31 outubro 2022

Das frases importantes *

Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras.
Reinhold Niebuhr
***
Estou certo de que alguns dos meus fiéis leitores (nem que seja um...) conhecerá a frase acima, também conhecida como a oração da serenidade.  Cruzei-me com ela enquanto coleccionador de frases alheias, mesmo sabendo que uma boa citação pode não ser mais do que a defesa do ignorante. Mas fixei-a, e voltei mais tarde a ouvi-la em conversas que sempre me acrescentam valor. Não pretendo espantar ninguém com a originalidade da citação, apenas reproduzi-la para eventuais fins de memória futura.
Os escaparates das livrarias estão cheios de livros de auto-ajuda: a fé que salva, a esperança que determina, o deus que nos atende os telefonemas, as dietas do espírito, os alimentos que repõem as energias perdidas.  E no entanto, estou em crer que bastava esta frase para salvar os destroços em que nos tornamos ou, melhor ainda, para prevenir os naufrágios que provocamos ou de que somos vítimas. Alguém disse, não sei quem nem onde nem quando, que a felicidade não era mais do que a gestão das expectativas. Sim, sim, é verdade. E parece-me que este pensamento de autoria desconhecida e a frase de Reihold Niebuhr casam bem – como o pastel de nata e a canela, ou mesmo como o salmão e o endro.
Se alguém acha que dominar os pontos de açúcar é uma actividade complexa, que requer competências menos corriqueiras, é porque nunca manteve relações afectivas, quaisquer que sejam elas. É por isso que gostaria que alguém fizesse chegar aos ouvidos do ministro de educação este meu post. Esqueçam a divisão de orações d’ Os Lusíadas, actividade que, não só não tem interesse, como mata a diminuta ligeireza da obra; esqueçam a alteração da ideia de complemento directo para outra coisa qualquer; esqueçam a educação sexual, porque um cidadão educado não fala de sexo. Esqueçam tudo e ensinem, à custa de violência psicológica, subornos na forma de chocolates ou promessas incumpríveis, que quase tudo o que interessa saber sobre relações afectivas se resume àquela frase, toda assente em discernimento e força.
Há quem diga para telefonarmos que ele (Ele?) atende. Eu já tentei e consegui – a resposta que me veio lá de cima foi a frase do Niebuhr.
JdB
* publicado originalmente a 30 de Janeiro de 2015

30 outubro 2022

XXXI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 19,1-10

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus entrou em Jericó e começou a atravessar a cidade.
Vivia ali um homem rico chamado Zaqueu,
que era chefe de publicanos.
Procurava ver quem era Jesus,
mas, devido à multidão, não podia vê-l'O,
porque era de pequena estatura.
Então correu mais à frente e subiu a um sicómoro,
para ver Jesus,
que havia de passar por ali.
Quando Jesus chegou ao local,
olhou para cima e disse-lhe:
«Zaqueu, desce depressa,
que Eu hoje devo ficar em tua casa».
Ele desceu rapidamente
e recebeu Jesus com alegria.
Ao verem isto, todos murmuravam, dizendo:
«Foi hospedar-Se em cada dum pecador».
Entretanto, Zaqueu apresentou-se ao Senhor, dizendo:
«Senhor, vou dar aos pobres metade dos meus bens
e, se causei qualquer prejuízo a alguém,
restituirei quatro vezes mais».
Disse-lhe Jesus:
«Hoje entrou a salvação nesta casa,
porque Zaqueu também é filho de Abraão.
Com efeito, o Filho do homem veio procurar e salvar
o que estava perdido».

27 outubro 2022

Poemas dos dias que correm *

Depois da esperança, qualquer paz

Reconciliamo-nos sempre.
No fundo, e às vezes nem muito ao fundo,
a reconciliação nos espreita,
na mira da primeira fraqueza, da primeira humidade
de lágrima ou de sexo. Às vezes,
nem sequer disso: a poalha dispersa
que o sol define em branda agitação,
ou mesmo a própria luz num reflexo
(quanto mais breve e modesto melhor emociona)
lhe bastam.
Espreita-nos para que aceitemos, para que
pensemos noutra coisa ou nesse refúgio das pequenas coisas
que é, diz-se, não pensar em nada.
reconciliamo-nos pois. E amamos logo tudo,
ou, mais subtilmente, fingimos que do tudo
apenas uns sinais, algo de nobre
e muito humilde. Assim
como se a solidão se acompanhasse
de muitas outras reconciliações humanas, simultâneas,
paralelas, mas não connosco, de outrem.
Quase mais que a nossa própria nos espreita
a reconciliação, suposta apenas, de outros.

