09 maio 2019

Textos dos dias que correm

Dez regras para a vida, de Jean Vanier

1. Aceita a realidade do teu corpo
Para que um homem se torne homem, deve estar confortável com o seu corpo. Um corpo é frágil, como todos os corpos. Nascemos na fragilidade, como bebés, morremos na fragilidade. E quando se chega a uma certa idade… 90 anos! [estas palavras foram proferidas por ocasião desse aniversário], começamos a tornar-nos mais frágeis; esquecemo-nos do que queremos dizer, esqueço as palavras; estou mais frágil, tenho de fazer uma sesta após o almoço, tenho de ir andar, porque se não ando, dizem-me: «Se não os utilizas, perde-los. Tenho de aceitar que tenho 90 anos, já não tenho 50 ou 40 ou 30. Não posso fazer tudo aquilo que gostaria de fazer. Mas descubro que é bom ser eu mesmo, hoje.

2. Fala das tuas emoções e dificuldades
Os homens têm dificuldade em exprimir as suas emoções. A maior dificuldade com os homens é que quando estão contrariados, depressa se encolerizam, e a cólera depressa pode tornar-se violência. Se têm períodos de solidão, ou sentimentos de não ter sucesso, os homens podem rapidamente compensar isso com um pouco mais de álcool, um pouco de droga, porque a realidade é difícil. Os homens têm dificuldades com a realidade. Os homens são maravilhosos na ideologia, na ideologia da normalidade. Podem desligar-se da realidade. E “ser humano” é “amar a realidade”.

3. Não tenhas medo de não ter sucesso
Os homens têm muito rapidamente a tendência para julgar, porque a necessidade de ganhar é muito profunda. Não digo que as mulheres não tenham necessidade de ter sucesso, mas há esta inclinação. Nos homens é uma questão de poder, de sucesso, e um grande medo, um dos maiores medos é o de não ter sucesso. E, portanto, o medo da doença, medo da fragilidade, medo de não ter sucesso, porque há esta equação: «Serei amado se tiver sucesso». Mas eles têm de descobrir: «Tu és belo como és».

4. Numa relação, reserva tempo para perguntar: «Como estás?»
O amor está ligado à fragilidade. Muitas vezes, os homens não veem a tirania da normalidade, enquanto que a mulher tem uma inteligência maior e vê as coisas, mas os homens podem ser apanhados… Eis um dos maiores problemas do homem: será que ele se casou com o seu sucesso no trabalho, ou casou-se com a sua mulher? O que é mais importante: subir a escala das promoções? - «vê, acabei de ter um aumento de salário! Tenho de viajar mais». Mas ele nem sempre reserva tempo para perguntar «como estás?»; «de que é que precisas?». Ele tem de amar a sua mulher na sua diferença: a sua afetividade, a sua sexualidade… Ela é diferente. Aceitar as pessoas como são.

5. Para de olhar para o teu telemóvel. Sê presente!
Estamos num mundo onde as ideias flutuam, e em que estamos mais controlados pela televisão e internet, e mais controlados pelo telemóvel. Por exemplo, eu recebi aqui [casa de repouso] cinco jovens, e todos tinham os seus telemóveis no bolso. E eu disse-lhes: «Vós sois pessoas de comunicação. Sois pessoas presentes? Sois capazes de escutar? Sois capazes “de estar com”?». Há toda uma visão com as novidades tecnológicas – que são fantásticas! –, mas como todas as tecnologias podem-nos conduzir ao extraordinário. E a interioridade, a reflexão, a presença aos outros, diminui.

6. Pergunta às pessoas: «Qual é a tua história?»
Ser humano é saber como estar em relação. E estar em relação é: «Conta-me a tua história». Vou contar-vos a história de uma responsável na Austrália que trabalhava junto de pessoas no meio da prostituição, para as ajudar a sair dela. Um dia ela estava num parque, em Sydney, e havia um jovem prestes a morrer de overdose. E as suas últimas palavras foram: «Tu quiseste sempre mudar-me, nunca me quiseste encontrar». Porque encontrar é escutar. «Conta-me a tua história, diz-me onde está a tua ferida, diz-me onde está o teu coração, as coisas que desejas». Por isso, quem é humano é alguém que sabe como encontrar-se com os outros, como trabalhar com os outros, como amar os outros, como ver que tu tens dons que eu não tenho! Eu tenho dons, claro, claro! Tenho dons. Sei coisas, tenho experiência, tenho 90 anos de experiência. Mas tu também. Tu viveste experiências. Tu tens diferenças. Por isso preciso de te escutar. Porque a tua história é diferente da minha história.

