Há quem deteste gordos; há quem deteste judeus, ou fascistas ou gente que gosta de corridas de touros ou de carne. Há quem deteste estrangeiros, homossexuais, vegetarianos; há quem deteste gente que conta anedotas ou gente que maça. Há, por último, mas não menos importante, quem deteste gente contentinha. É o meu caso, confesso, embora da minha lista de "gente que detesto" também haja outros grupos.
Que não haja dúvidas: cresci com gente com graça, divertida, que ria e fazia rir sentado a uma mesa ou num sofá. O humor que se praticava não requeria mãos, saltos, cambalhotas, palavrões ou batatas atiradas pelo ar. Era um humor que se praticava com a palavra apenas, o que não significa que fosse sempre inócuo. Grande parte do humor é à custa de alguém, de um desgraçado ou, se tudo correr bem, de alguém que se ri também de si próprio.
O contentinho é aquele que salta, que vibra com a primavera, com os passarinhos, com os dias compridos e com os sinais exteriores de divertimento. São pessoas que sopram cornetas, que batem com uma martelo na cabeça do transeunte, que pregam partidas, que gritam muito e que querem saltar de um sofá e fazem contagem regressivas quando se aproxima a meia-noite de 31 de Dezembro. São pessoas que se mascaram no Carnaval, que acham que a idade é um estado de espírito e que, de algália, muletas, e falhas de memória, ainda se disfarçam de urso, de tirolesa ou de Mefistófeles, para sermos queirosianos.
Na passagem de ano os contentinhos sentem-se em casa: dão abraços, contam e deglutem passas, saltam de um sofá e formulam votos secretos: que haja amor, que acabem as guerras e a fome, que o iva baixe ou que o Costa vá à vidinha dele. E já agora, que sejam melhores pessoas ou que facturem mais. Depois atiram-se a uma champanhota e riem muito, felizes, dando palmadas nos compinchas e perguntando-lhes, face a um silêncio humanamente aceitável, se estão mal dispostos.
Apesar de tudo, um Bom Ano para todos os que me lêem com gosto, com raiva e desdém, ou com total indiferença. Que tudo vos corra bem, mesmo que sejam gente contentinha. E já agora, que o Costa vá à vidinha dele.
Ela há-de vir como um punhal silente Cravar-se para sempre no meu peito. Podem os deuses rir na hora presente Que ela há-de vir como um punhal direito. Cubram-me lutos, sordidez e chagas! Também rubis das minhas mãos morenas! Rasguem-se os véus do leito em que me afagas! — A coroa de ferro é cinza apenas... E ela há-de vir a lepra que receio E cuja sombra, aos poucos me consome. Ela há-de vir, maior que a sede e a fome, Ela há-de vir, a dor que ainda não veio.
Leio no Observador, de onde tiro a imagem acima, que esta fotografia de Georgina, Cristiano Ronaldo e os futuros gémeos, está no top 10 de fotos mais “gostadas” do Instagram. Em bom rigor está em primeiro lugar, com mais de 32 milhões de gostos. As restantes 9 que compõem o top 10 são de artistas, futebolistas, outros que não conheço. Uma delas é a de um teste de gravidez de uma socialite americana, que recolheu 26 milhões de gostos.
Tudo isto me surpreende, eu que sou uma alma antiga, antiquada, imobilizada num certo tempo, que gostaria de ver fotografias de actos heróicos, de abnegação, de serviço aos outros, de bondade, de conquista ou de superação. Porém, os gostos vão para pessoas que vão ter filhos ou que pintaram o cabelo de loiro.
A ideia de seguir outras pessoas nas redes sociais surpreende-me, já aqui o disse. Não percebo que se queira seguir a D. Dolores Aveiro, a Cristina Ferreira ou a gravidez de Georgina (e presumo que do Ronaldo também, embora não tenha certezas). Não são artistas, investigadores, cientistas, beneméritos, missionários. São gente que se revela a jogar futebol, a ser mãe de quem joga futebol ou mãe dos putativos filhos de quem joga futebol. Ou é gente que canta e pinta o cabelo de loiro (ou será amarelo?).
Nada me move contra esta gente, que faz o que quer, o que gosta e que é bom - ou mesmo muito bom - naquilo que faz. Mas haver mais de 32 milhões de pessoas que se comprazem com uma fotografia de um casal que vai ter filhos e que se auto-fotografa na cama, ostentando imagens de ecografias, não deixa de me surpreender. Sou eu que estou desfasado da realidade: em bom rigor, já nada devia surpreender-me.
Li no nosso Hecatão que pôr termo aos desejos é proveitoso como remédio aos nossos temores. Diz ele: «deixarás de ter medo quando deixares de ter esperança». Perguntarás tu como é possível conciliar duas coisas tão diversas. Mas é assim mesmo, amigo Lucílio: embora pareçam dissociadas, elas estão interligadas. Assim como uma mesma cadeia acorrenta o guarda e o prisioneiro, assim aquelas, embora parecendo dissemelhantes, caminham lado a lado: à esperança segue-se sempre o medo. Nem é de admirar que assim seja: ambos caracterizam um espírito hesitante, preocupado na expectativa do futuro. A causa principal de ambos é que não nos ligamos ao momento presente antes dirigimos o nosso pensamento para um momento distante e assim é que a capacidade de prever, o melhor bem da condição humana, se vem a transformar num mal. As feras fogem aos perigos que vêem mas assim que fugiram recobram a segurança. Nós tanto nos torturamos com o futuro como com o passado. Muitos dos nossos bens acabam por ser nocivos: a memória reactualiza a tortura do medo, a previsão antecipa-a; apenas com o presente ninguém pode ser infeliz!