Jorge de Sena

26 outubro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 A GREGA DA TURQUIA MUDOU A HISTÓRIA

Nas voltas inimagináveis da vida, emergem personalidades extraordinárias, frequentemente a despontar em momentos adversos, onde as próprias circunstâncias hostis favorecem a clarificação das intenções e aptidões de cada um. É dos principais motivos por que muitos realizadores e argumentistas da Sétima Arte escolhem cenários de guerra e de enorme provação para fazer fluir as suas narrativas, sabendo quanto os ambientes de limite humano revelam melhor as personagens até ao tutano. Também assim acontece no dia-a-dia: quem conhecia a fibra de Zelensky, antes de as tropas de Putin invadirem a Ucrânia? Quem antecipava o talento de Van Gogh, que morreu apenas com uma tela vendida? 

Nesta Segunda, tive o privilégio de ver um filme, entre o documentário e a ficção, que está na fase dos ajustes finais. O autor é um dentista de sucesso, que aproveitou a fase de confinamento decretada durante a pandemia covid19, para se estrear num novo hobby – o cinema! Apesar de ser um homem dos sete-ofícios, dotado de sensibilidade artística, fez um curso de cinema para se familiarizar com o vasto potencial tecnológico à disposição de qualquer amador. Com raízes no Norte do país, soube filmar com mestria a beleza das paisagens e de alguma etnografia transmontanas, que servem de cenário a uma mensagem subtil e densa onde se reflecte sobre a arte, o artista e a origem mais profunda da obra de arte. Interpelativo e originalíssimo. Quando for do domínio público, poderá ser tema de um “gin”. Mas neste início de semana, já alimentou a animada conversa do jantar que se seguiu ao visionamento do filme. Quantas pessoas terão tirado tão bom partido da pandemia (começando e acabando em mim)? 

A originalidade do percurso individual confirma a condição única de cada ser humano. Mesmo os de vidas aparentemente pacatas e comuns poderão resguardar segredos e talentos inimagináveis, como foi o caso de Fernando Pessoa para quase todos. Há, depois, as existências implausíveis e fulgurantes, como a da inesperada soberana do garboso Império Romano, nascida numa família humilde da Turquia. Para lá da origem incomum para o cargo, ainda somou mais méritos e improbabilidades, como lembra um artigo gentilmente cedido pelo autor:

«A GREGA DA TURQUIA

É tão grande a multidão dos santos e santas que, ao fim de vinte séculos de cristianismo, não é possível celebrá-los todos. Destacam-se uns poucos, conforme a sensibilidade de cada época, mas todos contribuem para tornar gloriosa a história da Igreja. Entre esses santos, conta-se uma mulher do século IV, que se celebra no dia 18 de Agosto. Hoje em dia é menos lembrada, mas muitos a recordam, numa das quatro estátuas colossais que estão sob a cúpula da basílica de S. Pedro, uma em cada esquina, diante do altar papal. A estátua dela é obra do escultor Andrea Bolgi (1651).

Escultura de Santa Helena, na basílica de S. Pedro,
numa das quatro esquinas diante do altar papal

Nasceu na província romana de Bitínia, hoje no Norte da Turquia, junto ao Mar Negro, numa família pagã, pobre. Deram-lhe um nome que estava na moda, Helena, que significa de origem grega, apesar de a Bitínia não fazer parte da Grécia.

Ainda muito nova, quando trabalhava numa hospedaria, passou por lá o poderoso Tribuno romano Constâncio Cloro que reparou na elegância e na inteligência dela e a tomou como mulher. O direito romano não permitia que um Tribuno daquele estatuto se casasse com uma rapariga do povo, mas ninguém proibia que Cloro vivesse com ela. Tiveram um filho, chamado Constantino, que ainda muito novo se manifestou um líder extraordinário, adorado pelos exércitos sob o seu comando e pelo povo.

