30 junho 2018

Pensamentos Impensados

Cuidados
- Dormiste bem esta noite?
- Não sei, estava a dormir.

No barbeiro
Veja se decora o corte da minha barba, que eu não duro sempre.

Avisos à navegação
Vejo um anúncio que diz próximo do metro. Serão 99 centímetros?

Pontualidades
Quando Jesus Cristo disse a Sua Mãe, Mulher ainda não chegou a minha hora, não sabia que os relógios tinham adiantado uma hora.

Predestinação
O país com maior índice de alcoolismo de ser a Pielo-Rússia.

Maus comportamentos
Quando Deus criou Adão já sabia que ele ia desobedecer; alguma fuga de informação...

SdB (I)

29 junho 2018

Da cidadania e da existência


Passava ontem pelos corredores de um hospital com valência de maternidade quando me defrontei com uma placa que indicava um serviço. O nome do serviço? Simples: nascer cidadão. Poucas coisas me fizeram lembrar tanto a revolução francesa como o singelo dístico com duas palavrinhas apenas. Nada de liberdade, igualdade, fraternidade; nada de guilhotinas ou cabeças decepadas, vestígios de brioches com que se devia alimentar a população se não houvesse pão para o efeito. Apenas, e tão somente, nascer cidadão.  Não se nasce bebé, não se nasce princesa ou filho querido. Nasce-se cidadão, apesar do cavalo de baloiço; nasce-se cidadão, apesar da cara de bebé anúncio de papas. 

Pedi para me tirarem uma fotografia ao dístico: fizeram melhor, tiraram a este poster onde ressaltam várias coisas: a indicação dos dois ministérios que tutelam estas actividades - justiça e trabalho e segurança social; a indicação do simplex, esse programa de eficiência fabril ao serviço do Estado e, claro está, dos cidadãos. Porém, uma frase chamou-me à atenção, e repito uma afirmação antiga, como se eu levasse com um tijolo pelas ventas. A frase é simples e gramaticalmente correcta: para existir é preciso ter nome. É o nome que nos dá existência, e o número de contribuinte, que é já já a seguir, é a impressão digital, não do amor, da ternura, da preocupação pelo presente e futuro daquele ser indefeso, mas da máquina fiscal. 

O problema do Estado - e problema seguramente irresolúvel - é o facto de ser uma engenharia processual expurgada de afecto, de calor humano, de relacionamento social. O Estado vive de normas de execução permanente, de procedimentos, de tentativas de eficácia e de controlo. Poucas frases são tão frias como nascer cidadão ou para existir é preciso ter nome. Agora, que dá jeito ter estes serviços nas maternidades, dá. O Estado não tem - nem saberia como - de regozijar-se porque nasce mais um ser humano; limita-se a acrescentar um input num programa de estatísticas, a atribuir um número que perseguirá o agora cidadão até ao fim da vida, a requerer um nome para dar existência a um bebé que, na quase totalidade dos casos, é fruto do amor de duas pessoas que vêm naquele ser a sua continuidade e o seu enlevo, não uma linha, um número, uma influência num gráfico.

Os nomes que se dão a quem nasce são a forma como nos referiremos àquele bebé, depois rapaz, depois adulto, ou como o chamaremos para nos abraçar, dar a mão e sentido a uma vida. Existe por si, como lugar geométrico do amor; tem nome, não para existir (porque existe desde o momento em que foi concebido, e desde o início dos tempos, como parte do plano de Deus) mas para se distinguir dos outros, mesmo daqueles que têm o mesmo nome dele. A cidadania, por mais importante que seja, é posterior ao amor. O Estado é que não sabe, nem pode, falar disso. Falo eu, para lembrar o dia 27 de Junho, dia em que o destino e a eternidade sorriram de novo para mim. E o outro sorriso, o humano, virá depois. Já não falta tudo.

JdB 


28 junho 2018

Textos dos dias que correm

O Coração é o Seu Amigo

O verdadeiro problema reside na mente, porque a mente é formada pela sociedade humana e especialmente projectada para nos manter escravizados. O corpo tem uma beleza própria. Ainda faz parte das árvores e do oceano, das montanhas e das estrelas. Não foi contaminado pela sociedade nem foi envenenado pelas igrejas, pelas religiões e pelos padres. Mas a mente foi completamente condicionada e distorcida ao receber ideias que são totalmente falsas. A nossa mente funciona quase como uma máscara que esconde o nosso verdadeiro rosto.
A arte da meditação consiste em transcender a mente, e o Oriente dedicou toda a sua inteligência e todo o seu génio durante quase dez mil anos a um único objectivo: descobrir a maneira de transcender a mente e os seus condicionamentos. Do esforço de dez mil anos resultou o aperfeiçoamento do método da meditação.
Em poucas palavras, meditação significa olhar para a mente, observar a mente. Tente examinar a mente, olhando em silêncio para ela - sem explicações, sem apreciações, sem condenações, sem qualquer julgamento, a favor ou contra -, observe-a apenas, como se não tivesse nada a ver com ela. Aprecie apenas o tráfego que vai na mente. E o milagre da meditação faz com que, só por ser observada, esta vá lentamente desaparecendo.
No momento em que a mente desaparece, você alcança a última porta, que é muito frágil e que também não está contaminada pela sociedade: o seu coração. Na verdade, o seu coração cede-lhe imediatamente a passagem. Nunca o detém, ele está quase sempre preparado para a sua chegada e abrirá a porta que dá acesso ao ser. O coração é seu amigo.

Osho, in 'Acreditar no Impossível'

***

Meditação e Opinião

Em matéria de arte, de amor ou de ideias creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual que com rigor o seja afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar esses resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos. (...) Um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstracção no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível.

Ortega y Gasset, in 'O Que é a Filosofia?'

27 junho 2018

Ai xico leva-me à igreja *

tinha uma chamada não atendida, feita meia hora antes. o meu amor por este homem dita que onde quer que eu esteja, à hora que for, não o deixe sem resposta. ligo. ligaste-me. sim liguei. onde andas? estou na Praça das Flores. a voz tinha o tom pouco sereno. mas onde? na rua? sim, sim. que foi? estás aflito. tive aqui uma chatice. ó pá deixa-me, já te disse, deixa-me em paz! gritou. xico, xico, o que é? vou-te buscar. está bem. e mais gritou. não fiques parado. vai andando à rua de são bento. rua de são marçal 106. e desligou. voei ao Príncipe Real. 106, 106, lá em baixo.106. estaciono a quebrar a esquina. tudo calmo. 106, a porta é branca, fechada, campainha iluminada com autocolante azul "fumadores". toco. ao tlin-tlão de consultório médico a porta abre, um homem vestido de saloia e lenço na cabeça, beiças escandalosamente escarlates, abre um sorriso e diz-me boa noite! venho só à procura de um amigo. entre. hesito e desvia-se para eu ver. mirono a sala minúscula. pode entrar, insiste. o meu amigo sorri ao balcão. faço sinal. como é? a saloia percebe e graceja – entre, assim já não sou a única mulher.

