O ciúme
Do ciúme se disse muito. Dele falaram médicos da mente ou dos comportamentos humanos gregários, sobre ele escreveram historiadores de agremiações e dos povos, poetas eruditos ou de cariz mais popular que compensavam em criatividade repentista o que lhes faltava em sensibilidade profunda; do ciúme cantou gente das mais díspares proveniências, acompanhados a orquestra ou à guitarra. Do ciúme tudo se disse: a doença que requer tratamento, o excesso e a violência decorrente, a infelicidade de todos. Fala-se de ciúme como se fala de preguiça, de luxúria ou de inveja; o que suscita o texto, o pequeno ensaio, a dissertação académica, ou até mesmo uma sextilha, são a existência da característica. A inversa - a ausência de preguiça, de luxúria ou de inveja - não fazem parte, ingenuamente, do repertório médico, mas da vida de santos. Nesse mesmo sentido, a ausência do ciúme não é cantado no Fado Menor do Porto ou na ária lírica. Aparentemente a virtude não vende, não entretém, não desafia o pensamento.
Ora, estas linhas de um fado
tu não me digas
que já não sentes ciúme
que já se apagou o lume
que aquecia o nosso amor
só confirmam o raciocínio supra. Com efeito - e numa primeira análise - o advérbio já remete o acontecimento de ausência de ciúme, não para uma vida de virtude celeste, mas para uma questão temporal. Houve algo que desapareceu, como uma peça de fruta de um cesto: já não há pêssegos? Houve pêssegos e houve ciúme; deixou de haver e, nesse sentido o poeta é suscitado: o desaparecimento é diferente da nunca existência, pese embora a conclusão final ser a mesma: não há.
A inexistência de ciúme (que difere do desaparecimento do ciúme como combustível de um afecto) não tem sido tratada pelos especialistas com a devida atenção. Na verdade, alguém dizer o pecado da luxúria não me assiste, não é o mesmo que alguém dizer o ciúme não me assiste. Podemos não ser invadidos pelo pecado referido porque seremos por outro; em bom rigor, não é crível, nem humanamente justo, que um ser humano sinto em si todos os pecados mortais, embora sejam apenas cinco. Se não sente luxúria sente a inveja, se não sente a inveja sente o orgulho. Porém, se não sentir ciúme sente o quê? A ausência de ciúme não configura virtude, mas indiferença; do outro lado de uma moeda não pode haver apenas uma face polida que convida ao narcisismo.
Os versos reproduzidos supra enfermam de uma possível fragilidade: o advérbio já não foi ali prantado para identificar um antes e um depois, mas para compor uma métrica - o já corresponde, embora no início, à sétima sílaba métrica. Em não estando lá, o fadista fica com um excesso de ar na cavidade bocal, seria possuído por um volume excessivo sem nada que o ocupasse. O advérbio tem, portanto, uma valência utilitária, não explicativa.
O ciúme e o amor são duas faces da mesma moeda; não ter um é não ter o outro. É por isso que à afirmação o ciúme não me assiste se deve reagir com uma prudência de investigador, como se estivéssemos defronte de um animal raro, ou de uma tribo perdida na floresta que adora a barata e a quem a cabra repugna, pela configuração das orelhas. O ciúme é a demonstração da normalidade humana, aquela normalidade que se inquieta, que tem medo do escuro ou do mar alteroso, do inimigo que se esconde atrás de uma porta ou numa esplanada com vista para o mar, que encontra na vida, não uma sucessão de feitos heróicos, mas uma correnteza de incertezas, de sensações de efemeridade contra as quais tem de lutar.
Alfredo Castelino Carvalho, in 'Fragmentos'
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
14 maio 2019
Textos dos dias que correm
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Acerca de mim
- JdB
- Estoril, Portugal
Arquivo do blogue
-
▼
2019
(351)
-
▼
maio
(31)
- Anúncios dos dias que correm
- Crónicas de Praga (III) - ou Duas Últimas
- Textos dos dias que correm
- Aborto - a certeza e a dúvida
- Crónicas de Praga (II)
- VI Domingo da Páscoa
- Poemas dos dias que correm
- Textos dos dias que correm
- Crónicas de Praga
- Vai um gin do Peter’s ?
- Em Praga
- Textos dos dias que correm
- V Domingo da Páscoa
- Duas Últimas
- Do ciúme
- Textos dos dias que correm
- Duas Últimas
- Textos dos dias que correm
- 13 de Maio
- IV Domingo da Páscoa
- Pensamentos Impensados *
- Duas Últimas
- Textos dos dias que correm
- Vai um gin do Peter’s ?
- Poemas dos dias que correm
- Dos agradecimentos
- III Domingo da Páscoa
- Textos dos dias que correm
- Textos dos dias que correm
- Do silêncio
- Textos dos dias que correm
-
▼
maio
(31)
1 comentário:
Curioso este texto e a polaridade entre amor e ciúme. O ciúme e o amor não são faces da mesma moeda. Se o ciúme é face oposta do amor, estão de costas voltadas e não se olham de frente. Ao contrário, se o ciúme estiver lado a lado com o amor, à medida que o ciúme aumenta, vai diminuindo o amor e vice versa.
O ciúme é sentimento de posse e nada tem que ver com o amor. Amar é entrega, é confiança, é partilha que nos desgosta se acabar. Podemos ter pena, receio, desgosto, ansiedade de perder o amor, de perder esse sentir. Não é a mesma coisa que reivindicar e manifestar a posse de alguém. Esse alguém não nos pertence, só faz sentido estar ao nosso lado enquanto houver amor..
Para os católicos, deus ama e nunca ouvi dizer que tivesse ciúmes.
Enviar um comentário