A carreira fulgurante de Constâncio Cloro elevou-o a César da Gália, da Grã-Bretanha e da Espanha, isto é, de toda a Europa romana da época, à excepção da Grécia e da Itália, e, chegou o momento em que lhe deu jeito casar-se com Teodora, filha do Imperador Maximiliano Hércules. Para isso, Cloro repudiou Helena e separou-a do filho de ambos, Constantino.

Este revés durou treze anos, até à morte de Constâncio Cloro, ocasião em que o jovem Constantino ascendeu a César e, por manobras políticas, batalhas vitoriosas e eliminação de adversários, chegou rapidamente a Imperador único de Roma. A partir desse momento, Helena tornou-se a mãe do Imperador, a quem ele se sentia profundamente ligado.

A aldeia em que Helena nasceu foi elevada a Cidade de Helena, «Helenópolis», e Constantino concedeu enorme autoridade à sua mãe e deu-lhe o título de «Augusta».

Foi nessa época que Helena se converteu ao cristianismo e realizou uma revolução na sociedade romana. Interessou-se pelos pobres, pelos doentes, pelos prisioneiros, pelos mineiros e por outros trabalhadores que viviam em condições difíceis. Era uma mulher poderosa, atraente, activa e inteligente, que sabia conviver com o povo e com os mais altos dignatários, com um grande sentido da justiça e uma autoridade inata, naquele ambiente dominado por homens violentos. Não se pense que a situação de Helena era fácil. A violência e os assassinatos eram comuns na corte e o próprio Constantino cometeu vários homicídios, até entre familiares próximos. Helena interveio, mas nem sempre chegou a tempo. A Igreja, até então perseguida, deveu-lhe muito.

Naqueles tempos, em que muitos dos que sobreviviam à nascença não chegavam aos 40 anos, Helena viveu —cheia de energia e actividade— até aos 80. Ainda nos últimos tempos, fez várias viagens, a principal das quais à Terra Santa, para se ocupar dos lugares da vida de Cristo.

Uma das medidas dos imperadores pagãos para combater o cristianismo tinha sido destruir os lugares mais sagrados da vida de Cristo: o Calvário onde foi crucificado, o túmulo, a gruta de Belém onde nascera, o Jardim das Oliveiras. Curiosamente, ao construírem templos pagãos nesses lugares, pretendendo apagar deles a memória de Cristo, documentaram para a história onde ficavam exactamente esses mesmos lugares. Helena dirigiu as obras de recuperação e as escavações para encontrar a Cruz do Salvador. Efectivamente, desenterraram no local três cruzes e encontrou-se a inscrição mandada colocar por Pilatos, «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus», como o atestam os Evangelhos de S. Mateus, de S. Marcos, de S. Lucas e de S. João. No entanto, subsistiam dúvidas sobre qual das três cruzes era a de Jesus, que ficaram esclarecidas quando um doente ficou curado milagrosamente ao tocar numa delas. Encontraram-se também os pregos que fixaram Jesus à Cruz e, por influência da mãe, o Imperador Constantino juntou um desses pregos ferrugentos às jóias do seu diadema imperial.

É impossível resumir aqui o que Santa Helena fez na Terra Santa e noutros lugares, porque manteve uma actividade incessante até aos 80 anos. A memória da Igreja recorda sobretudo a sua relação com a Cruz de Jesus e por isso a escultura gigantesca que está diante do altar papal, na basílica de S. Pedro, representa-a segurando devotamente a Cruz. Hoje, poucas vezes se celebra a memória de Santa Helena no dia 18 de Agosto, mas é fácil lembrarmo-nos dela na grande festa do dia 14 de Setembro, chamada da Exaltação da Santa Cruz.»