eis-me num bar gay, com quinze tipos, se tanto. recorro ao olho do meio, que vê tudo sem olhar. controlo o movimento nas minhas costas e estabeleço uma inabalável descontracção. então pá? pregaste-me um susto do caraças. que estupidez, desculpa. um chato embicou comigo. telefonaste na hora H. e quê? e nada. safei-me. que bebes? um fino. e como é? estou bem aqui? claro. são meus amigos. vou-te apresentar. respeitosa e alegremente a saloia espetou-me dois beijos e o barman estendeu-me um risonho bacalhau. senti os quinze olhares cravados em mim aquietarem-se e a sensação de perigo dissipar-se. quando dou de caras com Napoleão Bonarparte em tamanho XXL fico fascinada. penso no tamanho, no desperdício, e realizo. qual bando de travestis má língua... é Carnaval. porra xico, se tens dito vinha de Josefina. deixa lá. voltamos segunda. levo o xico, entro. já viste o tapete novo do prédio? não é bestial? foi o advogado do 1º que mandou pôr. gosta de espionagem. sabes quem é. sei. mandou encerar as escadas, pintar a entrada. um amor. e nem queiras saber a finesse que corrupia aqui toda a semana. subimos, ceamos e leu-me um poema da Manuela de Freitas muito bonito e muito revolucionário. até amanhã xico. a missa é ao meio dia? é, vê se vens, o coro é maravilhoso. uma beleza.


DaLheGas

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* publicado originalmente em 28.02.2009

26 junho 2018

Duas Últimas

Para mim o campeonato do mundo de futebol resume-se aos jogos de Portugal e, muito talvez, caso Portugal seja eliminado brevemente, à final. No entanto, para que esse muito talvez se efective,  a final - caso não seja protagonizada também pela pátria amada - tem de ter alguém que seja da minha preferência clara. Como me posicionarei num Croácia - México? Ou num Rússia - Arábia Saudita (se é que ainda pode acontecer...). Para ver um jogo de futebol tenho de torcer claramente por uma das partes, porque a ideia do desporto pelo desporto parece-me uma ligeira vacuidade neste caso. Ora, gostei muito de Dubrownik e a Croácia é Europa; mas o México  tem boa música... Assim sendo, entre os dois países, mon coeur balance...  O argumento seria replicável a outros países, mas fico-me por aqui.

Hoje tenho demasiadas actividades para me interessar pela ressaca do Irão - Portugal. Pouparei frases tão criativas como jogo impróprio para cardíacos ou este esplendor de criatividade e imbecilidade que ensinaram aos jogadores, logo depois de lhes terem explicado o significado de egrégios avós:  a ideia de aprender a sofrer. Ouvi a frase dita várias vezes por jogadores depois de jogos que só não perdemos por sorte, ou manifesta azelhice do adversário.  Espanha jogou connosco à rabia, o Irão deu cabelos brancos ao Fernando Santos. Eu não aprendi a sofrer - nem sei muito bem como isso se processa no decorrer de um jogo.

Como nota de rodapé, expresso a minha alegria pela destituição de Bruno de Carvalho, por números que me parecem (quase) demolidores. Ver Bruno de Carvalho nos últimos meses era ver uma espécie de demência cega, uma aparente calma que escondia uma violência sem nexo. O Sporting não merecia Bruno de Carvalho, e eu, ao contrário dos jogadores da selecção, não quero aprender a sofrer.

Deixo-vos com música uruguaia, um género que teremos tempo de aprender até sábado, parece-me. Não sei quem são, não ouvi até ao fim, não afianço nada. Atirem-se e confiem. Ou aprendam a sofrer.

JdB




25 junho 2018

Confissão

Vi ontem de noite, sentado num sofá, o Trinitá, cowboy insolente, um clássico do meu tempo de menino (1970 / 1971). A confissão não é o facto de ter visto, mas o facto de ter gostado.

JdB


Pensamento Impensado

Adivinha

Omnipresidente é o menos
Aparecer é pra já
Os mundos já são pequenos
Mais mundos que ele aí está.

Dicas: Marcelo, Bruno de Carvalho, Trump.

SdB (I)

Vídeos dos dias que correm

24 junho 2018

Festa do Nascimento de S. João Baptista

EVANGELHO Lc 1, 57-66.80

Naquele tempo,
chegou a altura de Isabel ser mãe e deu à luz um filho.
Os seus vizinhos e parentes souberam
que o Senhor lhe tinha feito tão grande benefício
e congratularam-se com ela.
Oito dias depois, vieram circuncidar o menino
e queriam dar-lhe o nome do pai, Zacarias.
Mas a mãe interveio e disse:
«Não, Ele vai chamar-se João».
Disseram-lhe:
«Não há ninguém da tua família que tenha esse nome».
Perguntaram então ao pai, por meio de sinais,
como queria que o menino se chamasse.
O pai pediu uma tábua e escreveu:
«O seu nome é João».
Todos ficaram admirados.
Imediatamente se lhe abriu a boca e se lhe soltou a língua
e começou a falar, bendizendo a Deus.
Todos os vizinhos se encheram de temor
e por toda a região montanhosa da Judeia
se divulgaram estes factos.
Quantos os ouviam contar
guardavam-nos em seu coração e diziam:
«Quem virá a ser este menino?».
Na verdade, a mão do Senhor estava com ele.
O menino ia crescendo e o seu espírito fortalecia-se.
E foi habitar no deserto
até ao dia em que se manifestou a Israel.

23 junho 2018

Pensamentos Impensados

Paralelismo convergente
Se as Coreias chegarem a acordo, é um acordo sem paralelo.

Fotocliché
O cognome de Marcelo é Marcelfie.

Bulhas
Na Guerra dos 100 anos, quantos anos houve de compensação?

Contrastes
Água mole em pedra dura, dura enquanto não seca.

Novas dietas
Há alimentos que têm fósforo, haverá algum que tenha isqueiro?

Estados
Água mole é pedra dura...se fôr gelo.

Mezinhas
O melhor local para uma fábrica de pastilhas anti-ácido é em Santa Maroia da Azia.

Para tudo há remédio
Nunca pensou chegar em primeiro lugar, mas quando aconteceu conformou-se.

SdB (I)


22 junho 2018

Textos dos dias que correm *

(...)

Deixara de fumar há um ror de anos. Restavam-lhe agora os charutos, que apreciava sem regularidade nem sabedoria, para lhe matarem um gosto que iria consigo para a cova. Não bebia em excesso. O último desvario datava do início de uma idade mais adulta, quando fora protagonista de uma ressaca difícil e de uma vergonha que lhe ficara na memória. Não jogava descontroladamente, subjugado pela ilusão de vencer a casa ou de derrotar o cálculo de probabilidades. Jogava como era - seguro. Embora mais do que lhe permitiria a saúde e a estética, não comia obscenamente ou às escondidas, não mantinha locais reservados e secretos onde guardava iguarias pecaminosas. Tinha do sexo uma visão sossegada, não conseguindo desligar o corpo do coração, exigindo na cama prazer e sentimento em simultâneo. Nunca se drogara, nunca o ousara fazer. Quisera fumar ópio, confessava, mas porque tinha lido o Tintim e a ideia se instalara na mente fantasiosa ao passar os olhos pelo Lótus Azul.