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. Quando Ele fez doze anos, subiram até lá, como era costume nessa festa. Quando eles regressavam, passados os dias festivos, o Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. Julgando que Ele vinha na caravana, fizeram um dia de viagem e começaram a procurá-l’O entre os parentes e conhecidos. Não O encontrando, voltaram a Jerusalém, à sua procura. Passados três dias, encontraram-n’O no templo, sentado no meio dos doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas. Todos aqueles que O ouviam estavam surpreendidos com a sua inteligência e as suas respostas. Quando viram Jesus, seus pais ficaram admirados; e sua Mãe disse-Lhe: «Filho, porque procedeste assim connosco? Teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura». Jesus respondeu-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?» Mas eles não entenderam as palavras que Jesus lhes disse. Jesus desceu então com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua Mãe guardava todos estes acontecimentos em seu coração. E Jesus ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, Ele estava com Deus. Tudo se fez por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito. N’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas e as trevas não a receberam. Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João. Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem. Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam. Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade. João dá testemunho d’Ele, exclamando: «É deste que eu dizia: ‘O que vem depois de mim passou à minha frente, porque existia antes de mim’». Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos graça sobre graça. Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer.
O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os seus fiéis leitores, em particular aos que contribuem para a continuação deste espaço através da colaboração, visitas e comentários, um Santo Natal.
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal'
***
Último Natal
Menino Jesus, que nasces Quando eu morro, E trazes a paz Que não levo, O poema que te devo Desde que te aninhei No entendimento, E nunca te paguei A contento Da devoção, Mal entoado, Aqui te fica mais uma vez Aos pés, Como um tição Apagado, Sem calor que os aqueça. Como ele me desobrigo e desengano: És divino, e eu sou humano, Não há poesia em mim que te mereça.
Curiosamente, a ideia do pastor de menos recursos, que chega ao presépio sem presentes, é recorrente no imaginário popular de países distantes, onde a mensagem de pobreza associada ao nascimento de Jesus, se entrelaça com um outro sentido de riqueza: o de quem oferece a vida.
Em Portugal, como em Espanha, artesãos e escultores criaram a figura do pastor mais desfalcado do grupo de párias, que passava a noite ao relento com os rebanhos, quando todos foram surpreendidos por coros de anjos, que os guiaram até uma gruta misteriosa. Chegado à gruta, esse pastor sem presentes lembrou-se de oferecer ao Bebé uma vénia convicta, acentuada pelo retirar do seu chapéu de abas largas. A força simbólica do gesto tornara-o num presente interpelativo, sendo comum aparecer em primeiro plano nas maquinetas de presépios antigos do Sul da Europa.
Em plena Segunda Guerra Mundial, corria o ano de 1941, uma compositora norte-americana também se focou na ideia do pastor indigente, sem nada para dar ao Bebé anunciado pelos anjos. Katherine Kennicott Davis inspirou-se no refrão de uma canção francesa «patapan», para compor uma ária natalícia ao jeito do American way of life, em que as soluções criativas costumam envolver contributos pessoais activos. Assim surge a figura do pastor mais novo, que, no último minuto, descobre entre os seus modestos talentos uma dádiva única: dedicar ao Menino uma exibição ao som do tambor, que montara a partir dos materiais que a natureza lhe proporcionara. Se servia para se distrair nos dias longos a guardar o rebanho, o mesmo ‘pa-rum-pum-pum’ poderia animar um recém-nascido. Tudo sumamente elementar e, talvez por isso, com um encanto natalício. Assim surge a canção «Carol of the Drum», mais tarde cunhada de «The little drummer boy».
Das muitas interpretações, a actuação ternurenta do pequeno cantor sul-coreano, a actuar como solista do coro mais premiado do seu país ‘Gracias Choir’(1), transporta-nos para a cena deliciosa, que seria o pastor de menos recursos acabar por oferecer o presente mais valioso, feito de si próprio:
A ária concebida para a interpretação coral, também integrou o repertório da família von Trapp (aquela que foi protagonista no musical de Hollywood “Música no Coração”), que assim a ajudou a espalhar. Mas o grande salto deu-se no final dos anos 50, com os arranjos instrumentais de Halloran (1957) e depois o címbalo de dedos introduzido por Simeone, que o gravou em single (1958). O êxito foi imediato, sobrevivendo 4 anos no top das músicas mais ouvidas nos EUA. O resto da história é conhecido, convertendo-se logo num clássico de Natal, até pela mensagem certeira a valorizar como riqueza suprema o próprio ser humano.
A interpretação vibrante do coro sul-coreano é marca d’água das suas actuações, comemorativas da vida e de cada momento. Como a vénia do homem do chapéu. Fundado em 2000, com raiz cristã, tem a intenção expressa de espalhar ânimo através do calor da linguagem mais universal que a humanidade conhece. Isso explicará a sintonia que costuma criar com o público, nas quatro partidas do mundo. O virtuosismo musical do maestro de ascendência russa Boris Abalyan, no grupo desde 2008, reforçou a qualidade daquela formação polifónica, galardoada com a melhor distinção coral do mundo, ganha no Festival Internacional de Marktoberdorf, na Alemanha, em 2015. Tentando explicar o que os move e os distinguirá: «The believe that music changes people’s hearts is what defines Gracias Choir Gracias Choir is officially the best choral music group in the world. (Its) music is inspired by the love and thankfulness toward God that each member embraces… One bold musical color created through self-sacrifice; harmonious sounds birthed from the essence of the soul and forged into transformative music (…) has the unique ability to touch the hearts of its audiences, turning sadness into joy and change lives in the process. The Gracias Choir has spread comfort and hope into people’s hearts through vivid sounds and soul-echoing harmonies.» E se a Terra está sedenta de calor humano e de alegria autêntica. Isto sem complexos para o nosso tempo, pois este lusco-fusco também foi evidente na altura do presépio original, que conheceu consolações mas também desgostos indizíveis, como a onda infanticida de Herodes, que obrigou os pais de Jesus a emigrar para salvar o filho.