José Maria C.S. André – publicado em Agosto, 
em media canadianos e dos Açores  

Na misteriosa sequência da vida humana, claro que conta muito o que cada um faz com o tempo e as circunstâncias que lhe calham, segundo comprova o dentista talentoso, agora, realizador nas horas livres. É caso para dizer: ‘todos iguais, todos muito diferentes’, o que só não é uma constatação fantástica para quem queira impor à diversidade humana um igualitarismo redutor, necessariamente empobrecedor. Chegam a ser divertidos os desfechos menos prováveis da história, que baralham os cálculos dos mais astutos, iludidos com a miragem possessiva de controle da realidade. Quanta vaidade ou, simplesmente, quanto irrealismo sobre o magma que compõe a Vida, impregnada de uma novidade quase indomável! Felizmente, o curso do planeta azul escapa-nos, em parte, não parando de nos surpreender. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

25 outubro 2022

Dos desequilíbrios *

 O mundo não é mais do que o equilíbrio, temporariamente instável, de acções e reacções, de forças contraditórias e opostas, sendo que tudo se anula para que a esfera terrestre continue levemente achatada nos pólos, com partes desiguais de água e terra. O grande desafio é acreditarmos que o mundo se traduz, numa escala infinitamente mais pequena, naquilo que nós somos. Mesmo que não saibamos o número de forças que se digladiam internamente, há quem creia que ele é em número par, para que todas as nossas descompensações se ajustem. Há vidas globalmente equilibradas mas feitas de desequilíbrios – humores, feitios, opções, caminhos traçados. Há os excêntricos, os fora de centro, nos quais se nota essa desarmonia. Qual a diferença entre uns e outros? Não o número de forças que cada um contém dentro de si, mas o facto de serem em número impar ou em número par.


Alfredo Macuti in Fragmentos (não publicado)

***

O texto acima revela-nos uma premissa errada, ao afirmar que somos o reflexo do mundo. O que falha na frase? O alinhamento das palavras, mais coisas menos coisa. Em bom rigor, o mundo é o reflexo do nosso corpo e alma, é uma consequência da humanidade e da sua generosidade, cobiça, sentimentos de ira ou de pacificação, invejas e criatividades artísticas. Mas o mundo é também um reflexo menos óbvio das nossas lutas interiores que geram terramotos, chuvas ácidas, tempos amenos, outonos nostálgicos, vendavais ou nevões ou secas persistentes. A Terra não é mais do que o Homem, na sua composição dual de matéria e espírito, elevado a uma potência enorme. O mundo nas suas guerras, meteorologias, influências clientelares, generosidades imensas, disparidades é, de facto, o melhor espelho do ser humano.

Na termodinâmica, a entropia está vulgarmente associada à quantidade de ordem, desordem e/ou caos num sistema; quanto maior a entropia, maior a desordem. Diz a 2ª lei da termodinâmica: a quantidade de entropia de qualquer sistema isolado termodinamicamente tende a incrementar-se com o tempo, até alcançar um valor máximo. A conclusão é imediata: a entropia do universo tende para um máximo. Podemos criar ordem num certo ponto do universo mas, para que o equilíbrio global se mantenha, a desordem surgirá noutro ponto.

Recuperemos então o raciocínio inicial: o mundo é o espelho do ser humano, pois cada um de nós é um universo: gente gorda, elegante, de cabelos ruivos ou asa de corvo, com apetência para as matemáticas ou para as artes, generosos ou violentos, com apreço pelas novelas ou pelo novo cinema turco, por Eça ou Corin Tellado, pela companhia das índias ou naperons bordados a três dimensões. E só existe entropia no mundo porque existe entropia no nosso interior – vísceras e coração. O mundo, na sua imensidão geográfica, meteorológica, humana, é uma cópia ampliada do camponês da tundra, do lorde inglês, do rapaz maubere, da mulher casaque, do índio quechua. Todos eles, na sua diversidade de línguas e hábitos, tendem para a entropia máxima.

Retomemos o excerto de Alfredo Macuti. O nosso desafio individual é o de identificar os desequilíbrios internos. Mais do que saber quais, é saber quantos. Mais do que reconhecer o gosto desmesurado pelo jogo ou pelas substâncias nocivas, a facilidade do grito ou do estalo, o excesso de dispêndio financeiro ou a sua inversa, cabe-nos o exercício da contabilidade mais comezinha: qual o número daquilo que em nós é excesso?

