23 fevereiro 2015

Vai um gin do Peter’s?

Até ao final de Fevereiro, corre na Cinemateca Portuguesa(1) um ciclo dedicado ao grande cineasta francês que atravessou o século XX: Robert Bresson (1901-1999), conhecido como o poeta do rigor. Figura de referência no meio intelectual parisiense, distinguindo-se na literatura, pintura e, mais tarde, na Sétima Arte, revelou-se também um exemplo de civismo e de coragem política, precisamente no período mais adverso do século XX francês: durante a ocupação nazi. De estilo sóbrio, mas íntegro e desassombrado, as suas posições claras contra as tiranias de Hitler valeram-lhe um ano num campo de prisioneiros, na Alemanha. 


Realizador do subtil, capaz de filmar a alma humana, Bresson tem filmes extraordinários que valem sobretudo pela sua perspectiva invulgarmente acutilante, profunda e original sobre a realidade. Apaixonado pela vida, procurava captá-la em estado puro e intocado, buscando a essência das coisas. Por isso, o ciclo se intitula «Robert Bresson: uma aventura interior». As suas experiências cinematográficas privilegiaram a expressão autêntica e primordial. A ponto de ter desistido dos actores profissionais, substituindo-os por amadores, completamente genuínos e ainda não formatados em academias. Chamou-lhes “modelos”, numa acepção que nada tem a ver com o termo, entretanto, vulgarizado pela alta costura. 

Um dos exemplos mais eloquentes da riqueza especialíssima do seu olhar corresponde também a uma das suas obras-primas: «O PROCESSO DE JOANA D’ARCO», rodado em 1962. É impressionante a forma isenta com que tentou repor o julgamento que condenou à fogueira uma das heroínas mais aclamadas da história de França. Lançando-se numa abordagem maximamente depurada, cinge-se aos diálogos que o tribunal da época registou. Só as palavras proferidas em 1431 são consentidas neste filme, onde não há um único excesso, nenhuma exaltação ou juízo pessoal sobre alguma das personagens, nem mesmo naqueles momentos mais tentadores, onde parece tão apetecível sugerir uma crítica. E se o heroísmo solitário de Joana se presta, injustamente acusada de heresia, ela que fora o expoente da fé, vivendo-a até às últimas consequências. Igual para a perversidade dos seus algozes, atolados em mentiras e calúnias, das mesquinhas às mais aberrantes e descaradas. A serenidade crua da câmara de Bresson em nada diminuem aquele episódio. Antes faz sobressair a autoridade dos factos, permitindo-nos viajar no tempo e ser testemunhas directas de um acontecimento que marcou a posteridade.  
   
Título original: «LE PROCÈS DE JEANNE D’ARC».
Elenco: Florence Carrez, Jean-Claude Fourneau, Roger Honorat.
Realizado em França, em 1962; duração: 64 min. Filme também disponível em dvd.

É interessante ser um realizador nórdico, conhecido pela sua austeridade – Carl Dreyer (1889-1968) – a filmar de Joana d’Arco uma Paixão, assumidamente sacrificial e épica. Em contraponto, Bresson, admirador indefectível de Joana como qualquer francês, fica-se por dar voz aos depoimentos reais, percebendo que o rigor histórico era a melhor defesa de la Pucelle d’Orléans. Sobre ela, declarou: «Vejo-a como um ser superior. Mais do que os milagres, Joana convence-nos da existência desse mundo (espiritual) em que penetrava com prodigiosa facilidade».
   
É na estátua equestre dourada e vibrante, perto do Louvre à porta
do palácio real, que a corajosa guerreira-amazona continua a brilhar,
na pose de galhardia e bravura por que se celebrizou.

Segue o apontamento da Cinemateca sobre os filmes em cartaz, durante o ciclo em curso:

«O Ciclo (…) começa precisamente pelo último filme de Bresson, o décimo quarto que realizou, L'ARGENT (1983), em que Bresson manifesta o mais profundo desprezo pelo materialismo da sociedade contemporânea, para recuar até à sua primeira obra, curta-metragem de inspiração burlesca realizada em 1934, que caricaturava a Europa de então, mas que se afastava ainda das qualidades principais que viriam a caracterizar o seu cinema.
Com formação em filosofia e em línguas clássicas, a descoberta do cinema por Bresson é também posterior à prática da pintura, remontando ao final dos anos vinte. LES ANGES DU PÉCHÉ, a sua primeira longa-metragem, foi concluída em 1944, já depois de Bresson ter estado mais de um ano preso num campo alemão. LES DAMES DU BOIS DE BOULOGNE (1945), o trabalho seguinte, ainda envolveria atores profissionais, por contraposição aos famosos "modelos" a que Bresson iria recorrer daí em diante, numa procura de uma maior complexidade e de um movimento de interiorização. Nos anos seguintes, Bresson realizou várias das suas obras-primas, como JOURNAL D’UN CURÉ DE CAMPAGNE (1951), UN CONDAMNÉ À MORT S’EST ECHAPPÉ (1956), PICKPOCKET (1959). O primeiro foi o filme que o consagrou junto da crítica e é uma obra essencial na procura de um "realismo interior" e na colocação em prática da sua estética jansenista em que o progressivo despojamento surge associado a uma gravidade formal. UN CONDAMNÉ À MORT S’EST ECHAPPÉ prossegue a depuração de JOURNAL, bem como a sua abordagem minimalista que assenta na rarefação, na fragmentação e na recombinação de elementos através da montagem, procedimentos que atingiriam o seu máximo expoente em PICKPOCKET (1959), o belíssimo filme centrado nos gestos de um carteirista, que o cineasta regista e recompõe com o seu cinematógrafo, a câmara-bisturi com que disseca a realidade no sentido de uma progressiva abstração. Uma obra portentosa onde não há lugar a juízos morais, mas a acontecimentos e sensações que resultam da aproximação de diferentes sons e imagens, num processo em que, como diria o próprio Bresson, «surgem não apenas relações novas, mas uma nova forma de rearticular e ajustar». Um mesmo conjunto de procedimentos "analíticos" transparece em LE PROCÈS DE JEANNE D’ARC (1962), que centrando-se nas atas do referido processo, sucede à grandiosa «paixão» de Dreyer, outro grande mestre (a par de Bresson e de Ozu) do que que Paul Schrader caraterizou como um «estilo transcendental no cinema» e Susan Sontag classificaria como um «estilo espiritual». No sublime AU HASARD BALTHAZAR… (1966), a questão da «Graça», tema central em toda a obra de Bresson, bem como a sua exploração do carácter trágico da vida e da força do acaso, ganham contornos efabulatórios, uma vez que a "peregrinação exemplar" é protagonizada por um burro, submetido a um destino repleto de maldade humana. Destino igualmente triste terá Mouchette, num filme que em Portugal ficou conhecido por AMOR E MORTE (1967), ou as protagonistas de UNE FEMME DOUCE (1969) e QUATRE NUITS D’UN RÊVEUR (1971), duas das mais belas adaptações de Dostoievski ao cinema e os primeiros trabalhos de Bresson a cores. Todos eles, filmes belíssimos, ao mesmo tempo que profundamente desesperados. LANCELOT DU LAC (1974) recupera a dimensão histórica de LE PROCÈS DE JEANNE D’ARC, evitando todo o pitoresco medieval habitualmente associado às histórias dos Cavaleiros da Távola Redonda, em prol da construção de um universo em que permanece a fragmentação e a desarticulação dos corpos dos filmes anteriores. Dois anos depois Bresson realizaria LE DIABLE PROBABLEMENT, a sua penúltima obra, que é talvez o mais negro e explícito de todos os seus filmes na sua visão pessimista sobre a evolução da sociedade. Uma das mais incompreendidas obras de Bresson que assenta na força das elipses, onde tudo se passa nos intervalos entre as palavras e as coisas.
Como registava nas suas Notas sobre o Cinematógrafo, um dos livros mais fascinantes alguma vez escritos sobre cinema, «É necessário que uma imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem transformação". Ou, mais à frente, "Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É encontrar entre as pessoas e as coisas que existem, e enquanto existem, relações novas

Numa das poucas casas que ainda subsistem no centro de Lisboa, a Cinemateca reparte-se por dois andares: o térreo com as 2 salas de cinema, e o de cima onde está uma livraria com boa selecção de dvds e livros, salas para exposições temporárias e um restaurante revestido a madeiras quentes e a estender-se para um terraço fantástico, ideal para os dias de sol, que ainda são bastantes, no clima ameno da capital.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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Na rua Barata Salgueiro, em frente a Belas Artes.

Terraço do restaurante 39 Degraus

1 comentário:

Anónimo disse...

O cinema de Bresson é um cinema exigente, sem preocupação em criar "facilidades" a quem o vê. Mas é uma experiência daquelas que, como antigamente se dizia, "muda vidas". Gostei muito de reencontrar aqui, logo pela manhã, a evocação de alguém que criou um mundo só seu que toca o(s) outro(s), de forma, por vezes, fulminante - talvez a grande definição do que é ser-se "criador".

gi.

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