São
Paulo, por Teixeira de Pascoaes
A desilusão é um
movimento no sentido da matéria, como a ilusão é um movimento no sentido
espiritual. O Cosmos é Deus desiludido, em pleno Vácuo. A transição da ilusão
para a desilusão marca a origem mortal das cousas: formas e formas tumulares.
Por isso, o sentimento religioso é sempre uma tentativa de regresso à Ilusão
divina originária, a antemanhã da Vida, em que se ouve apenas um canto de ave,
no silêncio; o único silêncio que nos mostra o oiro de que é feito.
Os dois apóstolos
continuam a marcha, pela via egnaciana, colando
entre as ondas do Strimon e as ondulações do Pangeu, igualmente azuis, mas
paradas no seu recorte inalterável. Paulo, como Silas, vai a pé, curvado, com
os olhos inflamados de luz, e o fantasma de Estêvão, ao seu lado. Leva um fruto
na mão, para o comer. Oferece-o ao primeiro mendigo. Nada lhe pertence da
terra, porque a terra não lhe interessa. E só o que nos interessa nos pertence.
A Terra é dos bichos, como a Lua é dos lunáticos. todos os tolos reinam
naquelas planícies desertas, onde cai a sombra de altíssimas pirâmides, sem a
mais leve mistura de claridade, dum negro absoluto e recortado, Lembra a sombra
de Caronte, sobre a desvairada Antioquia. Também o céu é uma propriedade dos
místicos; aquele céu azul em que certas almas se desdobram indefinidamente,
numa ansiedade que é um bater de asas brancas, ascendendo para Deus.
Paulo é deste mundo interior que
envolve o mundo e os outros mundos, e ninguém sabe onde ele acaba. Vê para
dentro, ouve para dentro, pois, dentro de si, é que ele descobre tudo, - o
Infinito. A nossa memória é universal, e excede o próprio Universo, quando
aliada à fantasia criadora.
(...)
Mas há também os
que sonham por natura. Felizes, é como se fossem desgraçados; fartos de tudo, é
como se tudo lhes faltasse. E há os que morrem de fome, num banquete. E só
estes conheceram a fome, na verdade.
(...)
Paulo não desanima.
Oprimem-no, mas não o vencem. Ferem-no, mas não o matam. É um ser fantástico,
inatingível, um ser nocturno, que possue o poder nocturno de criar a luz.
Sofre, para alumiar.
A vida de Paulo,
como a vida das mães, é um perpétuo drama, para que existam novas almas. A
nossa alma é gerada em outra, que nos ame e sofra por nossa causa. Paulo,
amando os seus semelhantes e por eles padecendo, transfigura-os idealmente,
converte-os em novas almas. A dor é que gera as almas, integrando-as na
existência. É sob uma força angustiosa, condensadora, que um sonho se
transforma num objecto dos sentidos, como este penedo ou aquela árvore. Paulo
sofre, para que o seu sonho seja realidade. Sofre, resplandece! Mas há pessoas
que não suportam a luz alheia e atiram pedras ao sol.
Lá vai, sozinho,
batido da tempestade, perseguido por espectros: o ódio, o remorso e um vulto de
mulher em delírio, que é a sua paixão por Jesus Cristo ou por todos os
padecentes, outras tantas imagens dele mesmo. Ouve palavras que o injuriam, vê
figuras de pesadelo que lhe mostram os dentes e as unhas, e sente inefável
alegria. Sente-se viver em Jesus Cristo. É o amante nos seios da bem amada, que
a sombra deste homem projecta-se nos caminhos da Grécia antiga e nas ruelas da
Ávila medieva. Sofre, resplandece. Saltam-lhe as lágrimas dos olhos, abrasadas
de alegria! A alegria alvora da sua angústia, dos últimos cumes da sua
angústia, atormentados de subir. Mas deles, cresce um alvor espiritualizado,
aurora espiritualizada, a graça de Deus, precursora do sol de Deus.
Caminha, sozinho,
alegre e triste, envolto na sombra doirada do anjo negro, que lhe crava um
espinho, na carne, em certas horas. Ele mesmo é o anjo do crepúsculo, voando
entre a noite e o dia, nesse clarão da distância a arder. Este anjo é talvez a
nossa fantasia, a repetir o nosso ser, em outro plano da existência, apenas
pressentido. Somos nós, á nossa frente, livres, em demanda do futuro.
(...)
Ei-lo, de pé,
perante gente culta que estranha a sua figura miserável e sublime, ridícula e
sublime. Se o ridículo está perto do sublime, é natural que se misturem e
formem um rosto caprichoso e inverosímil, como o deste pobre judeu, que lembra
o alforge dum mendigo, cheio de estrelas. É um rosto encovado e amarelo, -
incandescente, - de místico espanhol. A Ibéria é outra Judeia, outro deserto
febril, onde o esqueleto do Rocinante, feito de pedra do Sinai, domina toda a
planura solitária. Dom Quixote é apenas um sonho do Rocinante, que a fome
transformou em pesadelo ou fardo pesado.
(...)
Se a presença de
Deus se revela, de algum modo, é no sentimento da Esperança. É de todos os
nossos sentimentos, o mais exterior a nós, o que de mais longe vem. E nada
perde da sua frescura e limpidez, na infinita distância percorrida. Parece que
o bebemos na própria fonte.
(...)
Teixeira
de Pascoaes
in São Paulo (cap. IX), Assírio &
Alvim
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