Não me havendo atirado nunca à estatística ou análise mais detalhada destas coisas, arrisco uma certeza: todos os nossos desequilíbrios são em número impar, pelo que volto a discordar do texto com que arranca esta divagação. Se dizemos de nós próprios que somos excessivamente avaros e excessivamente humildes e que, com esse deve-haver nos equilibramos, é porque estamos desatentos e nos falta o discernimento sobre o terceiro. A seca na Bolívia não se equilibra com a chuva persistente na Ucrânia, pela simples razão de que houve um terramoto na Islândia que não foi equilibrado com algo de sentido contrário no ponto inverso do mundo.  

Estamos assim num permanente desequilíbrio – como está o mundo, afinal. As forças que se digladiam dentro de nós são imorredouras enquanto nós o formos também. Acompanham-nos na singeleza da nossa vida diária, nas grandes opções que duram uma vida, na forma como olhamos para os outros e lhes estendemos uma mão aberta ou um punho fechado. Por mais que pensemos e desejemos, achando que um pensamento profundo afecta uma existência, somos sempre um número impar em nós. Cabe-nos descortinar o único artifício gratuito, eterno, inesgotável que torna tudo par. Já o encontrei, falta-me apenas tudo o resto.

JdB   

* publicado originalmente a 8 de Maio de 2014

24 outubro 2022

Músicas dos dias que correm *

 


Vim devolver
Vim devolver a mão da vossa filha, hmmJá não dá pra continuar, eu não mereçoMiúda prendada, bonita, hmmJá não da pra continuar, mama, desculpas peço
Eu vim trazer de volta a vossa filhaEu tentei mas eu não conseguiAi, desculpaMiúda prendada, carinhosa, hmmJá não da pra continuar, mama, desculpas peço
Ela cozinha muito bem, eu é que não como em casaEla me espera toda noite, e eu só chego à madrugadaEla me trata muito bem, eu é que me zango à toaOh, meus sogros, vou
Eu sou da ruaEu sou da noite, eu sou da NguendaEu sou do corpo, eu não mereçoEu não mereço, iêiê
Já agoraMe desculpa pelas vezes que não dormi em casaDisse que estava de serviço, era mentiraA vizinha que você desconfiava, era verdadeEra verdade, hmm
Você cozinha muito bem, eu é que não como em casaVocê me espera toda noite, eu só chego à madrugadaVocê me trata muito bem, eu é que me zango à toaAiue, oh, minha mulher
Eu sou da ruaEu sou da noite, eu sou da NguendaEu sou do corpo, mulherEu não mereço, eu não mereço
Quando compravas vestidos só pra me agradar(Estava nem aí)Quando choravas de noite sozinha
Quando querias um colo pra poder chorar(Estava nem aí)Quando tudo acabou pra ti
Eu sou da ruaEu sou da noiteEu sou da NguendaEu sou do corpo, mulherEu não mereço, eu não mereço
Eu sou da ruaEu sou da noiteEu sou da NguendaEu sou do corpo, mulherEu não mereço, eu não mereço

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* enviado por mão amiga

23 outubro 2022

XXX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 18,9-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus disse a seguinte parábola
para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros:
«Dois homens subiram ao templo para orar;
um era fariseu e o outro publicano.
O fariseu, de pé, orava assim:
'Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros,
nem como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e pago o dízimo de todos os meus rendimentos'.
O publicano ficou a distância
e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu;
Mas batia no peito e dizia:
'Meu Deus, tende compaixão de mim,
que sou pecador'.
Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa
e o outro não.
Porque todo aquele que se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».

21 outubro 2022

Da conversa

Praga, Setembro de 2022

Afiançam-me que o provérbio é alentejano: à mesa não se envelhece. Agustina Bessa-Luís, numa caracterização do nosso colonialismo, afirmou que ao português, ao contrário dos franceses ou dos ingleses, não lhe interessava impor nada, mas apenas estabelecer entrepostos. 

Há, entre o provérbio alentejano e a caracterização agustina, uma similitude evidente, que assenta num elemento que lhes é comum: a conversa. Ao alentejano, homem sabedor

(a sesta é uma prova de grande sabedoria, mais do que de grande preguiça)

não lhe ocorre dizer que a comer não se envelhece. Mas sabe que à mesa se conversa, e é essa actividade que previne o envelhecimento. Por outro lado, para além de acharmos que é o sorriso que estabelece o comércio entre as pessoas, é a conversa que promove os negócios e suscita as soluções. A criação de um entreposto é a edificação de um centro de conversas. Uma negociação é um diálogo, não um combate. Nada cai pior ao dono de um entreposto do que um negociante muito avaro ou muito perdulário. Mais do que a alienação de um artigo de inventário, ao comerciante interessa a barganha. 