Em bom rigor, não tinha tendência aparente para a adição nas suas formas mais corriqueiras: cigarros, comida, droga, jogo, mulheres, álcool. Era aparentemente um homem sem vícios. E no entanto, cedo percebera que talvez tivesse a dependência mais perigosa de todas, porque em certa medida lhe matava a simplicidade, a satisfação corriqueira, o inesperado que faz sorrir. No fundo, o seu vício era esse: não ter vícios. O seu vício consistia em percorrer a vida de uma forma obsessivamente determinada, circulando entre duas linhas imaginárias, paralelas, estreitas, que definiam o seu comportamento. O seu vício estava ali: não se afastar nunca da certeza, da regularidade, da normalidade estatística, do correcto e do comedimento.  Ironicamente, talvez o seu vício fosse a sua salvação. 

Não fumava, não bebia, não jogava. Viciara-se no equilíbrio, e a consequência dessa dependência era um voo de alma de amplitude quase nula.

(...)

Alberto Catarino Carvalho, in  Crónicas de uma Viagem à Beira (Edição do autor, 2008)

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* publicado originalmente  em 17.04.2013

21 junho 2018

Textos dos dias que correm

A Verdade é um Modo de Estarmos a Bem Connosco

Cada época, como cada idade da vida, tem o seu secreto e indizível e injustificável sentido de equilíbrio. Por ele sabemos o que está certo e errado, sensato e ridículo. E isto não é só visível no que é produto da emotividade. É visível mesmo na manifestação mais neutral como uma notícia ou um anúncio de jornal. Donde nasce esse equilíbrio? Que é que o constitui? O destrói? Porque é que se não rebentava a rir com os anúncios de há cento e tal anos?   (Rebentámos nós, aqui há uns meses, em casa dos Paixões, ao ler um jornal de 186...). Mas a razão deve ser a mesma por que se não rebentou a rir com a moda que há anos usámos, os livros ridículos que nos entusiasmaram, as anedotas com que rimos e de que devíamos apenas rir. O homem é, no corpo como no espírito, um equilíbrio de tensões. Só que as do espírito, mais do que as do corpo, se reorganizam com mais frequência. Equilibrado o espírito, mete-se-lhe uma ideia nova. Se não é expulsa, há nela a verdade. Porque a verdade é isso: a inclusão de seja o que for no nosso mecanismo sem que lhe rebente as estruturas. Ou: a coerência de seja o que for com o nosso equilíbrio espiritual. A verdade é um modo de estarmos a bem connosco. Mas é um mistério saber o que nos põe a bem ou a mal. Os anúncios de há cem anos eram ridículos porque sim. Nos meus escritos de há anos, mesmo nos ensaios, aquilo de que me separo não são muitas vezes as ideias, a argumentação, mas um certo modo de se olhar para os argumentos, os problemas, um certo nível humano de encarar as coisas. Leio um ensaio de há vinte anos e sinto que eu tinha menos vinte anos. Há um nível etário para a mesma verdade nos existir. A verdade de que falei há vinte anos é-me exactamente a de hoje; e todavia há um desfasamento no modo como corri para ela e me entusiasmei com ela e me comovi com ela. Tudo agora me acontece ainda mas num registo diferente. Não é em si que as verdades envelhecem: é com as rugas que temos no rosto e na alma.

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 2"

20 junho 2018

Vai um gin do Peter’s?

O QUE SE ESCONDE NA TELA E SÓ O PINTOR SABE ?... TESTEMUNHO DE J. POMAR

Júlio Pomar (10.Jan.1926-22.Maio.2018), neorrealista, neo-expressionista,
retratista de Claude Lévy-Strauss, do PR Mário Soares,
que conheceu durante os 4 meses de cativeiro, na prisão de Caxias (1947). 

É possível que muitos considerem a comunicação humana um processo banal, de tão familiar que resulta, para a maioria. No entanto, é das dimensões mais reveladoras da sofisticação da nossa espécie, no planeta. Basta lembrar que se baseia numa capacidade de representação exímia. 

Como explica a antropóloga norte-americana Mary Catherine Bateson, comunicar implica dominar e manusear o efeito figurativo e simbólico para traduzir a complexidade do pensamento e o que a percepção humana capta. Aqui entra a metáfora – veículo de transmissão por excelência, que afinal não é exclusivo dos poetas, mas a ferramenta “vulgar” da linguagem humana. Mesmo quando a sua produção flui automaticamente, com a espontaneidade da respiração.

Perante esta alta fasquia partilhada pela humanidade, onde se diferenciam os que melhor se exprimem, como é o caso dos artistas? 

Para alguns, começa na atitude perscrutadora e curiosa, empenhada em interrogar-se  incessantemente sobre a realidade circundante e descobrir-lhe o nexo. O olhar maravilhado da criança à descoberta do mundo será o protótipo desta predisposição positiva. Para Pomar, a representação do «espanto» personifica-se na aparição do predador mais esquivo do reino animal, aqui de perfil, olhar penetrante e mandíbulas escancaradas, semi-encoberto por uma amálgama de fragmentos de corpo humano. A incorporação da literatura na pintura de Pomar é uma constante, num ambiente de forte carga simbólica, que recorda a atmosfera onírica dos contos do argentino Jorge Luís Borges. 

«L'Étonnement», 1979, na fase neo-expressionista

Os tigres superabundam no legado de Pomar, normalmente na pose felina, em que o perigo espreita.

1ª tela: «Tigre» (detalhe), Colecção Millennium BCP.     
2ª tela: «A tigresa», 1978.

Para Picasso, a maior diferença entre o artista (de todas as artes) e o cidadão comum residiria no olhar. É a conclusão partilhada por muitos outros, como Pomar. A aptidão para descortinar de forma mais intensa a realidade influenciaria o modo posterior de a representar. Aqui, o artista percorreria o trilho do cientista-investigador, também ele apaixonado pelo que lhe é dado ver. 

Porém, será numa segunda etapa do processo que o artista mais pode distinguir-se da maioria, ao avançar para a dimensão «invisível», procurando chegar à essência velada sob a carcaça visível do real. Por exemplo, esta é uma marca d’água da literatura russa, tal a abundância de escritores fiéis à via clarificada pelo lendário poeta-escritor Alexandre Pushkin (1799-1837).  

Mas ainda que não haja lugar a incursões capazes de suplantar a materialidade, só por si, a capacidade de representação artística já constitui uma superação notável e transfiguradora.

Júlio Pomar (1) teve o condão de renovar a realidade a partir do que via, fosse pela visão física, fosse pela memória, fosse pelo imaginário coleccionado ao longo da vida ou por outra fonte interior. Tentava sugerir uma nova perspectiva sobre a circunstância conhecida, para a reabilitar, de modo que até o cenário mais comezinho pudesse ganhar um brilho imprevisto, um interesse irresistível. Escreveu: «É pela escolha da imagem que o poeta ou o pintor usam o quotidiano. E o destino da imagem torna-se outro, desneutraliza-se, e daí o espanto das pessoas que nela já não reconhecem o que é de todos os dias. E não estão enganadas. […] Este quotidiano, tido por neutro, ou nulo, e cuja banalidade já não detém a atenção, torna-se […] trama que vem do fundo do tempo e que se lança para o desconhecido […].»

«Azenhas do mar», 1952. Num jogo de claros-escuros,
revemos os recortes abruptos da costa atlântica portuguesa,
talhada por rochedos angulosos, que demarcam
o limite da terra firme.

O fado, em Pomar, é castiço e popular, de tonalidades aconchegantes: 



Na arena, a coragem desmedida dos forcados ou a dupla cavaleiro & cavalo empenhada em domar a força bruta do touro, impregnam o ambiente de adrenalina: 

Duas telas dedicadas à festa brava, que Pomar muito apreciava

Na fase neorrealista, de 1940s e 1950s, a crítica social e política contagiou as telas. Em 1947, esteve encarcerado 4 meses, na cela ao lado de Mário Soares. Naqueles anos, a denúncia à pobreza era a prioridade:

«O almoço do trolha», 1946-50, numa versão evocativa de um Presépio da
cintura industrial das grandes cidades. 

1ª tela:  «Gandanheiro», 1945.   
2ª tela: «Maria da Fonte», 1957,
num registo que se assemelha a uma revolta camponesa. 

«Subúrbio», habitado por jovens mães vindas do campo em busca das
oportunidades que florescem nas áreas metropolitanas.

Mestres das letras e figuras de ficção também posam para as suas telas. D.Quixote reforça o lado sonhador e a disposição para um combate etéreo, mais pessoal e distante da realidade exterior.  Lembra um ícone: 


Fernando Pessoa surge visionário e reflexivo, ora contracenando com escritores seus contemporâneos, ora desdobrado nos múltiplos heterónimos: 

1ª tela: «Fernando Pessoa» ainda mais enigmático;   
2ª tela:  «Edgar (Allan) Poe, Pessoa e o Corvo», 1985.

«Lusitânia no bairro latino (retratos de Mário de Sá Carneiro,
Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso)».

Poeticamente, Pomar usava a metáfora do cinema para explicar o embate desconfortável do público «não-informado» (quis chamar-lhe) com a pintura, equiparável a apanhar apenas a última imagem de um filme. Incompreensível e decepcionante. Discorrendo sobre o seu ofício: 

«O que é próprio do pintor é ver. Há duas famílias de fazedores de imagens: aqueles para quem ver é sobretudo ver alguma coisa — alguma coisa de atordoador, diria Dali; e aqueles para quem ver é puro ver-estar a braços com a sua pequena sensação, diria Cézanne. Este ver situa-se num domínio que é exterior ou anterior à palavra […]. 

O que conta, o que faz o olhar do pintor, não é tanto fazer um quadro, como ver: ver o que se passa sobre a tela. Ali onde o quadro se faz, e durante este fazer do quadro. […]  [O] acto de ver, forma a essência da pintura, e não é susceptível de ser posto em palavras. […] Por muito minuciosa que seja, a descrição de um quadro não ajuda a penetrar no seu enigma, não permite identificar o que vive no coração da obra. […] A pintura é áfona, não usa som nem palavras. Daí a afinidade com o instante de morte: na fixidez do olhar que precede a cegueira definitiva.[…]

No ateliê faço e refaço — por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer. Não só para fazer melhor. Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiência que não me matou a fome. […]
O meu trabalho não consiste em acrescentar, dia após dia. […] O meu trabalho alimenta-se daquilo que despedaça. […] Procedo por destruições sucessivas. Rasuro. E estou em crer que a rasura dá o (não) sentido à frase, dá o nervo à forma, dá a vertigem ao espaço.

Um quadro não me interessa senão enquanto se faz, durante o corpo-a-corpo com o que parece indizível. Sou avaro do meu prazer. 

Sonho quadros que nunca terminariam, [...] um quadro […] é uma aposta. Considerá-lo, ou não, acabado implica outra aposta.

Apetece-me chamar odisseia a essa viagem que é a execução de cada quadro. […] Chamo-lhe odisseia ou via-sacra, com as suas estações em que o protagonista cai e torna a levantar-se. Mas o cenário é o da solidão […].

Balzac foi capaz de conceber, antes de Cezanne, Picasso & Co. […] o inacabamento como chave […] como paradigma da verdade em pintura, […] como abertura ao mundo.»

In «Da Cegueira dos Pintores » (INCM, 1986)

***

Ainda bem que Júlio Pomar foi pródigo em acrílicos, desenhos, ilustrações, esculturas e até em palavra. É significativo que seja um artista plástico, apostado em ver, que tenha chamado aos escritos dedicados à pintura –  «Da Cegueira dos Pintores ».  Talvez confiasse que nem tudo se descortina pelo olhar físico. 

Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
__________________
(1) http://www.ateliermuseujuliopomar.pt .  Rua do Vale, nº 7, Lisboa. 



19 junho 2018

Duas Últimas

Volta e meia acontece-me isto, que me parece prosaico: estou num jantar e conheço alguém. Como estávamos ambos meios perdidos, juntámo-nos à conversa. Falámos de música e o cavalheiro em questão, muito mais novo do que eu, proporcionou-me informações relevantes, sobretudo de gente de quem nunca ouvira falar: Garry Moore e, também, os Snowy White (que o meu querido amigo fq já trouxe a este estabelecimento). Também falámos de música clássica, onde divergimos bastante. 

Como noutras ocasiões com outras pessoas, este interlocutor falou-me muito do estado de espírito com que se ouvem determinadas músicas. Sinto pouco isso: oiço música clássica bem disposto e mal disposto, oiço música pop numa gama de disposições diferentes e ontem ouvi a época de ouro da música portuguesa enquanto preparava uns spring rolls no forno (a minha mestria limitou-se a acertar a temperatura...). 

Deixo-vos com Garry Moore, um músico que enriquece agora a minha playlist de música pop.

JdB



18 junho 2018

Dos retratos



Este meu novo projecto expositivo consta de 80 retratos que fui fazendo ao longo dos anos a pessoas oriundas de ambientes sócio-culturais muito diversos – do meio da cultura, a grande maioria, a pastores transmontanos e um poeta popular algarvio. 

Muitos destes retratos foram já publicados em revistas de arte ou outras, integradas em projectos editoriais nos quais participei.  

Cada retrato será acompanhado por um comentário do retratado, descrevendo o que sente e lhe sugere esta imagem que fui desenterrar na sua “alma”. Interessa-me sobretudo, aqui, a relação entre o retrato, enquanto fragmento de uma identidade mais complexa, e a sua perspectivação psicológica atribuída pelo indivíduo retratado que se revê ou não no que é mostrado. É esse jogo de identificação do indivíduo retratado consigo mesmo ou consigo enquanto “outro” que pretendo mostrar. 

Carlota Mantero

***

Quando há cerca de trinta anos comecei a fotografar com uma máquina boa, o meu gosto ia para o retrato - sobretudo dos meus filhos, a quem punha um chapéu (panamá, de côco, de palhinha...) e a quem obrigava ao imobilismo. Também fotografava paisagens, mas, nessa vertente, a minha qualidade, em termos de classificação salesiana, não seria mais do que um "satisfaz".  

