Refiro-me ao texto que postei há uns dias sobre o Ciúme, da autoria de Alfredo Castelino Carvalho. Em condições normais o texto ali ficaria, premiado ou criticado por um eventual comentário. Não conheço o autor em questão, e normalmente não me pronuncio sobre textos de outrem que aqui publico porque me suscitam um interesse qualquer. No entanto, o texto foi comentado por alguém que dele discordava. Ora, eu discordo da discórdia e, por isso, quebro a tradição, comentando um tema sobre o qual alguém escreveu.
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Se é verdade que o ciúme não é o oposto do amor, também é verdade que, numa moeda, a cara não é o oposto da coroa. Ambas têm uma função complementar, que é a de constituir um objecto que foi criado para a transacção comercial - a moeda. Podia a cara viver sem a coroa? Sim, mas não seria a mesma coisa.
Por outro lado, o ciúme não é a posse de alguém, mas a posse do sentimento de alguém. Eu não detenho a posse do corpo de quem vive comigo, mas desejo ter a posse do sentimento de quem vive comigo, ter uma espécie de exclusividade daquele afecto específico, porque noutros afectos (materna / paternal / outros) o coração não me pertence. O ciúme é, por isso, a angústia da perda de um sentimento, não (ou nem sempre) a angústia da perda de alguém.
Amar-se alguém é uma manifestação muito grande de fragilidade, porque é uma manifestação muito grande da nossa dimensão humana. Só o ser humano ama, e o amor que sente por outrem é o reconhecimento que não domina tudo, que não sabe tudo, que não pode tudo; por isso se une (ou quer unir) àquela pessoa, para que ela o complete, o aconselhe, o ajude a ser melhor. Amar é relacional e a dimensão relacional encerra, em si, a fragilidade inerente à vida conjunta de duas pessoas que estão lado a lado, não uma atrás da outra. O amor por alguém é a afirmação mais cabal da auto-insuficiência do ser humano, porque é a assunção de que sozinhos não se consegue tudo. Se amar é dar a vida e a alma a outro, se amar é querer isso também para si, só pode amar na plenitude quem está disposto a abdicar de algo que é seu, que o constitui e que o define. Ao fazê-lo, confia, entrega-se, depende.
O ciúme, por ser outra face (e talvez não a outra face) do amor, tem a sua dose de fragilidade, porque representa o medo da perda, a angústia da perda. Sentir ciúme é uma dupla fragilidade: a fragilidade da perda (ou da possibilidade de) relativamente à fragilidade do afecto. O ciúme evidencia a limitação do domínio: se há possibilidade de perda é que porque não se domina o objecto amado, ele tem uma liberdade que nos foi confiada, mas não entregue; O ciúme "saudável" evidencia o sentimento do amor. O ciumento não diz "quero-te" mas diz "quero o teu amor". Ora, se esse amor não é nosso por direito, temos de lutar por ele, fazermo-nos merecedores dele, desejá-lo. É por isso que amor e ciúme caminham de braço dado.
O amor não é dependência nem independência; o amor é inter-dependência; o ciúme é o horror à perda dessa inter-dependência. O amor, no fundo, não é para todos, apenas para os que são suficientemente fortes para perceber a sua fragilidade.
JdB
1 comentário:
Belíssimo texto.
No entanto, para mim, o ciúme é uma emoção secundária que surge da interacção, ou seja, da dimensão social dos ser humano. Está associada ao medo de se perder algo e não ao amor. O ciúme revela-se em todo o tipo de relações como nas intimas/amorosas, na amizade, na profissional e desde que haja uma ligação, uma conexão com outrem, o medo de perder essa qualidade, activa essa emoção adquirida. Ciúme não é barómetro da qualidade ou quantidade de amor, é apenas uma emoção que advém do nosso instinto de sobrevivência e da experiência da interacção.
Ciúme em doses equilibradas é um bem.
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