Neste sentido, estar à mesa ou ser dono de um entreposto são actividades iguais, porque implicam a conversa. A conversa é o sorriso dos mudos, é a dança dos que não sabem agitar-se, é o abraço dos que vivem distantes. A conversar ninguém envelhece.

JdB

20 outubro 2022

Poemas dos dias que correm *

Do infinito variável

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Carlos Drummond de Andrade

19 outubro 2022

Textos dos dias que correm

A Impossibilidade de Renunciar

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!... Há na minha vida um bem lamnetável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros...

Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa" 

17 outubro 2022

Da serenidade e de outros coisas diversas para o dia de hoje *

Um destes dias, uma esplanada da zona, um fim de tarde ameno e uma companhia aprazível. Ao meu lado, em mesa demasiado próxima, duas pessoas conversam sem preocupações de sigilo ou pudor. É impossível não escutar o que dizem, o que respondem. Talvez mesmo o que pensam, se bem que não tenha a certeza. 

Fulano (ou seria fulana?) diz para beltrano (entre parênteses igual ao prévio): sabes, juntamente  com este e aquele (ou esta e aquela) és a pessoa que conheço que vive com maior serenidade. Nada parece afectar-te muito. Beltrano percebe-se que sorri, encolhe ligeiramente os ombros e balbucia o que parecem ser modéstias e fórmulas não testadas cientificamente. Mas o tema está lançado: a serenidade.   

Agarremos cinco palavras que no fundo são quatro: serenidade, desgostos, inquietação, vidas fagueiras. Busquemos os livros de matemática e falemos de cálculo combinatório: arranjos, permutações e combinações. Encontramos tudo, quase como se tendesse para infinito: gente com desgostos e inquieta, gente com desgostos e serena, gente fagueira assim e assado. O que distingue uns dos outros? Agarremos nas vidas difíceis: o que está por trás dos que serenam e o que está por trás dos que se inquietam? É o trabalho feito interiormente - a fé, a confiança, a escuta própria e dos outros - ou a ausência disto ou de coisas semelhantes? Podemos falar, como dizia o interlocutor da mesa do lado, de uma química interior? Quem não consegue e se queda numa inquietação permanente tem falta de jeito, de vontade - ou falta-lhe uma química interior, uma enzima, um metal, um ião positivo?

Falar no trabalho interior (e encurto propositadamente) é condecorar o agente, apondo por baixo da medalha: por ter-se excedido no cumprimento do dever. Um excedeu-se, e serenou, o outro não o conseguiu e vive em sobressalto. E se é uma enzima (encurto e etc.)? Se é um gás raro que habita uns e não outros? Juntamos uma injustiça à injustiça da vida? O que distingue, na realidade, uns e outros? Há pessoas virtualmente incapazes - sem recurso a medicamentos - de atingirem a serenidade? É o feitio?

Ainda quis ouvir a conclusão da mesa ao lado mas já não consegui, que a conversa mudou para o sporting, talvez. Ou seria a escola dos miúdos?

*** 

Ontem, por motivos que se prendem com o dia de hoje, surgiu a expressão nostalgia em aniversariar.  Se acreditarmos que, como dizia Vitor Hugo, nostalgia é a felicidade de estar triste, vou ter de pensar se a frase acima é verdade. 

No final de Agosto de 2008, depois de uma noite memorável no Pointe (Harare, Zimbabwe) para uma sessão de Karaoke, escrevi: a alegria pode ser um túnel todo iluminado. É injusto que se veja ao longe um brilho que se extinguiu, como se algo nos dissesse que todo o gozo tem uma sombra de nostalgia. Talvez haja aqui um pouco de resposta, sei lá eu...

JdB

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* Publicado originalmente a 30 de Outubro de 2014. Retirei o último parágrafo por ser datado e não fazer sentido nesta re-publicação.