Passados trinta anos, deixei de fotografar retratos. Não me habituei a tirar retratos com estas máquinas modernas e compactas porque não domino o zoom e sinto-me demasiado perto para encher a fotografia com uma cara. Agora fotografo claustros, janelas, telhados, pormenores dissonantes, simetrias e assimetrias. Parece-me, passe a presunção, que mereço um "satisfaz bem".

Não obstante o que fotografo agora, o que me dá gosto ver são retratos. Não retratos de gente famosa numa estância de ski, mas de gente comum, vulgar, que não se assinala por nada de especial, apenas por sorrir, amar, sofrer, ter dores de pernas, pequenos achaques e alegrias, fetiches e ilusões. E por isso me deu tanto gosto esta exposição da minha querida prima Carlota Mantero, que também me deu o gosto de me fotografar. São, como ela diz, 50 retratos: gente séria, gente feia, gente que ri, que se entristeceu naquele preciso dia por um motivo qualquer; gente bonita também, que esconde um mundo por trás de uns olhos vivos, umas mãos tranquilas ou um cabelo desgrenhado; gente que esconde mistérios, transmite paz ou inquietação. Acima de tudo, gente anónima que fala de si com criatividade, de forma sucinta ou mais extensa, que cita uma frase que lhe tocou por um motivo qualquer.

Não cabe, no espaço deste blogue ou na mente do dono do estabelecimento, falar com propriedade e vagar sobre o retrato, mas gostaria de afirmar que a exposição me deu um enorme gosto, não só por ser de quem é, mas pela aura de mistério que abre, pela infinidade de devaneios que proporciona. Talvez aqui venha um dia falar disso em mais detalhe mas, para já, fica a interrogação com que termino o meu texto: quem sou eu naquela fotografia? Quem somos nós nos retratos que nos tiram?   

JdB

17 junho 2018

11º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mc 4, 26-34

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«O reino de Deus é como um homem
que lançou a semente à terra.
Dorme e levanta-se, noite e dia,
enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como.
A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga,
por fim o trigo maduro na espiga.
E quando o trigo o permite, logo mete a foice,
porque já chegou o tempo da colheita».
Jesus dizia ainda:
«A que havemos de comparar o reino de Deus?
Em que parábola o havemos de apresentar?
É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra,
é a menor de todas as sementes que há sobre a terra;
mas, depois de semeado, começa a crescer,
e torna-se a maior de todas as plantas da horta,
estendendo de tal forma os seus ramos
que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra».
Jesus pregava-lhes a palavra de Deus
com muitas parábolas como estas,
conforme eram capazes de entender.
E não lhes falava senão em parábolas;
mas, em particular, tudo explicava aos seus discípulos.

16 junho 2018

Pensamentos Impensados

Impressões
Gutenberg inventou a imprensa; quanto à conferência de imprensa nada consta.

Melenas
Não sei nada de política; Quando vi juntos, em Singapura, o presidente da Coreia, e Trump, pensei que iam para um concurso de penteados.

Modas
A próxima moda Outono/Inverno é uma t-shirt sem mangas.

Reprodução
A Assembleia da República pode ser acusada de favorecer o desaparecimento de algumas espécies ao ter a ideia peregrina de substituir sexo por género. Imagine-se o diálogo entre macho e fêmea: Queres fazer género? Não faço ideia do que isso seja mas não faz meu género.

Passarão
Padre Bartolomeu de Gusmão gostava de cozinhar; foi ele o inventor da caçarola.

A contratempo
O maestro, apesar de ter Parkinson, insistia em reger; os músicos só olhavam para a pauta.

SdB (I)

15 junho 2018

Artigos dos dias que correm

"Aquarius": Cardeal Ravasi evoca Evangelho sobre acolhimento e desencadeia onda de reações

Uma evocação do Evangelho publicada esta segunda-feira no Twitter pelo presidente do Conselho Pontifício da Cultura, cardeal Gianfranco Ravasi, a propósito do drama vivido pelas pessoas a bordo do barco "Aquarius", no Mediterrâneo, desencadeou uma onda de reações dirigidas ao prelado italiano e à Igreja.

«Era estrangeiro e não me acolhestes», foi a passagem mencionada, extraída do capítulo 25, versículo 43, do Evangelho segundo S. Mateus, que numa tradução em português europeu se lê: «Era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me».

Gianfranco Ravasi, biblista, aludia ao barco fretado pela organização não governamental SOS Mediterrané, onde se encontram 629 migrantes recolhidos no mar, e que ontem a Itália e Malta recusaram receber, tendo mais tarde recebido ofertas de acolhimento por parte de Espanha e, mais recentemente, da Córsega.

«Eminência, não podemos acolher todos. Como diz a minha velha mamã: primeiro tu, depois os teus, depois os outros, se puder ser...» é o primeiro dos mais de 1600 comentários ao "tweet" do cardeal.

Entre as respostas menos vulgares incluem-se «Que cuide deles o cardeal no Vaticano», «Eram pedófilos e não os prendestes», «O dinheiro do IOR [entidade bancária da Santa Sé] investi-o todo em África», «Vim para traficar, para violar, para islamizar, para viver à borla e não me acolhestes», «Jesus disse que a verdade vos tornará livres. Basta de negros e árabes que comem de borla».

«Abri as portas do Vaticano e colocai lá todos os clandestinos que quiserdes» e «Cardeal vós possuís riquezas imobiliárias superiores à dívida pública italiano, vendei alguns imóveis e ide para África e Médio Oriente para ajudar os pobres; devia estar na primeira linha para cessar o tráfico de escravos», são outros exemplos de comentários.

Há duas horas, o cardeal Ravasi voltou à Bíblia, citando desta vez a primeira carta de S. João (4, 16): «Deus é amor; quem está no amor permanece em Deus e Deus nele», depois de, ontem, ter evocado um autor cristão, Georges Bernanos: «Para encontrar a esperança é preciso ir para lá de todo o desespero. Quando se vai até ao fim da noite, encontra-se uma nova aurora».

«Tempo virá/ em que, exultante,/ te saudarás a ti mesmo chegado/ à tua porta, no teu próprio espelho/ e cada qual sorrirá ante a saudação do outro,/ e dirá: Senta-te aqui. Come./ Amarás de novo o estrangeiro que era o teu Eu./ Dá vinho. Dá pão. Devolve o coração/ a ele próprio, ao estrangeiro que te amou/ toda a tua vida, que ignoraste».

Na coluna que assinava diariamente no jornal italiano "Avvenire", o P. Ravasi, ainda não criado cardeal, citou versos da poesia “Amor após amor”, de Derek Walcott, «o cantor dos mestiços, nascido numa ilha das Caraíbas, Santa Lúcia, em 1939».

«Como se intui, unem-se e sobrepõem-se duas fisionomias diversas, a minha e a do outro, o estrangeiro. Se ao espelho olhamos o nosso rosto, descobrimos nele os traços da humanidade, porque a ela todos pertencemos, para além das diferenças étnicas, culturais, religiosas.

"Amarás o estrangeiro que era o teu Eu", diz o poeta. "Amarás o teu próximo como a ti mesmo", diz a Bíblia. Neste paralelo há dois amores que se fundem, o espontâneo por si próprio e aquele que o é para os outros, muitas vezes conquistado com algum esforço mas que deverá ser, da mesma maneira, intenso.