Nas boas interpretações ‘a capella’, os Pentatonix têm uma gravação, que respira igualmente a alegria profunda e simples da Gruta de Belém:
Quem melhor do que o rapazinho, cujo amor a Jesus lhe inspirou o melhor dos presentes, para nos ajudar a aproximarmo-nos do Menino, na Noite Santa que se aproxima. Com pleno sentido, ressoa na música e no acontecimento de há dois mil anos a grande máxima: se não vos tornardes como crianças…
Festas Santas e Felizes a todos,
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Descalço venho dos confins da infância Que a minha infância ainda não morreu. Atrás de mim em face ainda há distância Menino Deus, Jesus da minha infância, Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu
(...)
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No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
(...)
Pedro Homem de Mello, autor do primeiro poema (Entrega) nasceu em 1904 e morreu em 1984. Fernando Pessoa, que pela pena de Álvaro de Campos escreveu Aniversário, nasceu em 1888 e morreu em 1935. Não sei se alguma vez se cruzaram - presumo que seja improvável - mas as datas não o tornam impossível. Vejo-os sentados em Afife ou em Lisboa, tão diferentes um do outro, a perorarem sobre coisas diversas. Gostava de imaginar que falaram sobre infância, um tempo que terá sido diametralmente oposto para ambos os poetas.
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O Natal, momento intenso que se avizinha, é um tempo feliz para as crianças; grande parte da alegria dos adultos deriva do facto de ser um tempo feliz para as suas crianças. Não nos comprazemos, em Lisboa, com a alegria das crianças em Copenhaga ou no Illinois; comprazemo-nos com a alegria das nossas crianças que estão ao nosso lado, cuja alegria nos contagia porque contribuímos para ela.
Se uma criança pudesse responder de forma inteligente a uma pergunta disparatada, diria: o que é a minha infância? O tempo em que eu sou feliz e ninguém está morto. Os adultos sorriem felizes para a resposta, porque se há coisa que não queremos para quem é o melhor do mundo é que falem de mortos. Mas esses mesmos adultos olham para dentro de si e entregam ao Menino Jesus da sua infância tudo o que têm, que é o lastro que a vida nos dá, e que não afecta as crianças: memórias, desalentos, perdas, conquistas, ilusões, esperanças. Na véspera e dia de Natal, momento de todas as mudanças, sentem a alegria que lhes chega por interpostas pessoas.
Um dia destes escreveu-me do Brasil uma mãe que não conheço pessoalmente, que perdeu um filho pequeno para o cancro. Perguntou-me: de um bereaved parent a outro, como fica o Natal após tantos anos de perda?Vou pensar na resposta, neste embarras du choix que é querer transmitir esperança em dias bons e querer ser transparente, mostrar uma realidade que é volátil. No meu caso já lá vão 20 anos, e sabe Deus quão diferentes foram todos esses Natais. Para muitos de nós, Pais que passaram por esta perda brutal, esta quadra é uma lente que amplifica tudo: a exaltação das memórias que se sossegaram ou o vazio dos lugares à mesa. Como fica o Natal após tantos anos de perda? Fica diferente - para nós, pais em luto, e para todos aqueles para quem as perdas (quaisquer que sejam) são mochila de que não se livram, por desejo ou incapacidade.
Há duas décadas, quando percebi que o essencial era invisível aos olhos, que vejo o Natal como um tempo difícil para quase todos os adultos. É a voragem e a agitação da época que cansam e desfocam do essencial. Mas é, também, um olhar retrospectivo sobre a vida, sobre o excesso de luz dolorosa numa parte sombria das nossas existências. Por vezes o que custa sarar não são as mortes físicas e irremediáveis que têm nomes e rostos, mas o intangível que se perdeu e que só se descreve, não se nomeia.
Há perdas que são como os filhos que desaparecem, para as quais há sempre uma esperança: um telefone que partilha uma informação, uma campainha de porta que se abre para o milagre; porém, a redenção dessas perdas é também um sorriso, uma mão estendida, um beijo, pequenos sinais de que voltámos ao Jesus da nossa infância, ao tempo em que éramos felizes e ninguém estava morto. Mas o Natal pode ser um excesso de luz, nem sempre a que queremos ou de que precisamos e, nesse sentido, a nitidez do olhar de um adulto é a seta com que fere o próprio coração.
Olhar em volta por esta altura é perceber uma diversidade que pode ser um bom estudo sociológico, um pensamento demasiadamente crítico ou uma tolerância que ensina: o Natal é tudo e o seu contrário. É momento de alegria pontual, quando parece que somos o melhor de nós em dois dias; é um momento genuíno de partilha e de convívio. Mas é, também, um momento de fragilidade e nostalgia pela memória dos desaparecimentos, das ilusões perdidas, das ausências que se nomeiam ou não.
Resta-nos a certeza de que o Natal é o Menino Jesus que nos devolve o olhar de ternura com que O vemos nas palhas. É Ele que sairá do Presépio para nos dar a Sua mão e nos guiar na luz e sombra que existe em todas as nossas vidas. Quando não houver mais ninguém, é Ele que rirá connosco e que chorará connosco. E é Ele q nos levará para o Céu, quando chegar o momento. O Natal é humano, fragilmente humano.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naqueles dias, Maria pôs-se a caminho e dirigiu-se apressadamente para a montanha, em direcção a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino exultou-lhe no seio. Isabel ficou cheia do Espírito Santo e exclamou em alta voz: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor? Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos a voz da tua saudação, o menino exultou de alegria no meu seio. Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor».
