendo e chorando na mesa dum bar

E que quando os amigos do peito

Por mim perguntaram

Um soluço cortou sua voz, não a deixou falar;

Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram

Que tive mesmo que fazer esforço

Pra ninguém notar

 

O remorso talvez seja a causa

Do seu desespero

Você deve estar bem consciente

Do que praticou

Vem-me fazer passar essa vergonha

Com um companheiro

E a vergonha é a herança maior

Que meu pai me deixou

 

Mas enquanto houver força em meu peito

Eu não quero mais nada

Só vingança, vingança, vingança

Aos santos clamar

Você há-de rolar como as pedras

Que rolam na estrada

Sem ter nunca um cantinho de seu

Pra poder descansar


Lupicínio Rodrigues / Lupicínio Rodrigues

13 setembro 2020

24º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 18,21-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe:
«Se meu irmão me ofender,
quantas vezes deverei perdoar-lhe?
Até sete vezes?»
Jesus respondeu:
«Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Na verdade, o reino de Deus pode comparar-se a um rei
que quis ajustar contas com os seus servos.
Logo de começo,
apresentaram-lhe um homem que devia dez mil talentos.
Não tendo com que pagar,
o senhor mandou que fosse vendido,
com a mulher, os filhos e tudo quanto possuía,
para assim pagar a dívida.
Então o servo prostrou-se a seus pés, dizendo:
'Senhor, concede-me um prazo e tudo te pagarei'.
Cheio de compaixão, o senhor daquele servo
deu-lhe a liberdade e perdoou-lhe a dívida.
Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros
que lhe devia cem denários.
Segurando-o, começou a apertar-lhe o pescoço, dizendo:
'Paga o que me deves'.
Então o companheiro caiu a seus pés e suplicou-lhe, dizendo:
'Concede-me um prazo e pagar-te-ei'.
Ele, porém, não conseguiu e mandou-o prender,
até que pagasse tudo quanto devia.
Testemunhas desta cena,
os seus companheiros ficaram muito tristes
e foram contar ao senhor tudo o que havia sucedido.
Então, o senhor mandou-o chamar e disse:
'Servo mau, perdoei-te, porque me pediste.
Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro,
como eu tive compaixão de ti?'
E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos,
até que pagasse tudo o que lhe devia.
Assim procederá convosco meu Pai celeste,
se cada um de vós não perdoar a seu irmão
de todo o coração».

11 setembro 2020

(Ainda) do regresso a casa

 Revi um destes dias, por puro acaso, a última meia hora do filme O Império do Sol (Steven Spielberg, 1987). Cito um pouco da Wikipédia: 

O filme relata a história de um garoto inglês de onze anos de idade, que vive na cidade chinesa de Xangai com a sua família na aparente segurança do bairro diplomático. Com a invasão da China pelo Japão, em plena Segunda Guerra Mundial, no meio da confusão da multidão em fuga ele separa-se dos pais e acaba por ir parar a um campo de concentração japonês onde, para sobreviver, se vê obrigado a desenvolver uma série de artimanhas que vão das transações num improvisado mercado negro de alimentos e objectos pessoais à mediação de conflitos com os soldados japoneses. 

(...) A derrota do Japão aproxima-se, o campo é evacuado e os prisioneiros levados para Norte onde se pensa existirem alimentos. No caminho a mulher que protegeu o rapaz morre no momento em que se avista o clarão das explosões de Hiroshima e Nagasaki. No final o rapaz é encontrado pelos pais num orfanato para crianças ocidentais.


A ideia de regresso a casa fascina-me; não falo apenas do regresso dos emigrados, dos embarcados, dos que vão em serviço militar. Falo do tema que me interessa mais: o conceito de casa enquanto espaço (não forçosamente físico) de segurança, conforto e afecto. O conceito, portanto, do regresso a uma certa segurança. 

Já aqui falei sobre este tema: Ernest Henry Shackleton liderou três expedições britânicas à Antárctida no início do séc. XX. Numa delas, o Endurance ficou preso no gelo e a tripulação teve de procurar a salvação por terra. Numa dada altura, já no Polo Sul, é-lhes dito que têm de livrar-se de tudo o que é supérfluo, e só podem levar consigo o essencial para que a sobrevivência seja possível. Há quem leve receitas de compota de laranja, há quem leve retratos de família, há quem arranque uma página específica da Bíblia. É isto que para eles (também) é essencial - e todos se salvaram, talvez porque também tenham transportado comida, picaretas, agasalhos. Levaram o que era importante para o regresso a casa.

