GULBENKIAN OFERECE-NOS O «CANTO DA NOITE» DE MAHLER
Na próxima Sexta, 15 de Setembro, às 19h00, a Gulbenkian divulgará em sinal aberto, através das plataformas digitais da Fundação, o concerto dirigido pelo maestro suíço de raízes italo-francesas – Lorenzo Viotti, onde será interpretada a Sétima Sinfonia de Mahler, também conhecida por «Canto da Noite». É uma forma generosa de a Fundação compensar o público pela corrida aos bilhetes desta temporada, que esgotaram, mal abriu a bilheteira online, antes do Verão.
O concerto de Sexta inclui também uma composição de György Ligeti (1923-2006) – “Lux aeterna”, no ano do centenário do nascimento deste músico húngaro e judeu, que se destacou no século XX com árias incorporadas em bandas sonoras de Hollywood. Assim fez Kubrick para «2001 – Odisseia no Espaço», precisamente com LUX AETERNA, embora a ária mais conhecida do filme pertença a Richard Strauss. Como muitos judeus do Leste da Europa, a história de Ligeti é bastante atribulada: em 1943, a família foi deportada para Auschwitz e só a mãe regressou com vida, além do compositor, que tinha sido levado pelos nazis para trabalho escravo. Terminada a Guerra, retomou os estudos em Budapeste, mas rapidamente se viu enclausurado numa sociedade fechada ao exterior pelo novo regime comunista soviético. Clandestinamente, começou a acompanhar as novas tendências da música do pós-guerra, tocadas nas rádios do Ocidente. Em 1956, fugiu para Viena e tomou a nacionalidade austríaca, tirando o maior partido da liberdade de que passou a dispor do lado ocidental da Cortina de Ferro. Aí pôde enriquecer a sua formação com as sonoridades vanguardistas da electrónica e de outros movimentos que grassavam na Alemanha, nos EUA, na Suécia, etc. O filho, igualmente músico, radicou-se em Nova Iorque.
No PROGRAMA DE SALA DA GULBENKIAN
«György Ligeti (Dicsőszentmárton, 1923 – Viena, 2006)
Lux aeterna
COMPOSIÇÃO c. 1966
DURAÇÃO c. 10 min.
‘Lux aeterna’ é uma das obras-primas de György Ligeti. De 1966, é para 16 vozes ‘a cappella’. Lenta e aparentemente estática, tal como o texto nos sugere, parte de um uníssono nas vozes femininas, em pianissimo. Pelo movimento melódico de cada uma das vozes, geralmente em pequenos intervalos, vai-se expandindo para acordes cada vez mais dissonantes, criando longos e violentos paroxismos.
Depois de alguma alternância entre vozes masculinas, femininas e tutti, os acordes complexos e dissonantes de muitas notas vão-se reduzindo gradualmente, até chegarem a um acorde de apenas duas notas, nos contraltos, de novo em pianissimo. O silêncio toma gradualmente conta da obra. Tornou-se uma referência da cultura moderna, pela sua inclusão (ainda que não autorizada) na banda sonora do filme 2001: ‘Odisseia no espaço’ (1968) de Stanley Kubrick.»
Jorge Matta
LETRA DO POEMA MUSICADO:
«Que a luz eterna lhes resplandeça, Senhor:
com os teus santos para sempre, pois és bom.
Dá-lhes Senhor o eterno repouso:
e que para eles resplandeça a luz perpétua.»
Gulbenkian – Set.2023
O músico austríaco Gustav Mahler (1860-1911) igualou Beethoven no número de sinfonias, no sucesso profissional reconhecido em vida e também nos dissabores no plano familiar. Nos seus escritos, percebe-se quanto a música ficou impregnada de vida e das suas inquietações filosóficas e espirituais sobre o sentido da existência, do sofrimento e do mal, da morte, de Deus. Numa carta, interpelava: «On what dark subsoil our life is built! (…) Where do we come from? Where does the way out lead? Why do I believe myself free, and yet am wedged into my character as into a prison? What is the purpose of suffering? How can I understand cruelty and malice in the creation of a kindly God? Will the meaning of life finally be revealed in death?» [citada na versão encontrada, em língua inglesa].