A ira nunca é súbita. Nasce de um longo roer precedente, que ulcerou o espírito e nele acumulou a força reactiva necessária para a explosão. Daqui resulta que um belo acesso de cólera não é, de forma alguma, sinal de uma índole franca e directa. É, pelo contrário, revelação involuntária de uma tendência para nutrir dentro de si o rancor - isto é, de um temperamento fechado, invejoso, e de um complexo de inferioridade. O conselho de «estar em guarda contra quem nunca se irrita», significa, portanto, que - todos os homens, acumulando inevitavelmente ódio - convém ter especial cuidado com os que nunca se traem por acessos de ira. Quanto a ti, não fazes mal em ser insicero no teu remoer interior, mas em te traíres na explosão.
Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'
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Expectativa Frustrada
Quão melhor é apercebermo-nos de que as origens da ira são insignificantes e inofensivas! O que tu vês acontecer junto dos animais, também encontrarás nos homens: vivemos perturbados por coisas frívolas e vãs. O vermelho excita o touro, a áspide ergue-se perante uma sombra, um pano atiça um urso ou um leão: todos os seres da natureza ferozes e selvagens se assustam com coisas vãs. O mesmo acontece com os espíritos inquietos e insensatos: são vencidos pelas aparências; é por isso que consideram ofensiva uma gratificação modesta, a causa mais frequente da ira ou, pelo menos, a mais amarga de todas. De facto, iramo-nos com aqueles que nos são mais queridos porque nos deram menos do que esperávamos ou menos do que os outros obtiveram; para qualquer um dos casos, há um remédio. Ele deu mais a outro homem: contentemo-nos com a nossa parte, sem fazermos comparações: nunca será feliz aquele que atormenta quem é mais feliz que ele. Recebi menos do que esperava: talvez esperasse mais do que me era devido. Este capricho é um dos mais temíveis, pois dele nascem as iras mais perniciosas e mais capazes de atentar contra as coisas mais sagradas.
Éramos quatro sentados à mesa - onde não se envelhece, dizem os alentejanos - de onde nos levantámos já passava da uma da manhã. Une-nos uma amizade tardia, nascida essencialmente, mas não exclusivamente, de uma vida profissional mais ou menos próxima. Falámos de tudo: das anedotas, da política, dos livros, das comidas e dos carros; mas também falámos das desarmonias interiores de cada um de nós, da forma como as combatemos, dos triggers aos quais é fundamental estarmos atentos porque são episódios que desencadeiam o que temos de mais complicado. Falámos de terapias, das experiências de um ou de outro. Quatro homens feitos e direitos que vão desnudando a alma sem que isso constitua humilhação ou voyeurismo social.
Tenho um interesse muito grande por terapias. Nas vésperas falava com um amigo cuja namorada faz hipnoterapia para curar algumas fobias. Tive vontade de experimentar, embora não tenha fobias dignas de registo. Mas este tratamento à base de hipnose, assim como o de dois comensais, interessa-me, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista do efeito no auto-conhecimento da pessoa que passa por isso. Interessa-me o que aprendemos de nós, não só as misérias humanas que nos habitam, mas a forma de as controlar, de as dominar ou de as contornar. Interessa-me perceber o que em cada um de nós desencadeia um ataque de raiva incontida ou uma vontade súbita de ceder a uma adição. Interessa-me o impacto secundário da terapia na pessoa, sendo que o directo é o conseguir não beber ou o não ser excessivamente agressivo com alguém. Mas o que verdadeiramente me suscita curiosidade é o que a terapia fez na pessoa, como a alterou para melhor, o que ela passou a saber sobre si própria que a enriqueceu interiormente.
Depois, num âmbito diferente em termos de tempo e interlocutor - mas não, em bom rigor, de tema -, conversei sobre auto-conhecimento aplicado às características que temos. E surgiu esta tríade que pode resumir, ainda que de forma muito incompleta, a nossa atitude face ao pior que temos ou somos: aceitação, reconhecimento, modificação. Isto é, aceitamos os nossos defeitos, reconhecemos os nossos defeitos, modificamos o nosso comportamento (não modificamos o nosso defeito, parece-me). Numa visão muito repentista, a sequência seria, para mim: reconhecer, aceitar, modificar. Reconheço o que sou, aceito-me como sou, modifico o que sou. Mas podemos alterar as duas primeiras palavras? Isto é, podemos dizer aceitar, reconhecer, modificar? Se sim, o que nos diz isso? Ou fazemos apenas um jogo de palavras?
Num certo sentido, ser-se colérico é o mesmo que ser-se adicto. Quem o é, é-o para sempre. Como evidenciamos a nossa vontade de mudar? Principalmente através de gestos concretos, independentemente, para mim, da motivação. Serei sempre colérico, ou forreta, ou orgulhoso ou o que quer que seja, como um adicto o é. A alteração de comportamentos não significa mais do que uma alteração de comportamentos. Não pretende dizer a ninguém que afinal não sou, mas pretende mostrar aos outros que conseguimos controlar o que somos. A única forma de demonstrar uma mudança interior é através de gestos concretos, não através de deambulações interiores que pouco mudarão o que somos. O único (passe o simplismo) pensamento interior necessário é a vontade de "mudar". Não a vontade de ser outra pessoa, mas a vontade de ter outros comportamentos e, com isso, talvez, ser outra pessoa. Essa tem de ser a verdadeira motivação. Apaziguamentos da consciência ou desejo de passar uma imagem diferente não são mais do que folclore.
