Ontem, revisitando o que se escrevia neste estabelecimento há dez anos, encontrei um post na forma de carta para um amigo. Nessa carta falava naquilo que faria se tivesse a certeza absolutamente inquestionável que só estaria na Terra mais seis meses: entre outras coisas (talvez voltar a fumar cigarros sem filtro...) tentava deixar a casa arrumada. Tal como dizia na carta, não se trata de precaver aplicações financeiras, delinear estratégias de investimentos, deixar contas pagas. Era, sobretudo, resolver uma certa vida humana: eliminar quezílias, apagar incómodos, pedir desculpa pelas ofensas. Um amigo com quem partilhei a carta ontem dizia-me com graça: se soubesse que eram os últimos seis meses vivia a fingir, a ficcionar, que tinha a casa arrumada...
Janto com amigos em casa na 3ªfeira desta semana. Uma mensagem de telefone diz-me que fulana teve um AVC e que foi de ambulância para o hospital. A situação parece ser séria. Ontem fui visitar esta pessoa, já com oitenta e muitos anos. O episódio - extenso e grave - afectou-lhe a locomoção do lado direito mas, mais grave do que isso, "eliminou-lhe" a fala e o entendimento. Significa isto que teria de aprender a falar para comunicar com os outros, embora possa conhecer quem tem à sua frente - não consegue é falar nem perceber o que lhe dizem. No fundo, vive isolada numa espécie de país estrangeiro cuja língua desconhece na totalidade.
Mata Nacional do Bussaco, Setembro 2018 |
Não consegui arrumar esta parte da minha casa. Nada me indispunha contra a pessoa em questão, muito pelo contrário - gostava muitíssimo dela. Estive com ela no Domingo e perguntei-lhe por coisas práticas: dinheiros, bancos, decisões imediatas, infiltrações e canos entupidos. Disse-lhe que da próxima visita só falaríamos de outras temas: pessoas, histórias, memórias, famílias. Hoje sei onde esta pessoa tem conta, se quereria ou não fazer obras, como se chama o psiquiatra. Mas não sei aquilo que gostaria de saber e que poderia passar para os meus filhos: opiniões sobre pessoas que nos eram comuns, graças que só a família percebe, identificação de gente que morreu mas que sobrevive nas histórias e nas relações humanas do passado.
Estou arrependido de ter feito perguntas práticas? Não, não estou - eram as necessárias face às prioridades. Mas estou arrependido de não ter percebido que tudo é efémero, que investimos tempo demasiado a aconselhar os mais velhos para não comer isto ou não beber aquilo, para fazer obras ou contratar serviços de limpeza, e que nos esquecemos de perguntar, de ouvir, de rir e, com isso, construirmos a história de uma sociedade que é a nossa, de gente que partilha o mesmo sangue ou tempos de convivência.
Não arrumei esta parte da minha casa. E já não devo ir a tempo, que os tempos são de sombra.
JdB
2 comentários:
Efectivamente, tudo é efémero e perdemos demasiado tempo com coisas fugazes, às vezes necessárias, mas que nos empatam e desviam daquilo que é verdadeiramente importante na vida...
Obrigado.
Já me tinha sido confrontado com o efémero, mas talvez não desta forma. Trata-se de alguém que num dia tinha muito para contar, até porque tinha uma boa memória, e no dia seguinte vive enclausurada num estrangeiro mental, de onde não consegue sair.
Que seja um bom ensinamento.
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