Jim, o rapaz de O Império do Sol, chora porque já não se lembra dos pais, que não vê há 3 anos. No orfanato, já no fim do filme, a mãe encontra-o e chama-o pelo nome. Jim passa-lhe uma mão silenciosa pelos cabelos, que desprende, e corre-lhe um dedo lento pelos lábios. Abraça-a e fecha os olhos, húmidos. O batom, ou o cheiro dos cabelos, é a receita de compota de laranja, é aquela folha da Bíblia. Jim regressou a casa, mesmo antes de ter entrado em casa.

JdB   

10 setembro 2020

Poemas dos dias que correm

Elegia dos Amantes Lúcidos

Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular.

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há-de
Negar à minha sede desértica e futura.

Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio.

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
A fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
É toda a melodia que traz na unha a vida.

O navio tem dois extremos ermos:
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras
E ficasse para sempre a aquecer-me
Ao sol que cega efémeras criaturas!

Se soltasses as aves da rotina
E de um jorro de deuses abrisses a comporta
E reclinada em tua espádua genuína
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!

Se tu viesses cavaleiro branco
Orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
No porvir do nosso último recinto!

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
Nas praias donde Maio se retira,
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

Ah, as sementes que te exigem em declive
Entre abismos onde nunca te despenhas
E esfumados voos em que te embebes e revives
O que de ti já pousou no cume das montanhas!

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
Na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.

Natália Correia, in "Passaporte"

09 setembro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

O MELHOR DE FRANCIS BACON NA TELA DA DESPEDIDA   

O anglo-irlandês, atormentado por traumas de infância dignos dos romances de Dickens – uma mãe estranhamente distante a deixar o filho à mercê de um pai violento, que lhe batia com o cinto para «fazer dele um homem» – pintou inúmeras versões da baixeza humana, explorou incansavelmente a dimensão primitiva da humanidade, até se especializar num retratismo de pendor psicológico apostado em dissecar a faceta mais camuflada e mesmo animal do ser humano. Na revisitação de obras clássicas, o seu pincel demolidor desconstruiu com sarcasmo retratos solenes assinados por Velasquez e outros. Ao invés, quando queria conferir grandeza às pessoas, inculcava-lhes os contornos dos animais preferidos. O toiro era um deles, pelo que se tornou recorrente em telas onde o traço foi  benigno.


Em «Study for Head of Isabel Rawsthorne» (1967) aplicou ao rosto de uma das suas musas o perfil híbrido de leão /toiro,
para realçar – explicou Bacon – a nobreza de carácter e a bravura de Isabel.
  Permanece enigmática a pincelada branca a meio do rosto,
frequentemente interpretada como remoque agressivo, talvez por a retratada lhe ser esquiva. 

Tela que serviu de poster oficial da grande exposição no Grand Palais de Paris, em 1972,
lembrando a paixão tauromáquica de um dos seus pintores dilectos – Picasso.

Francis Bacon era aparentado com o seu homónimo de 1561-1626 celebrizado por ter sido o pai do método experimental, relevante para a ciência moderna. Mas por junto, pouco tinha a ver com essoutro cidadão antigo, que fora Tesoureiro Real, Chanceler do Reino, político e filósofo da aristocracia inglesa, embora de final atribulado depois de ser acusado de suborno e corrupção. Já o pintor do século XX movia-se em meios alternativos, relacionando-se com gente pouco convencional, como o seu grande amigo pintor Lucien Freud, também ele familiar (neto) do fundador da psicologia moderna – Sigmund Freud, também ele explorador dos refolhos obscuros da mente humana, igualmente empenhado na denúncia de tudo o que vislumbrava como possíveis «esqueletos no armário» de cada um. Lucien e Francis moveram-se nos círculos boémios de Paris, onde pontificavam Sartre e Simone de Beauvoir, bem como no bas-fond londrino, onde fizeram amizade com marginais e cadastrados do pequeno crime. 



Bacon costumava rebater as acusações de materialidade excessiva e indigesta nos seus quadros, explicando que cabia à arte deixar um tipo de rasto corpóreo equiparável ao dos caracóis. 