Minha mãe é pobrezinha Não tem nada para me dar Dá-me beijos, coitadinha E depois põe-se a chorar
Tonecas e Marianela Dois engraçados garotos, Foram sentar-se, os marotos Por sob a minha janela, Nisto diz ele p'ra ela; Andas tão mal vestidinha Ando sim, mas não é minha, A culpa de andar assim, A vida está tão ruím Minha mãe é pobrezinha
Tu nunca andaste calçada Nunca tiveste sapatos Ela baixou os gaiatos Olhitos, envergonhada, Tu nunca tiveste nada, Uma corda p'ra saltar, Um arco para brincar Um tambor, muitas bonecas Minha mãezinha, Tonecas Não tem nada p'ra me dar
Eu não posso perceber tu nunca foste á escola Para gente pedir esmola Não precisa saber ler Então onde vais comer? A casa duma vizinha! Vou lá pela manhãzinha Á noite vou lá também E depois, a minha mãe Dá-me beijos coitadinha
Beijos são apenas beijos perdoa que eu te diga Se não enchem a barriga Não devem matar desejos Mas não sabem a sobejos Têm outro paladar Sabem ao doce manjar Dos mais ternos alimentos Minha mãe dá-mos aos centos E depois põe-se a chorar
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, as multidões perguntavam a João Baptista: «Que devemos fazer?» Ele respondia-lhes: «Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma; e quem tiver mantimentos faça o mesmo». Vieram também alguns publicanos para serem baptizados e disseram: «Mestre, que devemos fazer?» João respondeu-lhes: «Não exijais nada além do que vos foi prescrito». Perguntavam-lhe também os soldados: «E nós, que devemos fazer?» Ele respondeu-lhes: «Não pratiqueis violência com ninguém nem denuncieis injustamente; e contentai-vos com o vosso soldo». Como o povo estava na expectativa e todos pensavam em seus corações se João não seria o Messias, ele tomou a palavra e disse a todos: «Eu baptizo-vos com água, mas está a chegar quem é mais forte do que eu, e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias. Ele baptizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo. Tem na mão a pá para limpar a sua eira e recolherá o trigo no seu celeiro; a palha, porém, queimá-la-á num fogo que não se apaga». Assim, com estas e muitas outras exortações, João anunciava ao povo a Boa Nova».
No seu ensaio intitulado Meden Agan, Álvaro T Monteiro fala sobre a iminente partida da mãe, dizendo que na morte dela vê a morte de todos os que lhe são mais próximos. Perante uma óbvia tristeza, remata: "são as saudades de quando éramos pequenos." Não há filosofia elaborada nestes dois pensamentos; não há ideias de além, de reencontros, de eternidade; não há dimensão de fé ou da sua inversa. Há, nestas duas frases que refiro / cito, uma humanidade singela, uma fragilidade terrena que só sente quem vê o mundo expandir-se (passe a contradição) até ficar do tamanho da sua infância. Num repente, são as memórias de "quando éramos pequenos" que ocupam todo o espaço de uma tela, o branco de uma página de livro, as quatorze linhas de um soneto, a infinidade de sinapses. Há um instante onde estas memórias absorvem tudo para, no instante seguinte, serem arrebatadas por uma viagem de onde não se regressa a não ser no formato fotografia, filme, roupa pendurada num armário, recibo da farmácia. Ou talvez não só.
O assunto não vem a despropósito: ontem, ao escrever este texto, cruzei-me com um artigo onde o autor mencionava sons - no caso vertente, um galo a cantar de manhã, um cão a ladrar ao fim da tarde. E falava da arqueologia que evidencia uma armadura ou um ânfora, mas que não consegue evidenciar um som. Todos temos esta incapacidade de transmitirmos aos que nos sucedem na vida e nas gerações, por mais próximos que sejam em afecto e / ou sangue, o que são os sons e os cheiros que colamos à frase são as saudades de quando éramos pequenos. Evidenciamos um casaco, um par de sapatos, uma carta antiga, um livro dedicado. Mas como explicamos o som das gaivotas a perseguirem os barcos que regressam da faina? Como descrevemos o cheiro dos eucaliptos outonais ou das compotas ou do peixe-espada grelhado ao estalar do verão? Como explicamos os sons e os cheiros da praia, dos fins de tarde, das noites quentes, das férias grandes, das famílias todas felizes e inteiras e cá?
Penso que o jogo da apanhada atravessa gerações. Há alguém que foge, há alguém que persegue. Ganha quem chegar ao sítio certo e gritar "coito!", porque ali está em segurança, ali ganhou o jogo, ali não é mais perseguido ou agarrado por um fralda de camisa. Os sons e os cheiros de quando éramos pequenos são o coito das apanhadas dos adultos. É aí que nos refugiamos quando um telefonema quebra a largueza do céu que prolonga o mar e instala uma nota desajustada na afinação do dia. Quando a alma se enregela a partir de fora, é aí que buscamos conforto, porque os cheiros e os sons da nossa infância são o agasalho que nos protege.
Para conhecer a realidade do mundo, único fim sério da ciência, é preciso entrar no combate da vida como entravam na liça os paladinos bastardos - sem pai e sem padrinho. Os príncipes não constituem excepção a esta lei geral da formação dos homens. Da educação de gabinete, do bafo enervante dos mestres, dos camareiros e das aias, nunca sairam senão doentes e pedantes. Na sagração dos czares há uma cerimónia de alta significação simbólica: o imperador não se confirma enquanto por três vezes não haja descido do trono e penetrado sozinho na multidão; e isto quer dizer que na convivência do povo a autoridade e o valor dos monarcas recebe uma tão sagrada unção como a da santa crisma. Todos os reis fortes se fizeram e se educaram a si mesmos nos mais rudes e mais hostis contactos da natureza e da sociedade humana. Veja vossa alteza Carlos Magno, que só aos quarenta anos é que mandou chamar um mestre para aprender a ler. Veja Pedro o Grande, do qual a educação de câmara começou por fazer um poltrão. Aos quinze anos não se atrevia a atravessar um ribeiro. Reagiu enfim sobre si mesmo pela sua única força pessoal. Para perder o medo aos regatos, um dia, da borda de um navio, arrojou-se ao mar. Para se fazer marinheiro começou por aprender a manobrar, servindo como grumete. Para se fazer militar começou por tambor na célebre companhia dos jovens boiardos. E para reconstituir a nacionalidade russa começou por construir navios, a machado, como oficial de carpinteiro e de calafate, nos estaleiros de Sardam. Também não teve mestres, e foi consigo mesmo que ele aprendeu a lingua alemã e a lingua holandesa. Veja vossa alteza, enfim, todos aqueles que no governo dos homens tiveram uma acção eficaz, e reconhecerá se é na lição dos mestres ou se é no livre exercicio da força e da vontade individual que se criam os carácteres verdadeiramente dominadores, como o de Cromwell, como o de Bonaparte, como o de Santo Inácio, como o de Lutero, como o de Calvino, como o de Guilherme o Taciturno, como o de Washington, como o de Lincoln.
