08 junho 2012

Moleskine


Junto segue parte de uma carta que recebi ontem. Curiosamente, manuscrita e em papel, o que é uma raridade nos dias que correm em que caligrafia é apenas uma palavra no dicionário, as abreviaturas tomaram foros de domínio, as cartas que se devolvem vão todas num pen que anuncia uma oficina de automóveis...

(...) e acabámos por almoçar em casa deles. Há muito tempo que não os via, talvez há quase cinco ou seis anos. Mas deixa-me contar-te como foi reencontrá-los, relembrar que fizemos a adolescência juntos, que vivemos uma época em que o apuro físico - na sua componente estética - era um tema masculinamente inexistente, o dinheiro contava pouco e não era factor de discriminação. Tínhamos todos a mesma mesada, mesmo que soubéssemos que a de alguns era maior do que a de outros. Andávamos muito a pé porque os carros eram um luxo para a nossa idade, não porque fizesse bem ao aparelho circulatório. Tínhamos pormenores de educação que são já recordação de velhos caducos. Eles ainda fizeram parte dessa vida. E a nostalgia, sabes...

Habitam agora uma casa fantástica, com uma vista deslumbrante e desafogada, rodeada de uma vegetação que os protege dos olhares vizinhos. Vivem sozinhos, porque os filhos saíram de casa, ou nesta diáspora profissional a que são condenados, ou porque encetaram uma conjugalidade moderna pré-casamento. Pelas paredes têm quadros modernos, taças de torneios de ténis, bibelôs bonitos. Uma casa simpática e elegante, sem ser pretensiosa.

Percebeu-se, pela conversa e por todo o enquadramento, que se tornaram numa gente muito dada a actividade física, a um estilo de vida que a modernidade considera saudável, sem sedentarismos perigosos nem alimentação excessiva. Enquanto almoçávamos uma salada frugal – de facto, muito frugal – acompanhada por sumos naturais, um casal de Azawakh rondava por ali, sossegados e elegantes. Não sei se sabes, mas são cães muito magros, esbeltos, altos, provenientes, dizem, do Mali, e que há milhares de anos acompanham as tribos nómadas. Até na raça dos animais - ou melhor, na sua compleição física - se percebem as opções...

Confesso que cheguei a sentir-me quase mal, no incómodo de um excesso ponderal que, não me envergonhando ao ponto da clausura, destoa de um casal que fala muito de magreza, de desporto, de exercício, de calorias e de toxinas, da gordura inestética das pessoas. De facto, estão ambos muito bem, mas tudo me parecia um exagero, como se os gordos fossem os judeus do século XXI, e só não precisassem de uma estrela no peito porque a condição de proscritos se vê a olho nu.

Acabado o almoço ficámos por ali na relva, a conversar, a lembrar o passado, a percorrer um sem-fim de temas inócuos e ligeiros. Os cães rondavam-nos, pedindo festas, socializando, naquela magreza elegante de quem está habituado ao sossego do deserto e ao afecto do tuaregue. Os donos da casa, visivelmente satisfeitos, sorriam um para o outro, miravam-se nos olhos ou através das imagens reflectidas nos vidros das janelas, passando um mão pelo estômago para garantir, pelo tacto, a ausência de proeminências feias e danosas da saúde. Até te digo isto: entre eles e os Azawakh quase se pressentia uma competição pelo corpo mais esguio, mais gracioso, com menor percentagem de gordura.

A meio da tarde quiz despedir-me e fui à procura da dona da casa. Confesso-te que, no meu íntimo mais perverso, queria encontrá-la na cozinha, escondida na penumbra de uma despensa a devorar um éclair de chocolate pecaminoso, plenamente consciente de uma falha que mereceria apedrejamento. Tenho de reconhecer que não estava... Tudo na cozinha tinha um ar de zero calorias – até a mobília, digo-te...

Ouvi um ruído longínquo nas traseiras da casa e acabei por ir procurá-la, percorrendo uma espécie de labirinto elegante de cedros. Descortinei-a junto a um canil que me pareceu quase secreto de tão escondido, onde estava um São Bernardo enorme, volumoso, na sua gordura afável e bonacheirona. Ela, a nossa amiga, dava-lhe ração: quantidades generosas, às mãos cheias, para delícia do animal. Depois abraçou-o e balbuciou-lhe frases ternurentas. Recolhi-me por pudor, mas estou certo de a ter visto chorar mansamente. Ou talvez fosse apenas a água a crescer-lhe na boca...

JdB 

5 comentários:

Anónimo disse...

Ou se calhar também comeu biscoitos do cão e ficou feliz...conheço quem o fizesse. Bom fim de semana meu querido JdB. TdB

Ana CC disse...

Há sempre um gordo dentro de nós. Uma batata frita, uma alheira bem condimentada quer nos une e fortalece.
Em não tendo gorduras explícitas, aposto que, em dias de controlo e maior sofrimento, se inveja aquele pneuzito roliço e apetitoso que até pede um afago.
Vem aí o fim de semana. Proponho uma salada a acompanhar um belo bodião grelhado e um gelado de framboesa para rematar.

Anónimo disse...

Ou é de mim, ou aqui anda dedo do dono deste honrado estabelecimento!?
Abr
fq

Anónimo disse...

Ele há pessoas que escrevem mesmo bem! Eu diria que esta carta era escrita pelo JdB. Mas se o dono do estabelecimento diz que recebeu este texto em forma de carta, quem sou eu para imaginar outra coisa? Achei o final triste... pcp

arit netoj disse...

Muito Bom!
Escrita saborosa... Só por si alimenta.
Beijinhos

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