16 outubro 2022

XXIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 18,1-8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus disse aos seus discípulos uma parábola
sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar:
«Em certa cidade vivia um juiz
que não temia a Deus nem respeitava os homens.
Havia naquela cidade uma viúva
que vinha ter com ele e lhe dizia:
'Faz-me justiça contra o meu ad
versário'.
Durante muito tempo ele não quis atendê-la.
Mas depois disse consigo:
'É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens;
mas, porque esta viúva me importuna,
vou fazer-lhe justiça,
para que não venha incomodar-me indefinidamente'».
E o Senhor acrescentou:
«Escutai o que diz o juiz iníquo!...
E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos,
que por Ele clamam dia e noite,
e iria fazê-los esperar muito tempo?
Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa.
Mas quando voltar o Filho do homem,
encontrará fé sobre esta terra?»

14 outubro 2022

Textos dos dias que correm *

Últimos conselhos de uma mãe a seu filho

«Filho, fui eu que te criei. Sustentei-te de restos, de pobreza, de humildade. Só pensei em ti: tu tens, portanto, obrigação de ouvir os últimos conselhos que te dou. Olha que és o meu filho, o filho que criei de dia, de noite, de fome, de obediência e de sonho amargo. Criei-te para que pudesses um dia pertencer às classes elevadas. Por isso sofri, para isso sonhei, para isso desapareço, agora que cumpri o meu destino.

Filho: mente. Às pessoas ricas é preciso mentir sempre e dizer sempre que sim. Deve-se-lhes consideração, deve-se-lhes obediência. Nunca te ligues com os pobres. Para pobres bastamos nós. A pobreza pega-se, não há nada no mundo pior que a pobreza. Tem cuidado com a língua. Pela boca morre o peixe. Nunca digas o que sentes: o que a gente sente é sempre uma inconveniência. Há pessoas que dizem: - Eu gosto que me contradigam. - Foge delas como o Diabo da cruz. O que toda a gente quer é que os outros sejam da sua opinião. Só os ricos têm direito de contradizer os pobres. Um pobre não deve ter opinião. Guarda as conveniências, acima de tudo guarda as conveniências.

O mundo antigo tinha muito de bom; sabendo-se ser agradável arranjava-se lá um cantinho. A morte é indispensável para as pessoas herdarem, e para nos dias de luto se desanojarem os ricos. Foge do pecado. Sê religioso e temente a Deus. Nunca digas mal de ninguém. E habitua-te filho, habitua-te que é o grande segredo da vida. Habitua-te a cumprir os teus deveres para com a sociedade. O dever acima de tudo, o dever de te subordinares para que te não queiram mal. Não te esqueças também dos pequenos deveres de cortesia. Não te esqueças de que no dia 21 de Julho faz anos o teu padrinho, nem de deixares cartões de visita às pessoas respeitáveis. Há as que fingem que não reparam nessas coisas. São as piores, são as que reparam mais. Respeita. Respeita a lei, os superiores, a Igreja, os ricos. Num caso grave da tua vida chega-te ao pé do conselheiro Pimenta e diz-lhe com humildade: - Eu sou filho da Restituta que era prima de V. Ex.ª - E mais nada. Não sejas causa de desordem nem de escândalo. Fala baixinho, e mente, filho, mentir não custa nada. Nunca digas a verdade porque pode vir a saber-se. Deus nos livre da verdade. Mente para seres agradável aos outros e a ti mesmo. E, sobretudo, repito-te, diz sempre que sim. Não custa nada dizer que sim, dizer a tudo que sim, dizer sempre que sim.

Tua mãe,

Restituta da Piedade Sardinha 


raul brandão
húmus
frenesi
2000

13 outubro 2022

Das frases que se querem ouvir *

 


O excerto de filme acima é o final do África Minha. Apesar da cena do clube exclusivamente masculino aberto para uma mulher, retratando com elegância britânica uma certa rendição àquela dinamarquesa tão cheia de coragem e infortúnio, o que me captou a atenção foi uma cena um pouco mais tarde, aos 1'52", quando a protagonista diz ao criado: I want to hear you say my name. Farah, o criado, sabe o nome de Karen, a patroa, e di-lo de forma pausada, como um sentimento que se quer vivido em câmara lenta, para que seja mais claro e fique a ressoar no tempo. Ela sabe que ele sabe - e, não obstante, quer ouvi-lo.