VERDADE PRODUZIU HEROINA DA DEMOCRACIA, LIVRO E FILME
Em vésperas da invasão do Iraque, iniciada a 20 de Março de 2003, George W. Bush defendia com fervor que o seu país e os aliados deveriam entrar no Iraque, afastar Saddam Hussein do poder e salvar o mundo de supostas armas de destruição maciça, que o tirano do Médio Oriente estaria a acumular para chantagear e impor os seus caprichos.
Como os EUA e o Reino Unido estavam isolados no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a favor do assalto militar, concordaram em incumbir um diplomata sueco acima de suspeita para averiguar, in loco, a veracidade sobre as ditas armas. Ao chegar de Bagdad, Hans Blix foi seguro a explicar que não descobrira nada de suspeito e ainda esclareceu que a guerra nunca seria boa solução, pois tratava-se de um alvo móvel, fácil de retirar do país antes de as forças anglo-americanas aterrarem no Iraque.
Nem esta conclusão abrandou os esforços da Casa Branca para convencer a opinião pública interna e externa acerca dos méritos daquela intentona. Enquanto isto, as manifestações contra engrossavam à medida que a data da guerra se aproximava, enchendo as grandes praças das capitais europeias e de várias cidades norte-americanas. Bush e Blair persistiam no seu plano, resolvendo pressionar os vogais do CSNU para conseguirem uma maioria de votos a favor, capaz de conferir um mínimo de legitimidade a uma ofensiva tão criticada e anti-popular.
Em Março de 2003, contra tudo e contra todos (a votação no CSNU também fracassou), o exército anglo-americano abriu as hostilidades, como se fosse uma inevitabilidade. As tais armas altamente perigosas nunca foram encontradas e o Iraque ficou devastado, sofreu perdas humanas na ordem das centenas de milhar. Hussein foi logo deposto, mas o descontrole das instituições tornou o país ingovernável e pasto fácil de extremistas assanhados. De facto, um par de anos depois, despontava nas profundezas do Iraque o movimento terrorista DAESH (ou ISIS), que provocou uma onda de mortandade e de ruínas pelo Médio Oriente, enlutando também diversas metrópoles europeias com atentados ferozes. Ironicamente, a destruição maciça tinha sido despoletada por Bush e Blair, qual caixa de pandora infernal.
A nebulosa sobre os motivos reais daquela estranha guerra adensaram-se, até pela artificialidade da narrativa que a tinha sustentado. Seria a voracidade da indústria de armamento? Seria antes a geopolítica dos recursos energéticos e as ameaças de Hussein em deixar de comercializar em petrodólares? Haveria outras motivações de aliados dos EUA na região, irritados com as políticas de Hussein?
Naquele caldo de inverdades esgrimidas pela Casa Branca, com o respaldo de Downing Street, poucos nos media britânicos questionaram a política de Blair. Um dos poucos gestos para tentar evitar uma guerra baseada em mentiras, veio de uma mera tradutora de mandarim dos serviços de inteligência ingleses – Katherine Gun. À data, foi especialmente corajosa, pois tinha plena noção da gravidade do crime de desobediência em que incorria (contra a «Lei dos Segredos Oficiais»), ao divulgar um memo secreto da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) a pedir ajuda ao congénere britânico para coagirem os delegados dos países pequenos com assento (rotativo) no CSNU a votar a favor da ofensiva recomendada por Bush.
Esta história verídica encheu tabloides na imprensa inglesa, passou depois para livro da autoria de Marcia e Thomas Mitchell: «The Spy Who Tried to Stop a War: Katharine Gun and the Secret Plot to Sanction the Iraq Invasion». Em 2019, apareceu nas salas de cinema com o título: «Official Secrets»1. A ligação aos factos fez o realizador escolher para intérprete do Primeiro-Ministro britânico o próprio Tony Blair, e para desempenhar o Presidente norte-americano, o próprio Bush filho. A protagonista aparece apenas no fecho do filme.
Katherine Gun, interpretada por K.Knightley, aparece em entrevista no final do filme, à saída da sala de audiências.
Para lá da qualidade de inúmeras interpretações – como as de Keira Knightley, Ralph Fiennes, Matt Smith, etc -- é impressionante confirmar como o impacto das escolhas de cada um – ora em sentido positivo, ora negativo – contam muito para o desfecho final. E na Inglaterra daquele início de século XXI, Katherine Gun não esteve sozinha. Alguma democracia funcionou. Por isso, foi possível cumprir parte da sua intenção, de desvendar a verdade aos seus concidadãos, com pena de não ter conseguido impedir o banho de sangue que foi aquela invasão, sobretudo do lado iraquiano. Será dos traços mais impressionantes desta história ser sustentada pela coragem desmedida de pessoas em postos-chave, que tomaram a defesa da causa mais frágil e alvo de algo bullying por parte de departamentos do Governo inglês de então. Porém, advogados, jornalistas, um par de políticos de primeira água e seus assessores alinharam com K.Gun, cada um seguindo a verdade conforme lhe era dado ver, sem se intimidar por leis de contornos discutíveis.
