A exposição no MNAA(1), com
título hispânico para intensificar o sentido denso das imagens vindas de
Espanha -- «Cuerpos de Dolor, a imagem
do sagrado na escultura espanhola (1500-1750)», esteve em Lisboa até 25 de
Março. Apesar de as c. de 30 peças já estarem a ser empacotadas para o regresso
a casa, como Valladolid(2) está relativamente perto, vale a pena lembrar a
qualidade das obras expostas em Arte Antiga, até porque são uma pequena amostra
do acervo guardado no Museu conhecido
pelo Prado da escultura espanhola.
«CUERPOS DE DOLOR» remete para o sofrimento espiritual, com enorme
envolvimento e entrega da pessoa, num certo arrebatamento cheio de salero (bem à espanhola), difícil de
transpor para a lusofonia. De facto, o termo «dor» carrega uma conotação mais
passiva e pode até arrastar alguma tristeza, que se quadra pouco com a
galhardia sugerida por «dolor».
Cronologicamente, a
exposição começava nos primórdios do Renascimento, ainda com traços goticistas,
a incluir peças esculpidas por um discípulo de Michelangelo, e avançava pelo barroco
adentro até ao rococó, seguindo-se o classicismo setecentista. Vários dos grandes mestres de Espanha estavam ali
representados: Berruguete, Juan de Juni, Pompeo Leoni, Gregorio Fernández,
Alonso Cano, Pedro de Mena, Pedro de Sierra ou Salzillo.
A expressividade das
esculturas é lapidarmente assinalada por Filipe I, citado na mostra do MNAA.
Quando passou a reinar em Portugal, após 1560, fez uma visita ao Jerónimos,
onde se deparou com uma série destas imagens. Ficou de tal forma impressionado,
que teve o seguinte desabafo, misturando o português e o castelhano (note-se
que era filho de mãe portuguesa): «Parece
que hablan, só falta falarem». De facto, a veracidade daquelas peças –
de um cromatismo pujante – parecem insufladas de vida.
Uma figura a fazer par com outro soldado
igualmente portentoso,
ao estilo de Michelangelo, que integravam um
conjunto gigantesco,
de c.15m de altura, onde estas imponentes
peças mal seriam visíveis.
Impressionante o rigor escultórico de obras
situadas no topo, bem longe da vista.
Um dos aspectos marcantes da mostra é
a complementariedade entre o trabalho de escultura e a minúcia da pintura que
cobre cada peça, conferindo-lhes um realismo… que só falta emitirem som. À sua
maneira, falam-nos (qual filme mudo) da
sua época e de modas antigas mas, sobretudo, das convicções profundas, das
crenças e anseios interiores de uma geração remota, cujo frémito espiritual nos
chega com uma frescura incrível. Nesse sentido, surpreende-nos a sua aptidão
comunicativa, capaz de desvelar os movimentos anímicos de séculos passados.
Acabamos por reconhecer ali a humanidade de todos os tempos, apesar das
exteriorizações bastante datadas.
O verdugo pertencente a um conjunto
muito vasto de um dos passos da Via Sacra (tinha de ser transportado por 60
homens), mostrado ao povo nas procissões da Semana Santa, evidencia os traços cruéis
dos sanguinários (hooligans e afins)
de qualquer período da história. As diversidades de guarda-roupa em nada escondem
a sua universalidade, enquanto exemplar de uma atitude predadora, infelizmente
mais comum do que seria desejável.
A mulher austera que personifica Sant’Ana
a segurar o livro por onde Nossa Senhora aprende a ler, denota aquela firmeza conquistada
a pulso, típica de personalidades frágeis, angustiadas, medrosas, que tendem a
refugiar-se numa certa dureza, por razões defensivas. Alguém observava com
humor que esta Sant’Ana seria bem mais a sogra de S.José do que a mãe da Virgem!