7. Sê consciente da tua própria história
Tu és tu! E eu sou eu. Tu és precioso. Tens as tuas ideias, políticas, religiosas, não religiosas… Tens a tua visão do mundo, ou só a tua visão para ti mesmo. Mas eu também. A minha educação. Porque é que eu de repente me zango tão depressa por alguém me contradizer? Temos um temperamento, temos mesmo algo mais profundo do que isso, que é o inconsciente. Por isso, quando falo da necessidade de ser mais humilde, estar mais à escuta, isso deve-se à minha história. Os primeiros anos da infância marcam-nos. Por isso tenho de compreender o meu temperamento. Isso pode ajudar-me a compreender por que é tu estás sempre a falar, enquanto que eu permaneço em silêncio. Porque é que alguns estão sempre prestes a escapar-se na sua cabeça e não se ligam facilmente à realidade; gostam de pensar em coisas, mais do que estar em contacto com a realidade. Não é apenas algo que controlemos pela nossa vontade. Há o nosso inconsciente que devemos aprender a conhecer. Temos de descobrir onde estão os nossos medos, qual é o nosso maior medo. Porque esse é o problema fundamental. Talvez na tua história haja uma história de medo…

8. Detém os preconceitos: encontra-te com as pessoas
Nós somos apanhados na tirania da cultura, que é a minha cultura, o meu grupo, a minha religião, o meu partido político, meu isto, meu aquilo, porque isso dá-me segurança. Mas «ser humano» é «tornar-se livre». Livre de ser eu mesmo. Livre de me tornar um membro da humanidade. Vou contar-vos uma história de quando estava no Chile. Fui acolhido no aeroporto por Denis, para me conduzir a Santiago. E no caminho ele abrandou e disse: «À esquerda, todas as casas ricas são defendidas e protegidas pela polícia e pelos militares. Do outro lado estão as barracas». E depois disse: «Ninguém atravessa esta estrada. Toda a gente tem medo». Portanto, o grande truque para ser humano é encontrar as pessoas. Encontrar pessoas que são diferentes. E isto não são apenas grandes ideias! O grande truque é a experiência. As pessoas precisam de viver uma experiência, não de viver ideias. Como, por exemplo, ir do bairro rico para as barracas daquela cidade. Tu precisas de encontrar as pessoas, e descobrir que a outra pessoa é magnífica. Então, como criar encontros? É a grande questão.

9. Ouve o teu desejo mais profundo e segue-o
Nós somos diferentes, muito diferentes, dos pássaros e dos cães. Há hoje uma tendência que diz que os homens são como os animais. Claro que são! Mas os animais são muito diferentes. Nós, os seres humanos, não nos contentamos por comer e ter bebés. Há algo mais. Há uma espécie de infinito no nosso interior. Não ficamos satisfeitos com o que é finito. Queremos quebrar os muros das prisões. Chamo a isso a busca espiritual, a busca do infinito. Toda a gente quer isso! Quando se está sentado no alto da montanha a contemplar o mundo, o mar, o sol, a contemplar as flores! Contemplar de onde vem tudo isso? O universo começou, o universo terminará. Onde? Porque é que começou? E onde terminará? Eu tive a oportunidade, quando tive um grande desejo, aos 13 anos, de me juntar à Marinha de Guerra britânica em plena guerra; era perigoso, mas o meu pai escutou, e disse: «Se é o que tu queres, deves fazê-lo». Ele deve ter percebido que não era apenas um desejo vão. Era um desejo autêntico. E é o que eu chamaria hoje “a voz interior”. Qual é o teu maior desejo?

10. Lembra-te de que um dias morrerás
Eu não sou o rei do mundo, e seguramente não sou Deus! Sou apenas alguém que nasceu há 90 anos e que vai morrer daqui a poucos anos… e depois toda a gente me esquecerá. É a realidade. Estamos todos aqui, mas somos apenas pessoas de passagem, em viagem. Entramos no comboio, saímos do comboio, o comboio continua. A humanidade existe há milhões de anos, e aqui estamos nós hoje, qualquer que seja o ano, 2000 e qualquer coisa. E o mundo vai continuar quando eu já não estiver nele.

Jean Vanier
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 07.05.2019

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue