Há um menor múltiplo comum forte entre a ideia de que "os homens não choram" e a ideia consubstanciada na frase "uma nova sonoridade do fado". O que as une? A deseducação. No primeiro caso a deseducação dos sentimentos - um homem chora, pois claro - e, na segunda, uma deseducação dos sentidos: afinal se progredirmos sem pudor nem limite em sonoridades novas permanentes, um dia o fado já não é nada. Sobre sonoridades de fado já por aqui falei, pela equivalência que têm com as novas experiências gastronómicas. Motiva-me agora a deseducação dos sentimentos.
Conheço uma pessoa que não cessa de agradecer à família que a contratou há muitos anos para um determinado serviço e que se tornou, seguramente, na família nuclear dela; conheço uma pessoa que, tendo sido muito autónoma toda a vida, se vê agora numa situação de grande dependência; a todas as pessoas diz obrigado, por mais simples que seja a tarefa; eu próprio verbalizo com frequência um sentimento que não é consensual em quem me ouve: a ideia de ter dívidas de gratidão a pessoas cuja existência foi importante - ou mesmo determinante - em períodos da minha vida.
Como é fácil perceber, nos três exemplos revelados acima há algo que é comum: o agradecimento. Em nenhum dos casos se agradece um serviço prestado; em nenhum dos casos o agradecimento é um simples - ainda que importante - acto de cortesia. Não se agradece um café, um lugar no comboio, alguém que se debruça para nos apanhar algo que caiu no chão. O agradecimento de que falei acima é um agradecimento que vai além do desfocado da educação - é uma delicadeza do coração. Talvez eu já tenha agradecido almoços que eu próprio paguei, porque o importante não foi a qualidade das iscas, mas a profundidade da refeição.
Por trás da ideia de que um homem não chora há um estereótipo de força, de coragem, de ausência de medo, de uma certa auto-suficiência, de fragilidades que não se têm ou, seguramente, que não se mostram. Tendo a achar que as pessoas que perfilham estas ideias têm uma visão própria do agradecimento - seja à vida, seja aos outros. Afinal, pode dar-se o caso de de que aquilo que agradecemos é aquilo que não conseguimos fazer sozinhos - e isso prova que não somos auto-suficientes, o que pode ser constrangedor. Num certo sentido, o agradecimento é um nivelador: põe-nos a todos como criaturas iguais, com necessidades e fraquezas, dependências e disponibilidades.
JdB
3 comentários:
Uma perspectiva na qual nunca tinha pensado: o agradecimento como nivelador...
Obrigado pela visita. Também eu nunca tinha pensado nisso, se quer saber. E será que tenho razão?
Tão bonito e tão leal. Obg pela óptima reflexão, MZ
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