Todavia, para a Partida derradeira, Bacon quis retratar-se na difícil linha de fronteira entre a vida e a morte, na passagem da escuridão para um limiar de luz invulgar segundo os cânones deste pintor pessimista (embora haja críticos que interpretam no sentido inverso, menos óbvio, lendo a figura em marcha à ré, a recuar para as trevas), como na travessia de um espelho à maneira de Alice no País das Maravilhas. Adivinha-se uma transfiguração. Francis estava bem ciente de que a sua hora não tardava, pois avisou os mais próximos, que não o levaram a sério, por o seu estilo enérgico e assertivo nunca ter dado sinais de abrandamento. 

Nessa última tela, dias antes de morrer, emerge num toiro cheio de nervo e galhardia, situado numa extremidade do quadro, onde a participação humana se concentra. Ali ensaia um movimento misterioso e sugestivamente de transmutação, com parte do vigoroso dorso a sumir-se em contornos mais esbatidos no lado às escuras. Aquele episódio intenso, mas de curta dimensão, sobressai numa imensidão monocromática de tons terra, característicos da fase terminal do seu cromatismo. Aplicando-se o lay-out das monografias medievais, o pequeno quadrado figurativo, situado no canto superior esquerdo onde se inicia a leitura, equivale à letra inaugural dos textos que os copistas medievos enriqueciam na cor e na forma para abrilhantar o início da página. Bacon deixar o corpo do texto por preencher, ou indecifrável aos nossos sentidos, prefigura a presença desconhecida da morte, inacessível ao olhar terreno. O silêncio que irrompe nesse espaço maior da tela tem pleno sentido. 

Por seu turno, o toiro será a melhor metáfora de quem parte já sem medo, ciente de que mergulhará num mistério sem retorno, à maneira de Freddie Mercury, cujo último álbum (lançado postumamente) se chamou «Made in Heaven» na esteira da mensagem dominante das últimas composições, em aproximação serena à morte. Misteriosa confiança a do genial vocalista dos Queen, que explodia de gosto de viver. 


  «Study of a Bull», 1991, oil, aerosol paint and dust on canvas, 78 x 58 in. (198 x 147.5 cm)
Até nos materiais, Bacon mostrou-se inventivo e inconformado.
Na opinião do biógrafo e amigo de Bacon, Michael Peppiatt, a figura é interpretada como estando entalada,
embora lhe reconheça um inexplicável dinamismo:
«The bull is poised between the lure of life and the inevitability of death. It is incredibly moving».

Outra invulgaridade em Bacon (diria) é a beleza da tela. Só por si, constitui a melhor homenagem à chegada de um dos (se não o) momentos vitais da sua existência, autoretratando-se num exemplar especialmente brioso no mundo dos vivos.  

O enorme significado desta obra, que fecha com chave d’ouro a sua carreira artística, advém também da privacidade a que ficou votada. A ponto de ser uma descoberta recente no seu portfolio, com estreia ao público britânico marcada para a próxima exposição da Royal Academy of Arts de Londres: de 30 de Janeiro a 18 de Abril de 2021. Um bom motivo para atravessar o Canal da Mancha, se a pandemia não atrapalhar… É, obviamente, anunciada como a peça estrela daquela mostra. Intitulada «Francis Bacon: Man and Beast», propõe-se calcorrear os estudos exaustivos do artista às feras da selva e dos zoos para, a partir delas, descobrir a amplitude da instintividade humana, a origem dos medos, da ira e da incrível solidão a que achava condenada a humanidade. 

Como medir o salto aparentemente gigante desde o longo período afincado nos retratos esfumados e sulcados de contorcionismos deformados, até ao toiro solitário que se reparte com garbo entre dois universos (não detectando como tónica principal a hesitação titubeante que o tal biógrafo Peppiatt interpreta naquele toiro, ficando a leitura aberta a cada um)? Decorrerá de um percurso existencial único, até desembocar na acrobacia arrojada da última hora em que, inesperadamente, se apresenta pronto, ainda que tenso e a ganhar balanço. 

Terá Bacon confiado nalguma nesga de eternidade? Terá intuído mais vida para além desta? Ter tomado para si o primeiro e único signo de leitura de uma imensa tela silenciosa, é revelador. Se de loucos e visionários todos teremos um pouco, maior será o quinhão nos grandes artistas, quase sempre grandes sofredores! Obrigada, Francis.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

08 setembro 2020

Da cidadania

 

Paredão do Estoril, um destes dias de manhã cedo

Tenho acompanhado com atenção a saga da disciplina Cidadania e Desenvolvimento. Segui a posição dos pais, acompanhei as notícias relativas à petição contra a obrigatoriedade, vou lendo o que se diz contra essa mesma petição (na maior parte dos casos alarvidades que eliminariam qualquer conversa minimamente civilizada).