Devemos tentar reconduzir o nosso coração "a si mesmo", isto é, à sua consciência profunda, e aí descobriremos que há o estrangeiro dentro de nós porque ele é semelhante a nós por causa do próprio Deus que o criou, do próprio Cristo que o redimiu, do próprio amor que foi deposto nele e em nós, e do próprio pecado que obscurece a nós e a ele», observou Ravasi.

Numa das múltiplas ocasiões em que se referiu aos migrantes, o papa Francisco lembrou que «tragicamente, no mundo há hoje mais de 65 milhões de pessoas que foram obrigadas a abandonar os seus locais de residência. Este número sem precedentes vai além de toda a imaginação».

«Se formos além da mera estatística, descobriremos que os refugiados são mulheres e homens, rapazes e raparigas que não são diferentes dos membros das nossas famílias e dos nossos amigos. Cada um deles tem um nome, um rosto e uma história, como o inalienável direito de viver em paz e de aspirar a um futuro melhor para os seus filhos», sublinhou em setembro de 2016.

Depois de encorajar «a dar as boas-vindas aos refugiados» nas casas e comunidades, «de maneira que a sua primeira experiência da Europa não seja a traumática de dormir ao frio nas estradas, mas a de um acolhimento quente e humano», Francisco lembrou as palavras evocadas agora pelo cardeal Ravasi, «tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me», e lançou um desafio: «Levai estas palavras e os gestos convosco, hoje. Que possam servir de encorajamento e de consolação».

Na segunda-feira, o arcebispo de Madrid, cardeal Carlos Osoro Sierra, também se exprimiu no Twitter: «O mandato é claro: "Fui forasteiro e hospedastes-me". Para além de considerações políticas e legais, ao ler a vida desde o Evangelho, um vai em busca do outro. #Aquarius é um chamamento de Cristo à Europa».

SNPC
Imagem: D.R.
Publicado em 12.06.2018

14 junho 2018

Poemas dos dias que correm *

Vamos a hacer limpieza general

Vamos a hacer limpieza general
y vamos a tirar todas las cosas
que no nos sirven para nada, esas
cosas que ya no utilizamos, esas
otras que no hacen más que coger polvo,
las que evitamos encontrarnos porque
nos traen los recuerdos más amargos,
las que nos hacen daño, ocupan sitio
o no quisimos nunca tener cerca.
Vamos a hacer limpieza general
o, mejor todavía, una mudanza
que nos permita abandonar las cosas
sin tocarlas siquiera, sin mancharnos,
dejándolas donde han estado siempre;
vamos a irnos nosotros, vida mía,
para empezar a acumular de nuevo.
O vamos a prenderle fuego a todo
y a quedarnos en paz, con esa imagen
de las brasas del mundo ante los ojos
y con el corazón deshabitado.

Amalia Bautista (Madrid, 1962)

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* enviado por mão amiga

Convites e livros dos dias que correm


13 junho 2018

Pensamento Impensado

Tradu...som
Segundo os media, o Presidente da Coreia do Norte levou uma sanita para Singapura. Foi para uma tradução à letra do make piss not war.

SdB (I)

Poema para o dia de hoje

SANTO ANTÓNIO

Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?

Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro.
(Organização de Alfredo Margarido.) Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.


12 junho 2018

Crónicas de um doutorando tardio

Ontem, numa das apresentações das Teses da Teoria, aprendi (ou tomei conhecimento desta ideia que foi veiculada) que Fernando Pessoa está para Teixeira de Pascoaes como Turner está para Constable. Um dia explicarei.

JdB


Venice, from the Porch of Madonna della Salute (Turner, 1775–1851) 

Study of Salisbury Cathedral (Constable, 1776 – 1837)

A Vida como Luta entre a Realidade e o Sonho

Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (...) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição.
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo.
Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o enconbre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura...
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca.
Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos.
Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga.
Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam.
Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.

Teixeira de Pascoaes, in 'O Pobre Tolo'

***

A Felicidade vem da Monotonia

Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exacta à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
Os ilógicos doentes riem - de mau grado, no fundo - da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princípio, que as cousas novas é que devem dar prazer ao espírito; mas as cousas novas são poucas e cada uma delas é nova só uma vez. Depois, a sensibilidade é limitada, e não vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque não há sensibilidade para acompanhar os estímulos dela.
Conformar-se com a monotonia é achar tudo novo sempre. A visão burguesa da vida é a visão científica; porque, com efeito, tudo é sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações, limita-se a sorrir; e é o seu sorriso que me traz, pormenorizadas, as considerações que deixo escritas, por meditação dos pósteros.

Fernando Pessoa, in 'Reflexões Pessoais' 

10 junho 2018

X Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mc 3,20-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus chegou a casa com os seus discípulos.
E de novo acorreu tanta gente,
de modo que nem sequer podiam comer.
Ao saberem disto, os parentes de Jesus
puseram-se a caminho para O deter,
pois diziam: «está fora de Si».
Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam:
«Está possesso de Belzebu,
e ainda:
«É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios».
Mas Jesus chamou-os e começou a falar-lhes em parábolas:
«Como pode Satanás expulsar Satanás?»
Se um reino estiver dividido contra si mesmo,
tal reino não pode aguentar-se.
E se uma casa estiver dividida contra si mesma,
essa casa não pode aguentar-se.
Portanto, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide,
não pode subsistir: está perdido.
Ninguém pode entrar em casa de um homem forte
e roubar-lhe os bens, sem primeiro o amarrar:
só então poderá saquear a casa.
Em verdade vos digo:
Tudo será perdoado aos filhos dos homens:
os pecados e blasfémias que tiverem proferido;
mas quem blasfemar contra o Espírito Santo
nunca terá perdão: será réu de pecado eterno».
Referia-Se aos que diziam:
«Está possesso dum espírito impuro».
Entretanto, chegaram sua Mãe e seus irmãos,
que, ficando fora, mandaram-n’O chamar.
A multidão estava sentada em volta d’Ele,
quando Lhe disseram:
«Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura».
Mas Jesus respondeu-lhes:
«Quem é minha Mãe e meus irmãos?»
E, olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse:
«Eis minha Mãe e meus irmãos.
Quem fizer a vontade de Deus
esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe».

09 junho 2018

Pensamentos Impensados

Alguém pediu bis
Lázaro morreu novo.
Lázaro morreu de novo.

Linguajares
Os portugueses falam a língus de Camões, os americanos a língua dos camones.

Fases
Já passei a idade madura; agora estou na idade sorvada.

Calendários
Como o tempo passa! Ainda ontem era 6ª feira e já hoje é Sábado

Pontos de vista
Numa conversa sobre esferas pode dizer-se tudo, excepto por outro lado.

Mais língua
Estão a extinguir-se ou seja, estão em vias de extingão.

Asseios
Até ao lavar dos sextos é sinal que já se lavaram cinco.

Epitáfio
Aqui não jaz ninguém, porque o seu pai não teve filhos.