Começou por receber a herança judaica dos pais. Na juventude, tomado pela ânsia de responder às grandes questões da vida, consultou Freud, que atribuiu a angústia do jovem aos traumas da primeira infância. Não se contentando com o diagnóstico, Mahler apoiou-se na arte e no cristianismo para encontrar um rumo. Em 1897, converteu-se ao catolicismo e mergulhou na arte como expressão da sua demanda espiritual e das suas vivências. Assim, cada composição converteu-se numa mensagem de vida, no legado mais íntimo e profundo que quis partilhar com os outros seres humanos. Segundo explicou numa carta: «A minha música está viva! (…)», percebendo-se que a sua música é vida transbordante de perguntas e esboço de algumas respostas, mas sempre habitadas por um halo intenso de gosto de viver. Numa carta interrogava-se: «Que pode fazer quem não ‘vive’, quem não respira os ventos impetuosos da nossa grande época?».
Mahler frequentava a vida social de Viena, que, no último quartel do século XIX, fervilhava de artistas e de movimentos vanguardistas. Aí conheceu e apaixonou-se pela filha mais velha do pintor (Emil Jacob Schindler) mais famoso dos Habsburgos. Num ápice, casaram e o músico dedicou a Alma Schindler a 5ª Sinfonia, considerando-a uma carta de amor à amada. Também ela música e artista, Alma Schindler Mahler brilhava pela beleza e fogosidade nos salões do Império e, mais tarde, noutros círculos europeus, onde foi musa de (e amante de alguns) pintores, escritores, músicos, por vezes, resultando humilhante para Gustav. Inclusive, permitia-se defender ideias anti-semitas, apesar de o marido e vários amigos chegados serem judeus. O seu currículo amoroso inaugurou-se com a paixão por outro Gustav – o pintor vienense Klimt, que fez várias telas da sua amada. Mas foi liminarmente recusado pela família de Alma, que foi forçada a afastar-se do artista.
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Fotografias do casal |
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Musa de tantos, iniciou um affair com Kokoschka, quando enviuvou de Mahler, tendo inúmeras telas a solo e outras a dois |
As manchas de luz e sombra que teceram a vida de Mahler deram corpo à linguagem artística que melhor esgrimia – a música! Daí a densidade e o colorido único das suas composições monumentais, trabalhadas ao detalhe para respeitarem cada recorte da realidade que lhe calhou viver. Daí serem necessárias formações de orquestra agigantadas para interpretarem a sua obra, além de cantores líricos e de coro. Precisamente, a Sétima inclui parte coral. Nela, o músico combinou modernismo com laivos do movimento romântico, inspirado na soberba tela de Rembrandt «A Ronda da Noite».
No PROGRAMA DE SALA DA GULBENKIAN
Gustav Mahler (Kaliste, 1860 – Viena, 1911)
Sinfonia n.º 7, em Mi menor
ANDAMENTOS
I. Langsam (Adagio) – Allegro risoluto, ma non troppo
2. Nachtmusik I: Allegro moderato
3. Scherzo: Schattenhaft (Sombrio)
4. Nachtmusik II: Andante amoroso
5. Rondo-Finale: Allegro ordinario
COMPOSIÇÃO 1904-1905
ESTREIA Praga, 19 de setembro de 1908
DURAÇÃO c. 80 min.
Composta entre 1904 e 1905, a Sinfonia n.º 7, em Mi menor, é um dos marcos da produção instrumental mahleriana. Não obstante, durante muito tempo, a sétima foi um dos marcos menos visitados da produção sinfónica do compositor boémio, devido à complexidade da sua linguagem musical, situada algures na fronteira do movimento romântico com as tendências de um modernismo latente, ambicionado por um número cada vez maior de contemporâneos de Mahler.