Confesso que não assinei (ainda) a petição contra a obrigatoriedade da disciplina; nunca assinaria, contudo, a petição a favor da obrigatoriedade da disciplina (ou contra a possibilidade da objecção de consciência, não sei). A minha posição é clara: não sou (por princípio) contra uma disciplina semelhante; o que sou, de forma clara, é contra parte do conteúdo programático desta disciplina. Educação sexual ou ideologia de género não são, parece-me, questões de cidadania, mas áreas educativas que competem exclusivamente aos Pais.

Concordo que haverá um défice grande de cidadania no País; constato que há um grande défice de civismo (nas suas mais variadas formas) no País; tenho dúvidas se muitos Pais - com vidas difíceis ou com prioridades educativas diferentes - abraçam essa responsabilidade. Se assim for, como se educam as crianças naquilo que podem ser regras básicas de participação na vida civil, no respeito pelo próximo, ou no conhecimento da Constituição? Deve competir isso ao Estado? Não sei, porque não sei se o Estado (o que quer que isso seja, neste caso) tem competência suficiente para ensinar. O Estado a ensinar ética?

Como se ensinam a História de Portugal às crianças? Fomos um país de gente intrépida ou um país de esclavagistas? Vasco da Gama foi um herói ou um impiedoso perverso? Que mensagem passam os professores às crianças? (e lembro-me que um professor universitário quis encontrar uma dimensão homossexual nos Lusíadas...) E, se acharmos que a mensagem vai contra aquilo em que acreditamos, devemos exercer a nossa objecção de consciência? E onde paramos?

Não tenho certezas, mas também não me apetece entrar na conversa de que a disciplina de Religião e Moral era ou não voluntária no Estado Novo, que a educação sexual no antigo regime blábláblá. Já não dou para o peditório da comparação entre esta senhora e a outra senhora. Tendo a convicção firme de que alguma matéria deveria ser retirada da Cidadania para o Desenvolvimento (ou pelo menos apresentada de forma substancialmente diferente), não tenho ainda certezas quanto ao resto.

JdB

06 setembro 2020

23º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 18,15-20

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Se o teu irmão te ofender,
vai ter com ele e repreende-o a sós.
Se te escutar, terás ganho o teu irmão.
Se não te escutar, toma contigo mais uma ou duas pessoas,
para que toda a questão fique resolvida
pela palavra de duas ou três testemunhas.
Mas se ele não lhes der ouvidos, comunica o caso à Igreja;
e se também não der ouvidos à Igreja,
considera-o como um pagão ou um publicano.
Em verdade vos digo:
Tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu;
e tudo o que desligardes na terra será desligado no Céu.
Digo-vos ainda:
Se dois de vós se unirem na terra para pedirem qualquer coisa,
ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos Céus.
Na verdade, onde estão dois ou três reunidos em meu nome,
Eu estou no meio deles».

04 setembro 2020

Poemas dos dias que correm

Canção de Amor da Jovem Louca

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente.)

Sylvia Plath, trad. Maria Luí­za Nogueira

03 setembro 2020

Das emoções

 

Lamentação sobre o Cristo Morto (Andrea Mantegna, 1431 - 1506)

A Descida da Cruz (Rogier van der Weyden, 1400 - 1464)

Entre o quadro de cima e o quadro de baixo há, talvez, 40 anos de diferença: 1475 e 1435. Entre as cenas haverá poucas horas: Cristo que jaz numa pedra ou Cristo que é descido da Cruz. Há, por fim, três personagens em comum: o próprio Cristo, Sua Mãe e S. João. E no entanto, entre a Nossa Senhora de um quadro e a do outro quadro poderia haver 40 anos de diferença: Mantegna pinta-a como uma velha; van der Weyden como uma jovem. Acredito que, muito provavelmente, a representação da mater dolorosa obedece a um figurino generalizado: a Virgem Maria tem sempre feições de jovem, como se fosse Filha, e não Mãe, do seu próprio Filho. Ou como se nunca envelhecesse, nunca sofresse aos nossos olhos humanos a erosão do tempo e da perda.

