22 setembro 2008

Ir à Beira e voltar

Eram 6 da manhã quando nos atirámos à estrada para a Beira. A vegetação para aquelas bandas do Zimbabué continua a ser deslumbrante, embora já com alguma elevação - são as montanhas do Vuma! Mas o encanto mantém-se: as cores secas, a desorganização esplêndida, a imensidão do olhar.
A passagem da fronteira para Moçambique não é muito diferente de exercício semelhante para a Zâmbia, cruzada há algumas semanas: confusão, filas intermináveis, o exercício de privilégios, o preenchimento de impressos desnecessários (à entrada do Zimbabué, no regresso, fui registado como João Maria, Portugal), a desorganização da divisão de tarefas, a entrega de 25 dólares americanos para o visto, a devolução do troco em meticais que não chegaram para o que seria correcto. Ficou o sorriso do funcionário da alfândega aberto numa barba por fazer e numa boina semi-militar escarranchada no alto da cabeça.
Passamos a fronteira e mudamos de país, no sentido mais amplo do termo: a língua é diferente, a vegetação é diferente, a natureza oferece-se de forma diversa. Por mais bonito que seja o campo moçambicano, nada se compara, para já, ao do Zimbabué. Enquanto do lado de cá viajamos quilómetros sem ver vivalma, do lado de lá há uma sucessão permanente de aglomerados de cubatas e um corrupio ininterrupto de pessoas na beira da estrada, como se se deslocassem em peregrinação a um local qualquer. Em Moçambique vê-se ainda agitação económica, o que é hoje uma raridade no país de Mugabe.

Descrever a Beira talvez seja falar – por mais disparatado que isto possa parecer – no que imagino ter sido a cidade antes da independência. Agora é uma metrópole suja, mal conservada, estragada, mostrando a face visível do que são as consequências de uma guerra civil prolongada e as quezílias partidárias levada ao extremo.
Imagino a Beira de há 34 anos, sem que esta descrição tenha o que quer que seja de um saudosismo colonialista, já que é a primeira vez que visito este país.
Talvez o comércio fervilhasse, talvez a zona do Macuti (que garantem locais e estrangeiros ser a mais bonita da cidade) estivesse pejada de gente passeando ao calor da noite, comentando os dias que passavam, sentando-se numa esplanada a comer camarões, a beber cerveja, a rir e a gozar uma vida diferente, um clima diferente. Imagino as crianças na praia banhada pelo Índico – nalguns casos a dez passos de suas casas – a correrem inocentes atrás dos caranguejos, num cansaço que não vinha, mesmo depois das aulas de natação no Clube Náutico.
Agora já nada disso existe. As casas de algumas famílias felizes que por lá passaram deram lugar a orfanatos de crianças com futuros improváveis, a terra batida que separa as vivendas do areal parece um trilho do mato, as árvores que debruam a praia do Náutico afiançam-me estar quase secas, o tecido habitacional da cidade carece de uma operação plástica urgente – ainda que não profunda.


Fica, como manifestação saudável de uma lusitanidade orgulhosa, a satisfação de perceber que é o portugês que se fala para que as pessoas se entendam entre si. Em todo o lugar se ouve a língua pátria - nos cafés, nas compras de rua, no barco para atravessar o Savane, na missa de ontem que comemorava os 20 anos da visita de João Paulo II.

Cumprindo um dos objectivos que cá nos trazia, partimos na demanda do bacalhau, do camarão e do caranguejo. Guiados pelos olhos de quem sabe os recantos onde o negócio é vantajoso, fomos sempre bem servidos, com simpatia e educação.
Retenho e partilho com os meus fiéis leitores a compra de 20 kg de caranguejo ao preço obsceno de 1 dólar americano o quilo, e que foi ensacado vivo à nossa frente. Como as patas se agitassem num frenesim de sobrevivência e fossem provocar danos na integridade da ráfia, foram partidas e arrancadas sem dó nem piedade, sem que os animais deixassem de se mexer num estertor de morte próxima.



Estar na Beira um fim-de-semana, como eu estive, com o Cônsul de Portugal, José Menezes Rosa, e a mulher, Cristina, não é estar acompanhado de quem conhece os cantos à casa, de quem oferece uns caranguejos de entrada que nos levam ao olimpo, sabe do melhor restaurante (o Solange, diga-se a propósito, onde comi um magnífico peixe papagaio), identifica as rotundas e dá informação privilegiada sobre a geografia política da região. Estar com ambos é estar com a simpatia, a educação, a disponibilidade, a conversa fácil, os temas de que se compõe o quotidiano de cada um. Estar com ambos é estar em casa longe de casa – e isso merece um agradecimento especial.

Foram eles que nos levaram à praia do Savane, assim chamada (presumo eu…) por ficar junto ao rio que tem o mesmo nome. O carro fica numa das margens e uma embarcação semelhante a uma chata leva-nos à outra. Ali, cruzado um aldeamento com restaurantes e parques e algum equipamento de pernoita, enfrentamos o Índico e a praia que por ele é banhada. Um areal a perder de vista, quilómetros infindos de uma areia branca e limpa, sem ninguém. Durante muito tempo fomos os únicos utentes da praia, com excepção de uma comunidade de pescadores a cerca de dois quilómetros. Para o outro lado, o vazio humano. O mar esperava por nós – agitado, com ondulação variada mas segura, com uma temperatura de cerca de 26ºC, segundo a nossa sensibilidade, ideal para banhos prolongados, o corpo todo imerso na água, as conversas demoradas e interrompidas apenas por uma onda mais alta.


O regresso a Harare fez-se ontem de manhã. Parámos no Chimoio, antiga Vila Pery onde, segundo amiga minha que por lá passou há muitos, muitos anos, se comia o melhor gelado do mundo. Não tendo encontrado tal estabelecimento, quedámo-nos pelo Restaurante Concorde para almoçar, tendo sido travado o seguinte diálogo com o empregado:
- Posso comer a sopa de legumes?
- Eh, eh, eh. Isso é que não. Já não tem sopa, não tem nada…
- E como é o bife à Concorde?
- Eh, eh, eh, o bife à Concorde… Pois o bife à Concorde…
- E traz ovo?
- Eh, eh, eh. Há-de trazer, pois há-de trazer…
- Então trago-o bem passado, se faz favor…

Se passarem no Chimoio, optem pelo gelado de morango, é o que eu lhes digo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito boa esta descrição, obrigada por nos levar tão longe.
Beijinhos

Anónimo disse...

Apesar de atrasada na leitura, regalei-me na tua descrição da Beira, e eu, que como tu apenas conheci Moçambique depois da independência, sempre dei por mim a imaginar como devia ser alegre e calma a vida de tantos portugueses que lá viveram antes da 1975. Bjs MiHl

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