SdB (I)

08 junho 2018

Poema dos dias que correm

Para chegares a saborear tudo,
não queiras ter gosto em coisa alguma.
Para chegares a possuir tudo,
não queiras possuir coisa alguma.
Para chegares a ser tudo,
não queiras ser coisa alguma.
Para chegares a saber tudo,
não queiras saber coisa alguma.
Para chegares ao que não gostas,
hás de ir por onde não gostas.
Para chegares ao que não sabes,
hás de ir por onde não sabes.
Para vires ao que não possuis,
hás de ir por onde não possuis.
Para chegares ao que não és,
hás de ir por onde não és.

Modo de não impedir o tudo:
Quando reparas em alguma coisa,
deixas de arrojar-te ao tudo.
Porque para vir de todo ao tudo,
hás de negar-te de todo em tudo.
E quando vieres a tudo ter,
hás de tê-lo sem nada querer.
Porque se queres ter alguma coisa em tudo,
não tens puramente em Deus teu tesouro.

S. João da Cruz

07 junho 2018

Duas Últimas

Breves comentários sobre alguns temas amplamente noticiados pela comunicação social nos últimos tempos, normalmente sempre no sentido da "cartilha" e do "politicamente correcto" (seja lá o que isso for), que discordar dá trabalho e pode originar contratempos:

Eutanásia - A AR decidiu bem. Todavia, se a votação fosse secreta, não sei se o resultado seria o mesmo. Os derrotados pareciam ter ganho, tal a impertinência e tiques de superioridade habituais demonstrados. Que esperem, só lhes faz bem.

Espanha - No poder os que perderam as eleições (onde é que já vi isto? ; situações diversas, apesar de tudo). Por cá, satisfação geral. Veremos daqui a uns tempos se sensação se mantém. Como sabemos, a situação de Espanha é crucial para Portugal.

Itália - Os populismos lá se entenderam para formar Governo, mas só o de direita é que é mau....

Sporting - BdC até nem começou mal, identificando males endémicos do futebol cá da terra. Depois guinou para dentro, e mostrou-se verdadeiramente (se queres ver o vilão....). Não tem todas as culpas, e vão-se ver gregos para correr com ele.

Belenenses - Poucos adeptos, e desavindos. Um clube, duas lideranças que se detestam. Poderá acabar a jogar em Leiria ou, quem sabe, em algum estádio mais próximo que fique entretanto vago...

Bahamas - Excelente para férias. Para negócios (lícitos, já se vê), espero conseguir responder daqui a uns tempos.

Deixo-vos com duas mulheres que no mínimo têm em comum duas grandes vozes. Para além, claro, do "y" nos nomes próprios.

Espero que apreciem.

fq


06 junho 2018

Vai um gin do Peter's?

A VERSÃO PACÍFICA, À PORTUGUESA, DOS GUERREIROS DE TERRACOTA CHINESES

A feliz comparação com as admiráveis esculturas de terracota da China antiga (séc.III a.C.), em tamanho natural, veio de um bloguista de referência(1) para assinalar a monumentalidade das 1587 figuras de barro, que recriam a versão mais faustosa da procissão lisboeta do Corpo de Deus, recuando ao reinado de D.João V (1689-1750). Por comparação com os congéneres do Império do Meio, aplicam-se aos nossos “guerreiros” os lemas dos anos 60: «road to peace», «power-flower», «love, not war».

«Em 1944, alimentando um sonho vindo de 1939, Diamantino Tojal reconstituiu
a versão joanina da Procissão do Corpus Christi feliz»
(http://malomil.blogspot.com/2017/09/corpus-christi-procissao-do-corpo-de.html)

O conjunto está em exposição, até 1 de Julho, no antigo Convento da Graça, em Lisboa:
«Corpus Christi: A procissão do Corpo de Deus, por Diamantino Tojal».

As miniaturas moldadas em barro não-cozido, pelo empresário Diamantino Tojal (1901-1980), em 1944, traduzem a mansidão dos portugueses, que preferem um cortejo de paz e gáudio a paradas militares intimidatórias. Mesmo no decurso da Segunda Guerra Mundial. O cortejo escolhido soma oito séculos de existência, atravessando a história de vários povos e de toda a Cristandade, ano após ano. Na origem da Festa, conhecida por Corpus Christi, estiveram fenómenos sobrenaturais ocorridos no século XIII, entre visões místicas e um milagre portentoso confirmado pelo teólogo e artista que reabilitou o lugar de Aristóteles na Filosofia ocidental – S.Tomás d’Aquino. 

Na cidade italiana onde se deu o milagre – Orvieto – a magnífica catedral continua a celebrar, inclusive pela sua beleza, o fenómeno testemunhado pelo padre Pedro de Praga, no segundo quartel do século XIII, ao ver a hóstia ganhar corporalidade com sangue vivo, para lhe provar que Cristo se tornará (e torna) presente na hóstia consagrada. Daí, o termo técnico para referir a mudança de substância que se opera durante a Consagração, quando um pedaço de pão se «transubstancia» no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo. 



Logo na altura, o dito milagre deu pretexto a uma encomenda do Papa Urbano IV ao Santo-filósofo e poeta d’Aquino para compor os hinos da nova festa. Assim surgiram «Tantum Ergo Sacramentum»(2) (Tão Sublime Sacramento), «Lauda Sion Salvatorem»  (Louva, ó Sião, o Salvador) ou «Adoro Te Devote», que continuam a ser entoados em qualquer procissão do Corpo de Cristo.  
Em Portugal, esta solenidade tem sido festejada por pintores, escritores, artesãos, reis e o grande povo anónimo, desde que D.Dinis a oficializou, em 1282.  
A primeira alusão vinha da época do seu pai – D.Afonso III – depois de as visões (1243) de Santa Juliana de Cornillon serem validadas. Além de as reconhecer, o Papa Urbano IV quis oferecer aos fiéis uma festa comemorativa da misteriosa presença de Cristo na hóstia consagrada. Em 1264, o dia foi fixado na Quinta-feira a seguir ao Pentecostes, em alusão ao dia da Ceia Pascal. O rito processional foi instituído mais tarde (1317). 

Amadeo de Souza Cardoso ficou de tal modo impressionado com a procissão a que assistiu em Braga, que lhe dedicou uma tela: 

«Procissão Corpus Christi», Amadeo de Souza-Cardoso, 1913.
Colecção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em 1955, Martins Barata também trabalhou o tema em dois painéis, situando-os no tempo do Mestre de Avis: 

1º Vista da procissão à saída da Sé;  2º Momento da chegada ao Rossio. Sob o pálio, está D. João I.