Para se avaliar melhor este desvio,
basta lembrar a Sant’Ana de Leonardo Da Vinci, que é hoje a coqueluche do
Louvre após um longo restauro. Essa sim, emana a doçura suave da avó do Bebé de
Belém. Na Sant’Ana que visitou Lisboa convém realçar a riqueza invulgar na
diferenciação das várias texturas: entre a capa de tecido grosso, a gaze
finíssima junto ao rosto da imagem e a pele enrugada de uma senhora de provecta
idade:
Sant’Ana da exposição do MNAA
Virgem, o Menino e Sant’Ana
com o cordeiro, de Leonardo da Vinci
A imagem do homem de modos serenos e
profundos, impressos no rosto de um dos santos do deserto (creio que Sto. Antão,
já na parte final do circuito expositivo), é o resultado de uma maturidade
forjada no silêncio abnegado e humilde, que deixa marcas indeléveis no ser
humano.
A candura heróica e muito nobre do rosto que foi capa da
exposição, revela a coragem subtil de quem não se deixou endurecer pelas
lágrimas, nem vacilou face às dificuldades que lhe calharam em sorte. Corresponde
a uma versão bem interessante da Virgem do Calvário, de uma infinita bondade e
grandeza de carácter, sem a mais leve réstia de raiva contra os algozes de
Cristo. Vemo-la totalmente imersa na dor do Filho, como que a antever o momento
maior que vive na Cruz ao aceitar a épica
missão de estender a sua maternidade a todos os homens! De uma generosidade
sobre-humana.
Virgem das Dores (detalhe) José de Mora
(1642-1724) C. 1671
Madeira policromada (Colecção do conde de Güell),
1985 Museo Nac. Escultura, Valhadolid
Também alguns dos sinais exteriores,
como a roupagem ou os símbolos empunhados pelas figuras, ampliam o impacto de toda
aquela dramaticidade em 3D. Um exemplo disso é o manto encarniçado do portentoso
Ecce Homo, a redundar num epicentro da entrega de Deus em favor dos homens.
Aquele manto de cor flamejante é, simultaneamente, a memória do sangue
derramado por nós e do nível sublime da realeza de Jesus, sem paralelo com os
reis da terra. Vale a pena perceber que o efeito lustroso do tom se obtém por
uma camada de ouro aplicada sobre uma base em vermelhão intenso, ao qual a
cobertura dourada é depois parcialmente retirada, deixando vestígios
metalizados na tonalidade final.
Como observava o texto do MNAA: é (foi) uma exposição inquietante, a ultrapassar as fronteiras da estética,
que nos revela a humanidade plasmada em obras de arte. Talvez os artistas ali
tenham deixado as vibrações mais fundas da sua alma, cunhando as peças com o
próprio sagrado que habita cada ser humano. Um dom acessível a quantos se
aventuram pelo universo infinito do sagrado! Um arrojo psicológico que se
enquadra espantosamente no crescimento a que a Quaresma convida…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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Tel: +351 21 3912815
« “Cuerpos de Dolor” inscreve-se numa nova
dinâmica, à qual pertencem a recente exposição “Confrontos. Bosch e o Seu
Círculo” – que possibilitou ao Museu Nacional de Arte Antiga acolher duas
importantes obras do Museu Groningen (Bruges, Bélgica) –, a transposição para a
National Gallery of Art (Washington, EUA) da mostra “A Invenção da Glória. D.
Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana”, ou a circulação, primeiro para o próprio
Museo Nacional de Escultura e, em seguida, para o não menos prestigioso Museo
de Bellas Artes de Valencia (2 Novembro de 2011 - 8 Janeiro 2012), da
exposição “Primitivos. El Siglo Dorado de la Pintura Portuguesa.»
(2) O Museu de Valladolid congrega
a maior colecção de escultura de Espanha, albergada num conjunto de edifícios
com enorme valor histórico: o Palácio de Villena, a Casa del Sol e a Igreja de
San Benito el Viejo.