O tema interessa-me, porque põe em confronto, dentro de mim, a certeza da convicção e a dúvida da convicção. Explicando melhor: sou contra o aborto; mas serei contra o aborto se a gravidez decorrer de violação ou incesto? E se responder que sim, fá-lo-ia com a mesma convicção caso fosse a minha filha, a minha mulher, a minha irmã ou alguém muito próximo?
Seguem, abaixo dois artigos importantes: o primeiro, intitulado Aborto em Legítima Defesa, escrito por Henrique Raposo no site da Renascença. O segundo, intitulado Alabama, Henrique Raposo e Legítima Defesa, publicado no blogue Actualidade Religiosa, foi escrito por Filipe d'Avillez. Vale a pena ler um e outro.
(Clicando nos dois textos tem-se acesso aos artigos integrais.)
JdB
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Aborto em legítima defesa (por Henrique Raposo)
Sou contra o aborto. A legalização do aborto a pedido é um projecto político e legal que eu quero destruir, e estou certo de que a roda da história, que gira sobre o eixo do Evangelho, acabará por mudar o status quo. Todavia, só Deus é absoluto. Mesmo nesta questão do aborto, há zonas cinzentas e dúbias que arredondam a perfeição euclidiana desta causa. Na cidade dos homens, a moral não é uma linha recta, é uma linha às ondas como no “Grito” de Edvard Munch. Posto isto, importa ser claro: o que se está a passar nos EUA (Alabama) não faz sentido.
Impedir um aborto nos casos de violação e incesto é impor um mal sobre outro mal. É como impedir a legítima defesa num caso de homicídio. Um homicídio é sempre um mal, mas uma pessoa tem o direito de matar em caso de legítima defesa. Uma pessoa que mata para se defender fica sempre com essa cicatriz na alma, porque matar é sempre um mal. No entanto, matar é nestes casos o mal menor. Para serem coerentes com a sua visão absoluta e "perfeita" da vida, os políticos do Alabama que dizem que uma mulher não pode abortar em caso de violação também têm de defender que uma pessoa não tem o direito a matar em caso de legítima defesa (sim, podem rir à vontade: este é o Alabama das armas e da pena de morte).
(continua)
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Alabama, Henrique Raposo e Legítima Defesa (por Filipe d'Avillez)
Causou alguma polémica um artigo de opinião publicado na Renascença por Henrique Raposo na passada semana, sobre a lei que recentemente proibiu o aborto, quase por completo, no Estado do Alabama, nos Estados Unidos.
Argumenta o Henrique que embora seja contra o aborto e a sua legalização, acha indispensável que haja exceções para casos de violação e de incesto, invocando para isto a noção de legítima defesa.
Gosto de ler os artigos do Henrique e penso que não estou só em admirar a forma honesta como ele tem descrito a caminhada religiosa e ideológica que tem feito ao longo dos últimos anos. Mas neste caso penso que comete alguns erros básicos de raciocínio, que devem ser confrontados.
Para começar, a analogia é muito fraca. Permitir o aborto por “legítima defesa” apenas faria sentido se considerássemos que o feto gerado é um agressor. Sem dúvida que existe um agressor em todos os casos de violação, e na maior parte dos casos de incesto, mas não é o bebé.
A questão do aborto é fraturante, e as discussões sobre ele tendem a tornar-se conversas de surdos. Mas na verdade o assunto é muito mais simples do que muitas vezes pensamos. O nascituro ou é um ser humano com dignidade e direitos, ou não é. Se acreditamos que é – e parece-me que o Henrique assim pensa – então basta pensarmos se o que propomos faria sentido se ele já fosse nascido. O Henrique aceitaria que uma mãe matasse, ou mandasse matar o seu filho recém-nascido, ou de dois anos, por ser parecido com o pai, violador? Claro que não.
Se, pelo contrário, acreditamos que o feto não é merecedor de qualquer direito e não tem dignidade humana, então é descartável.
(continua)
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