Alexandre Herculano descreveu-a ao detalhe, qual cronista, no seu romance «O monge de Cister», inspirando-se nos arquivos do séc.XV. À época, a dimensão religiosa coabitava com a profana: 

«(…) Danças d’espadas, danças mouriscas, danças de péllas (…) tudo, emfim, quanto se possa imaginar de caricatura, de burlesco, de doudejante servia de moldura a este quadro singular, em cujo topo figuravam alguns magistrados municipaes, e sobre o qual flutuavam dezenas de pendões, bandeiras e guiões variegados. Como contraste a estas visualidades heteroclitas, a esta espécie de sonho de pesadello, seguiam-se as communidades monasticas, mancha escura no dorso daquella imensa cobra, que se estirava pelas ruas de Lisboa: (…). Depois, um sem numero de cavalleiros de Christo, do Hospital, d’Aviz, de Sanctiago, precedidos dos respectivos mestres e commendadores e seguidas dos freires leigos e serventes d’armas. Depois, os magistrados da côrte, os oficiais da corôa e o próprio monarcha rodeavam a hostia triumphante nas mãos do bispo de Lisboa, e sustentavam as varas de riquissimo pallio.» (Herculano, 1847, pp. 83-85) »

Outro cronista de setecentos, identificado como I.B. Machado(3), tem registos igualmente coloridos. Foi nele que se baseou Diamantino Tojal para reconstituir a procissão: «Começou pois esta tão luzida, como assombrosa Procissão, ou Triunfo do Sacramemto, pelas bandeiras dos Officios mecânicos. (…) Immediato aos trombeiteiros se via hum Cavalleiro vestido, e calçado de ferro com viseira, e colete, montado em hum cavallo acobertado. (…) E para que tão grande concurso não degenerasse em alguma desordem, se dispoz, que todos caminhassem de dous em dous, com pausa, e modéstia. (…) Debaixo deste Palio hia o Eminentissimo, e Reverendissimo Patriarca com o Santissimo Sacramento na Custodia.» (Machado 1759, pp. 167-168, 186, 191-192).

Mal pôs termo às ofensivas castelhanas, D.João I conferiu à procissão um cunho bem nacionalista (1387), colocando-a sob os auspícios de S.Jorge guardador da pátria, cuja devoção fora trazida pelas tropas inglesas e por sua mulher – Filipa de Lancastre. Assim, acrescentou-se ao pálio com a custódia sagrada, a figura imponente do santo combatente a cavalo, com armadura de ferro, perseguindo um enorme dragão domado pela sua espada. No século XVIII, D.João V aumentou o aparato religioso e retirou de cena as figuras alegóricas. Naquele desfile majestoso, exibiam-se as múltiplas Ordens, Confrarias, Irmandades, os vários Regimentos militares e toda a espécie de corporações do reino, em traje de gala. Por tradição, o soberano assumia a primeira vara do lado direito.  

O último rei, D.Manuel II, cumpriu a sua parte na procissão do ano 1908 (ou 1909). Aqui, com o uniforme de Marechal-General e o manto da Ordem de San’Tiago, de que era Grão-Mestre. Atrás, no lugar de Príncipe Real, segue o Infante D.Afonso, Duque do Porto. Desde o séc.XVI que estas procissões se tornaram palco de intentonas falhadas contra o monarca. Assim aconteceu com D.João IV, no exacto local onde a rainha D.Luísa de Gusmão mandou erigir um convento de carmelitas (Lg do Carmo) a que chamou de Corpus Christi. Também D.Manuel II foi visado, quando a procissão estava a meio da rua do Ouro. 

Noutras paragens, os pintores esmeraram-se a imortalizar o esplendor das festas a que tinham assistido, antecipando-se às reportagens fotográficas: 

ITÁLIA: Procissão do Corpo de Deus na Piazza de S.Marcos, Gentile Bellini, 1496.
(Galleria dell'academia, Veneza)

FRANÇA: «La procession de la Fête-Dieu à Toulouse»,
Escola de Santa Cecília, 1700.

ESPANHA: «Procissão na Catedral de Sevilha», por Genaro Pérez de Villaamil
(1807-1854).

ALEMANHA: «Procissão de Corpus Christi», Carl Emil Doepler
(1824-1905)

Em 2018, recuperámos o essencial, com simplicidade mas igual fé. Após os cavaleiros da Guarda Nacional Republicana, um cortejo sóbrio abre o caminho ao pálio, a que preside o Cardeal Patriarca de Lisboa, acompanhado pelo clero da cidade e por milhares de gente anónima que se junta à procissão da actualidade. À nossa maneira, continuamos a cumprir o legado herdado de 1264, pois move-nos o mesmo princípio: «LOVE, not war». Curiosamente, em carne-e-osso, mantemos a versão conciliadora à portuguesa, que também visa o sentido protector dos tais guerreiros de terracota, só que percorrendo o caminho oposto, sem belicismo. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
___________________________________

(1) http://malomil.blogspot.com.
(2) Canto gregoriano, com tradução do latim para português: 



(3) Ref. bibliográfica: Machado, I. B. (1759). «Historia critico-chronologica da instituiçam da festa, procissam, e officio do Corpo Santissimo de Christo […]»,  Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno.

05 junho 2018

Duas Últimas

Gosto de Monica Bellucci, uma das mais bonitas actrizes do meu tempo. É de uma beleza serena, que não cansa, que fica bem, muito bem, numa fotografia a preto e branco, a grande mãe de todas as artes fotográficas.

Gosto de Ennio Morricone, um autor musical responsável pela banda musical de muitos e bons filmes, dos quais destaco o Cinema Paraíso.

Gosto, por último, de algum cinema italiano. E sublinho o algum porque não sou cinéfilo, sou apenas atraído - nestes filmes de que gosto - por alguma aura de tristeza, de melancolia ou nostalgia. São filmes que ficam bem a preto e branco, que poderiam ter sido filmados em Portugal, ou com gente portuguesa  

Não vi Malèna por inteiro. Vi partes: a viuvez triste dela, a paixão humanamente arrebatadora de um rapaz jovem, o olhar devorador e pecaminoso dos homens da terra, a inveja transformada em puritanismo das mulheres locais. 

Deixo-vos com quatro minutos de sossego belíssimo, ou de beleza tranquilizadora. Vale a pena ver e ouvir com atenção.

JdB

04 junho 2018

Textos dos dias que correm

A criança que dorme

«Se andássemos no mundo com o descuido da criança, que adormece no meio da multidão, o mundo não conseguiria perturbar o nosso coração mais do que quanto pode influenciar a respiração ampla e leve da criança que dorme.»

Esta imagem criada pelo escritor francês Christian Bobin apresenta-se não raramente diante de quem, no meio da multidão no metropolitano ou numa praça, se detém a observar os rostos.

As crianças adormecidas ao peito da mãe, enquanto que no exterior há barulho, gritaria, agitação, não fazem inveja só a quem precisa para adormecer, como eu, de muita espera e situações propícias.

Há uma inveja mais santa e profunda que já o salmista tinha representado com a mesma cena: «Estou tranquilo e sereno como criança saciada aos braços da sua mãe, como uma criança saciada está a minha alma» (131, 2).

Conseguir conservar a paz no turbilhão do mundo, no esgotamento causado pelo frenesim, na tensão e na tentação incessante do fazer, possuir e conquistar, é um dom divino.

É a necessidade de redescobrir a quietude do silêncio no meio da excessiva palraria, a quietude do repouso para além das paragens cansativas dos fins de semana, prolongados como este, a capacidade de meditar, contemplar e rezar juntamente com o agir, o calcular, o intervir.

A «respiração ampla e leve» da criança é a da alma que sabe respirar em sintonia com o sopro de Deus, isto é, com o seu Espírito. É o bater da consciência em harmonia com o sussurro do coração de Deus.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: SNPC
Publicado em 01.06.2018

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