19 setembro 2008

Cartas à minha Madrinha

Minha querida madrinha,

Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
Hesitei muito em escrever-lhe esta carta. Não é falta de conteúdo, é preocupação pela minha segurança e dos que me estão próximos. Harare é uma cidade que dizem ser segura – não tenho razão de queixa, note-se, mas há muitos candeeiros tombados, buracos na estrada, acácias floridas e jacarandás que despontam. E se toda esta panóplia de elementos da criação divina e do homem alberga um microfone, um dispositivo que filma os nossos humores e acções ao abrigo da penumbra?
Tenho de partilhar consigo uma história verdadeira, com contornos de tragicomédia. Muitos saberão do que se trata, dos why, what, where, who com que se escrevem as notícias em Inglaterra. O que lhe conto, depois de terminadas as introduções
(a madrinha sabe que sempre tive dificuldade em conjugar o verbo sintetizar)
é cochichado pelos salões, entre uma cerveja que se bebe fresca, um deambular precavido sobre a assinatura do acordo tripartido, um perorar interessado sobre a savana e o grau alcoólico do vinho sul-africano. Antes de lhe reportar este acontecimento consultei as partes interessadas: um advogado grego sobre uma possível acção em tribunal; um médico jugoslavo sobre a disponibilidade de reconstruções faciais; gente local e amiga sobre a possibilidade de me esconder numa arrecadação, sobreviver à maneira da resistência gaulesa na França ocupada. Avancemos.
Vive aqui determinada pessoa que era casada com outra determinada pessoa. A primeira é do sexo masculino, a segunda é do sexo feminino
(percebe, madrinha, o porquê da escrita meia dissimulada? Não queremos a presença no tribunal, o ajeitar de um nariz que ficou irremediavelmente esmagado, o queijo bolorento com a malga de sopa fria)
Ora, esta determinada senhora foi a banhos à sua terra natal; o cavalheiro com quem partilhava sonhos e fracassos, leito e televisão quedou-se por aqui, no cumprimento dos seus deveres profissionais. Ter-se-ão despedido no aeroporto, escondendo uma furtiva lágrima por trás de uns óculos escuros de marca. A senhora partia de férias, o senhor trabalhava o que entendia. As mãos que se deram e que se afastaram para a passagem da fronteira permaneceram estendidas, num final prolongado (tal e qual como o shiraz australiano).
Passou-se algum tempo e a senhora não voltava. Sim, está de férias; sim, está tudo bem; sim, as saudades corroem; sim, a vida está pela hora da morte; sim, a cebola está que não se pode. O facto, madrinha, é que a cebola aumentava, a hora da morte prolongava-se e a dama não regressava.
Indaguei, pois indaguei. Certamente que o fiz, preocupado pelo cavalheiro cujas olheiras aumentavam ao ritmo de uma inflação de 3500%, o tremor na voz era mais frequente do que os ciclones em Miami.
Sabe o que aconteceu, madrinha? A dama em questão (talvez seja exagerado falar em dama, mas o advogado grego, assim como o médico jugoslavo, recomendaram-me sigilo quanto a nomes. A violência, os juízes, a anestesiazinha na sua idade, um nariz tão bonito…) repito, a dama em questão tinha-se mantido serena na sua terra natal, inundada de uma felicidade extrema, agarrada ao seu prévio marido. Trocou, a bem dizer, o número dois pelo número um. Não há amor como o primeiro, diz-se. Um regresso às origens, a uma terra conhecida, a um porto que se terá visitado pela primeira vez. O número dois (ela era para ele a número três) está devastado, com uma neura de primeira e uma qualidade de vida de segunda.
(está confusa, madrinha?)
Até aqui a história tem o seu quê de banal. Afinal, todos nós estamos habituados a trocas. O mundo do matrimónio está como a contratação de jogadores: há o mercado de Verão, o de Inverno, o defeso… Só que, madrinha, o determinado senhor tinha uma cunhada, irmã da determinada senhora. Esta jovem tinha vindo cá para visitar o seu sangue, contar histórias de infância, recordar o peru que o pai trinchava enquanto a mãe preparava sandes de pepino.
Vê-se agora sem irmã – que se lançou em braços já conhecidos – e com um cunhado que está ávido de afecto familiar. Na ausência da sua legítima, corre nos meandros de Harare que o abandonado procura conforto na cunhada, usando de uma insistência que poderá parecer chocante. Ela refugia-se (dizem…) por trás de uma porta fechada à chave.
O dito cavalheiro está destroçado – e não é para menos, sentir-se trocado pelo anterior, por quem o precedeu na descoberta dos caminhos que depravam o homem mais puro. Tem dois pensamentos principais (a parte profissional estará pelas ruas da amargura): a legítima – e solicita uma corda para se enforcar; a cunhada – e roga-lhe um pouco de carinho, em nome da família.
No serviço militar, se o oficial de dia não estivesse, avançava a reserva. Aqui não sei como será, porque há pessoas que não têm o verdadeiro sentido do dever.

Fique bem, madrinha, neste amplexo ternurento com que me despeço



1 comentário:

Anónimo disse...

Ai amigo, se a madrinha não ficou confusa, eu fiquei atordoada!!! adorei aquela da dificuldade de conjugares o verbo sintetizar...mas ainda bem que assim és! beijos MiHl

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