Do ponto de vista da linguagem harmónica, trata-se provavelmente da sinfonia mais sofisticada do compositor, povoada por dissonâncias ásperas e modulações abruptas, cuja ação conjunta exerce um efeito de dissolução das funções tonais convencionais. Neste aspeto específico, a obra dá plena continuidade à anterior Sinfonia n.º 6, em Lá menor (1904). Por outro lado, a utilização recorrente do intervalo de quarta como elemento estruturador, quer de motivos e temas, quer de agregados harmónicos, traz ao idioma da Sinfonia n.º 7 um caráter distintivo, que a afasta dos cânones mais tradicionais do género. Contudo, apesar da vincada influência modernista, não deixa de prestar homenagem ao universo romântico, através de uma arquitetura global de inspiração poética que transporta o ouvinte dos contornos sombrios do ‘Allegro’ introdutório até à apoteose triunfante do ‘Allegro’ final. De permeio, Mahler compôs dois singulares andamentos moderados, ambos intitulados ‘Nachtmusik’ (“música noturna”), os quais enquadram, por sua vez, um ‘Scherzo’ central, ‘Schattenhaft’ (“como uma dança de sombras”). O signo da noite – ícone dileto da cultura romântica – perpassa pois toda a conceção da sinfonia, estando na origem do subtítulo “Canto da noite”, pelo qual é muitas vezes designada.
Mahler concluiu a Sinfonia n.º 7 na localidade austríaca de Toblach, durante o verão de 1905. No entanto, a obra só veio a ser estreada a 9 de setembro de 1908, em Praga, depois de Mahler ter declarado que esperaria “o tempo que fosse preciso” para assistir a este evento. As expectativas do compositor foram, de certo modo, correspondidas por uma receção respeitosa, mas não propriamente calorosa, o que se pode facilmente compreender em vista das vastas dimensões e do estilo da partitura, bastante arrojado para a época.
Desde os primeiros compassos da introdução, Adagio, as sonoridades refinadas e ritmicamente bem destacadas tomam conta da textura. A linha melódica irregular entoada pela trompa-tenor, virá a ser empregue noutras partes da partitura, desempenhando um papel unificador de fundo. A introdução virá a ser sucedida por um Allegro de caráter marcial, em que se impõe, de imediato, o intervalo de quarta descendente. O desenvolvimento que se segue desenrola-se com base em duas secções distintas. Na primeira assiste-se ao prolongamento do movimento impetuoso da exposição, ao mesmo tempo que o material melódico e harmónico de origem é variado e ampliado. Já na segunda secção, Mahler propõe um quadro esplendoroso de imaginário bucólico, o qual vem depois a ser importunado pelo recitativo inicial da trompa-tenor. O regresso do anterior episódio ‘Allegro’, densamente trabalhado, encerra o andamento na tonalidade de Mi maior.
O segundo andamento, ‘Nachtmusik’ (Allegro moderato, em Dó maior), constitui uma espécie de marcha lenta de caráter militar, iluminada por uma atmosfera fantástica que faz recordar alguns dos Wunderhorn Lieder. Segundo o amigo do compositor Willem Mengelberg, o andamento foi inspirado pelo célebre quadro seiscentista de Rembrandt intitulado A Ronda da Noite.
O ‘Scherzo’ (Schattenhaft, em Ré menor), não esconde a sua filiação na valsa vienense, muito embora os contornos da instrumentação sugiram, por diversas vezes, uma face grotesca e desconcertante que transfigura a recriação da dança. No centro do andamento é exposta, por três oboés, uma melodia de tipo popular, na tonalidade de Ré maior, antes do reaparecimento súbito da bizarra valsa inicial.
A orquestração do terceiro andamento, ‘Nachtmusik’ (Andante amoroso, em Fá maior), integra uma guitarra e um bandolim, dois instrumentos de aparecimento muito raro neste tipo de repertório, mas que conferem uma sonoridade característica às texturas “noturnas” de Mahler.
Por fim, o efervescente ‘Finale’ (Rondo, em Dó maior) é o exemplo acabado da visão progressista de Mahler, instaurando, por detrás de aparente desordem, as mais complexas inter-relações entre o material musical e a organização de um tempo psicológico cuja apreensão se revela deveras complexa e exigente, do ponto de vista do ouvinte. Na sua mescla controversa entre o trivial e o sublime, o andamento progride inexoravelmente, até à sua conclusão triunfal, sobre as ondulações maciças de semicolcheias que reúnem os sopros, a percussão e as cordas.»
Gulbenkian - Rui Cabral Lopes
Set.2023
Bom concerto a quem puder começar o fim-de-semana em beleza, entre Mahler e Ligeti.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)