Katherine Gun protagonizou uma sequência de actos heróicos, nomeadamente pela rapidez com que confessou às chefias ter sido ela a fazer chegar à imprensa o tal documento classificado, para não deixar adensar suspeitas injustas sobre outros colegas do serviço, que estavam a ser mais apertados pelos serviços secretos para confessarem aquele crime.
Um aspeto conseguido no filme é a reprodução dos ambientes cinzentos, carregados de sombras e algo claustrofóbicos, sugeridos pela fotografia de Florian Hoffmeister, que assim recria o nevoeiro denso da cidade de Londres. Mas, metaforicamente, exprime também a opacidade da política externa inglesa e até o estado de espírito da protagonista, alvo de uma pressão indecorosa por parte das autoridades. Valeu-lhe a convicção com que sempre sustentou a sua desobediência cívica, certa de trabalhar, antes de mais, para o povo britânico e menos para Governos que avançam para uma guerra com argumentos fabricados, privando o público de informação nevrálgica para o exercício da democracia.
Nos meandros dos tribunais, impressiona o circuito labiríntico e humilhante a que o réu é sujeito até chegar à sala de audiências, onde desemboca depois de subir umas escadas estreitas e íngremes, parecendo insinuar-se que está reduzido aos bas-fonds e é dali que acede ao lugar de luz onde terá de se submeter aos que têm poder para ditar o seu futuro. Tudo isto percorreu K.Gun com firmeza, apesar do medo, sabendo-se apoiada por um óptimo advogado, jornalistas profissionais e com sentido ético (à cabeça, o ‘Observer’).
Já na sala de audiências, em ambiente enclausurado, como uma proscrita perigosa.
O jornalista herói, que cumpriu com zelo a sua missão de informador e escrutinador do poder.
A cereja em cima do bolo, que também a favoreceu, foi o calendário eleitoral, que desaconselhava produzir “mártires” face a uma opinião pública maioritariamente contra a aventura belicista no Iraque.
Diz o lema do filme – «nothing is more dangerous than the truth» -- para colocar a tónica no preço que verdades incómodas costumam ter. Isso mesmo testemunhou, um par de milénios antes de K.Gun, a comitiva de magos que se deslocou até uma gruta das franjas do Império Romano, no Médio Oriente, esquivando-se à fúria predadora do rei da região, chamado Herodes. O mesmo preço da verdade sentiram na pele vários dos que passaram pela mesma gruta, começando logo pela ferocidade de um poder cruel, que ordenou a matança das crianças da região, até aos 2 anos de idade. Todavia, é no meio das maiores desventuras e iniquidades que também se vêem surgir gestos heróicos, de quem se recusa a ceder a leis e poderes iníquos. Calha a cada um segundo a sua condição e, na forma especialmente discreta da Mãe do Menino da gruta de Belém, tornou-se o expoente do ponto de luz em tempos conturbados. Logo calha ser hoje uma das suas festas, sempre inspiradoras.
Maria Zarco (a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA Título original:OFFICIAL SECRETS Título traduzido em Portugal:SEGREDOS OFICIAIS Realização:Gavin Hood Argumento:Sara e Gregory Bernstein, Gavin Hood Produzido por:Ged Doherty, Elizabeth Fowler e Melissa Shiyu Zuo Fotografia:Florian Hoffmeister Banda Sonora:Paul Hepker e Mark Kilian Duração:1h52 Ano: 2019 País:UK e USA Elenco: Keira Knightley – a protagonista, agente secreta dos serviços ingleses Adam Bakri – marido da agente secreta Ralph Fiennes – o advogado de defesa Bem Emmerson Matt Smith - jornalista do Observer Martin Bright
George W. Bush – o próprio Tony Blair – o próprio
Local das filmagens: Inglaterra – Yorshire, a vila de Boston Spa e Manchester (para simular Londres).
Prémios (a maioria, em 2019-20): Ganhou o 1º lugar do The Cinema for Peace Award for the Political Film of the Year, Melhor Argumento pelo festival Provincetown International Film Festival; eleito pelo público o Melhor Filme Estrangeiro no Traverse City Film Festival; Melhor Actor Secundário para Raloh Fiennes no Film Club’s The Lost Weekend e recebeu nomeações para festivais importantes da área política como o Political Film Society dos EUA e o National Film Awards britânico.
Há um pragmatismo dentro de mim que, como todas as coisas assinaláveis (a vida, por exemplo) é uma faca: tudo está no lado pelo qual as pegamos. Numa dada altura, talvez numa fase mental ainda mais imberbe do que aquela que vivo agora, olhava para a tecnocracia como o segredo para a Nação: o país precisava de competência, sem a necessidade de valores nem convicções a não ser os que se extraem de uma tabela com várias entradas, ou de um gráfico com tendência. Queria homens que soubessem da poda, independentemente do partido de onde vinham. Queria ciência, tecnologia, organização e planeamento, rigor e ausência de discursos fúteis. Ainda que só imaginasse o que isso era, o país seria uma imensa fábrica, esse micro-cosmos da existência humana onde as máquinas imprimem o ritmo, onde o panóptico é a ferramenta que transforma a diversidade e a barbárie numa sequência de actividades controladas com vista a um fim maior.