O mundo cristão e devoto apela a Nossa Senhora como fonte de consolo ou intercessão. Ora, a recorrência a Maria deriva, não da sua condição de Mãe de Jesus, mas da condição de protagonista de uma tristeza imensa; recorremos a Maria, não porque ela é detentora de poder, mas porque ela viveu o desgosto. Se ela não chorasse no quadro de Mantegna, ou não fraquejasse no quadro de van der Weyden, a nossa relação com ela seria diferente, porque Maria não perceberia as nossas lágrimas que correm ou as nossas pernas que cedem. 

Viver uma emoção é perceber essa emoção nos outros. Por isso, entre fugir da nossa própria tristeza e não compreender a tristeza do próximo há um nexo causal evidente. Não percebemos no outro o que não sentimos em nós, ainda que sejam diferentes as razões que provocam emoções iguais. Nesse sentido, o horror à tristeza e à melancolia, apanágio tão forte dos dias de hoje que se querem sempre alegres e ocupados, provoca uma deficiência de entendimento do próximo cuja nocividade é óbvia. A compaixão é uma realidade física entre duas pessoas que viveram uma experiência semelhante, não é o cálculo teórico de uma derivada dupla. A falha desta compaixão amputa-nos como ser humanos, pelo que a experiência de todas as emoções é uma vantagem humana e pedagógica. 

Com feições de nova ou de velha, Maria vive sempre aquela tristeza, depois da alegria de ser a Escolhida. E é por isso - quase diria por isso - que percebe todas as nossa fragilidades. Afinal, também chorou e também teve de ser amparada na sua fragilidade. E que mais precisamos nós para que nos percebam?

JdB

01 setembro 2020

Das redes sociais

 Nunca quis ter Facebook. Não foi uma embirração; talvez tenha sido o temor da distração, pois trabalhava em casa e vivia sozinho, um conjunto que podia ser propício a uma certa improdutividade. Falaram-me nos encantos da rede social, nomeadamente a possibilidade de encontrarmos gente que não víamos há muitos anos. Nem isso me entusiasmou, pelo receio de pouco ter a dizer ou a ouvir dessas pessoas após décadas de ausência de convívio. Hoje, passados tantos anos do advento do Facebook, não estou arrependido, muito pelo contrário. Quando chegou à altura, também não aderia ao Instagram nem ao Twitter. Nada me motiva a isso, para além de não querer distracções. As vária actividades da minha vida parecem-me (e reforço o "parecem-me") incompatíveis com uma frequência assídua das redes sociais.

Não fui investigar, mas sei que a Dolores Aveiro tem milhares e milhares de seguidores no Instagram; penso que acontece o mesmo com a Cristina Ferreira e com outras pessoas do jet set, talvez actores e actrizes das telenovelas e fotógrafos, modelos, artistas diversos. Um dia destes dei por mim a pensar por que motivo se quererá seguir a Dolores Aveiro e a Cristina Ferreira no Instagram. São pessoas por quem tenho respeito, seja pelas qualidades humanas que revelam, ou apenas porque sim. Mas a pergunta persiste: por que motivo quereria eu saber o que fazem ambas as senhoras na vida do seu dia a dia?

O conceito de seguir alguém no Instagram é-me bizarro. Fiz a pergunta: da primeira vez responderam-me que tanto a Dolores Aveiro como a Cristina Ferreira podem ser detentoras de características (elevada auto-estima, sucesso profissional) que as pessoas gostariam de ter também. Quando alguém me contou que segue uma familiar afastada e que essa pessoa partilha patetices, perguntei de novo. Responderam-me que todos gostamos de saber da vida dos outros. Duas respostas diferentes, de duas pessoas diferentes.

Sou do tempo da Hola!; conheci e conheço pessoas que eram / são compradoras. A Hola! é o Instagram dos tempos modernos? Não sei. Seguir a Isabel Pantoja ou a Isabel Preysler ou os toureiros que nos recebiam nas suas quintas era ver uma certa elegância, um certo estilo de vida que podia provocar alguma inveja, para além de ideias de decoração de interiores. Seguir uma prima que diz inutilidades significa o quê? Seguir a Dolores Aveiro ou a Cristina Ferreira ou um actor de telenovela suscita o quê? O que aprendemos? É apenas voyeurismo?

Nada me move contra nenhum nome que aqui citei. A minha pergunta é "sociológica": quando seguimos alguém de que estamos à espera? Queremos aprender alguma coisa ou, como me disseram ontem, "toda a gente gosta de saber como vivem os outros..."? 

JdB

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