Vem este intróito longo e desacertado a propósito de um texto e de uns comentários num blog de que sou frequentador, e onde escreve um monárquico que me dá a fineza da sua consideração. Escreveu ele, citando, sobre os nossos 800 anos de história, sobre a audácia dos conjurados, sobre as fronteiras inalteradas mais antigas da Europa. O meu pragmatismo veio ao de cima, como um cadáver putrefacto que assome à tona de um lago que ninguém visita. E disse-lhe que me parecia que que esta ideia da nossa História antiga ou das nossas fronteiras multi-seculares está sobrevalorizada: o país não cresce, há 2 milhões de pobres, as gerações abaixo da minha lutam com dificuldades, a prazo seremos ultrapassados por todos, mesmo por aqueles que estão parados. De que nos servem 800 anos de História, a palavra saudade ou a ideia saudosista de um Portugal de Minho a Timor? Não temos comida na mesa, mas dos lados de um prato simples da Vista Alegre (uma certa nobreza não liga à faiança onde põe o almoço) há talheres de prata. Somos pobres, mas somos antigos.
Há um discurso marcelista que me cansa: o de que somos os melhores em qualquer coisa. O país arde, mas temos os melhores bombeiros; a selecção perde, mas temos os melhores jogadores. O discurso não pretende reconhecer uma valência, mas evitar uma debandada. É uma espécie de discurso motivacional para uma hora de surdos ou, simplesmente, para um grupo de seres humanos que são os melhores em qualquer coisa, mas não em tudo - ou, sobretudo, não naquilo em que dizem que somos os melhores.
Este meu interlocutor de discussão revê-se na ideia do encanto dos violinos enquanto o paquete afunda. Por vezes também eu - é a nostalgia de uma nobreza arruinada mas cheia de tradições, uma certa gente que usa um vocabulário onde a expressão eficiência é bonita, mas que se revê numa existência mais suave, onde o dinheiro existe mas não é mencionado. Tenho dias assim, como tenho dias pragmáticos. Talvez, acima de tudo, me encante um discurso motivacional oco, que assenta na ideia de que somos os melhores e que saudade é uma palavra intraduzível, pelo que somos um povo eleito.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e Traconítide e Lisânias tetrarca de Abilene, no pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto. E ele percorreu toda a zona do rio Jordão, pregando um baptismo de penitência para a remissão dos pecados, como está escrito no livro dos oráculos do profeta Isaías: «Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. Sejam alteados todos os vales e abatidos os montes e as colinas; endireitem-se os caminhos tortuosos e aplanem-se as veredas escarpadas; e toda a criatura verá a salvação de Deus’».
Revi ontem Cinema Paraíso. Cruzei-me com o filme por puro acaso, nas minhas deambulações vagas de fim de noite, quando procuro algo que me distraia e que não requeira atenção: uma receita de cozinha inesperada, um fim de filme, alguém que recita uns versos ou lê um trecho de um romance. É a minha hora dos excertos, dos fragmentos, dos bocados de coisas. Tenho sempre a esperança de encontrar algo luminoso, ou vence-me o desejo de não adormecer com nada triste, muito pelo contrário: um adeus redentor, um beijo apaixonado, um fim feliz apesar das possíveis dores da alma ou das feridas do corpo.
Num certo sentido, Cinema Paraíso é um filme sobre o regresso a casa, seja do ponto de vista geográfico, seja do ponto de vista afectivo. E é, ainda, um filme que contraria a ideia de que não devemos regressar aos sítios onde fomos felizes. Talvez Salvatore - o Tótó - tenha voltado ao único sítio onde foi feliz, embora de lá tenha fugido para se realizar no cinema, sem nunca mais ter visto Elena, a sua namorada da altura.
Numa cena cortada do filme, Salvatore e Elena reencontram-se e beijam-se na terra onde se viram pela última vez 30 anos antes. Uma série de desencontros tinha-os afastado irremediavelmente. Felizmente não incluíram essa cena no filme que todos vimos, pois o filme tornar-se-ia demasiado feliz, demasiado previsível. Há uma certa nostalgia triste nos olhos de Salvatore a olhar para o passado, para a sua casa afectiva. Talvez haja um destino que não se tenha cumprido, porque a vida é mesmo assim. Também tenho horas assim: excertos, fragmentos, bocados de coisas, vidas inacabadas, nostalgias.
Queridos irmãos, que o tempo do Advento seja um tempo para interromper, interromper, interromper. Isto é: suspender as nossas questões, suspender as nossas amarguras, suspender os nossos longos percursos, suspender a nossa inquirição àquilo que não tem resposta, ou então aquilo cuja resposta não nos cabe colher. Interromper. E preparar o nosso coração para o encontro com a vida, com a vida estreme, com a vida que começa, com a vida que é nova, com essa vida encarnada que nos mostra na nossa carne, na nossa história, o próprio Deus.
Queridos irmãos, este tempo de Advento é um tempo necessário. Precisamos de caminhar. O Natal não é uma coisa automática, não é uma coisa que se tira das nossas caixas e coloca de novo e ele acontece automaticamente, imprevistamente. Não, o Natal prepara-se. Este encontro tem de ser, de facto, um encontro com a nossa vida. Deus interrompe o que eu sei, o que eu digo, o que eu falo e mostra-se, e dá-se-me, e enche o meu coração da fome de Deus, da fome de sentido que só Ele pode saciar.
Cardeal D. José Tolentino Mendonça.
(Homilia)
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Último Natal
Menino Jesus, que nasces Quando eu morro, E trazes a paz Que não levo, O poema que te devo Desde que te aninhei No entendimento, E nunca te paguei A contento Da devoção, Mal entoado, Aqui te fica mais uma vez Aos pés, Como um tição Apagado, Sem calor que os aqueça. Com ele me desobrigo e desengano: És divino, e eu sou humano, Não há poesia em mim que te mereça.
Miguel Torga, Gaia, 24 de Dezembro de 1990 (in Poesia Completa vol. II, Lisboa 2007)