Todos nós, cada um à sua maneira, somos baronesas Blixen, pedindo aos nossos mais próximos que profiram o nosso nome. Karen representa uma variedade imensa de frases que desejamos ouvir de forma pausada e lenta: sou teu amigo, amo-te, fazes-me falta, ajuda-me, tenho saudades, não sei o que fazer, vem comigo senão perco-me, diz-me como farias, fica, quero ficar, ajuda-me, sei que sabes, nem sempre é fácil, havemos de chegar, sou feliz, sonho-te feliz, quero que digas o meu nome. Todos sabemos que eles sabem e, não obstante, queremos ouvi-lo, nem sempre realizando que por vezes as baronesas Blixen são os outros, remetendo para nós o papel de Farah.

Karen nunca mais viu Farah. Farah nunca mais viu Karen. O que os uniu para sempre não foi a casa que se encheu de refinamento europeu, a escola que ensinou o bê-á-bá às crianças, o gramofone que rompeu de beleza musical um silêncio já de si belo. O que os uniu para sempre foi a cheia que tudo levou, o fogo que tudo consumiu, a avioneta que se despenhou sobre um sonho. O que os uniu para sempre, por mais irónico que possa parecer, foi o fim de uma vida quimérica construída no sopé de uma montanha. O que os uniu para sempre foi um diálogo composto de duas frases:

I want to hear you say may name.
You are Karen, m'sabu.

JdB 

* publicado originalmente a 3 de Agosto de 2015

12 outubro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

A NATUREZA GOSTA DO SILÊNCIO 

FALTA-NOS SILÊNCIO

Nestes tempos agitados e perigosos em que vivemos, urge convocar as vozes sábias, porque têm o condão de descobrir razões para acreditar no futuro, desencantando oásis de paz no meio das piores calamidades. O segredo da amiga dos indigentes, para recuperar o sentido profundo da vida, começava na desintoxicação do bruaá agitado e barulhento do dia-a-dia: 

NO SILÊNCIO 

«Não podemos encontrar a Deus no barulho e na agitação. 

Veja-se a natureza: 
as árvores, as flores e a erva dos campos crescem em silêncio;
as estrelas, a Lua e o Sol movem-se em silêncio.

O essencial não é o que nós dizemos, mas o que Deus nos diz e o que Ele diz a outros através de nós.

Ele escuta-nos no silêncio; no silêncio fala às nossas almas. No silêncio é-nos dado o privilégio de escutar a sua voz:
Silêncio dos olhos.
Silêncio dos ouvidos.
Silêncio da boca.
Silêncio do espírito.
No silêncio do coração, Deus falará.

Precisamos do silêncio do coração para ouvirmos a Deus em todo o lado — na porta que se fecha, numa pessoa que reclama a nossa presença, nos pássaros que cantam, nas flores e nos animais. Se estivermos atentos ao silêncio, não teremos dificuldade em orar. Há tanta tagarelice, coisas repetidas, coisas escusadas, naquilo que dizemos e escrevemos. A nossa vida de oração é afetada pelo facto de o nosso coração não estar em silêncio. Vou ter mais cuidado em manter o silêncio no meu coração, para, nesse silêncio, ouvir as suas palavras de conforto e, da plenitude do meu coração, consolar Jesus escondido no infortúnio dos pobres.

Os contemplativos e os ascetas de todos os tempos e de todas as religiões sempre procuraram a Deus no silêncio e na solidão dos desertos, das florestas e das montanhas. Jesus viveu quarenta dias em absoluta solidão, passando longas horas num coração a coração com o Pai, no silêncio da noite.

Ciclicamente, também somos chamados: a retirar-nos para um silêncio mais profundo, num isolamento com Deus; a estar a sós com Ele, não com os nossos livros, os nossos pensamentos, as nossas recordações, mas num despojamento perfeito; a permanecer na sua presença – silenciosos, vazios, imóveis, expectantes.»

Santa Teresa de Calcutá (1910-1997), in «Não há maior amor» 

Ressoa claramente nos conselhos da fundadora das Irmãs da Caridade o antigo provérbio português: ‘se as palavras são de prata, o silêncio é de ouro’. Porém, esta máxima conhece uma excepção na música, mais ainda quando é interpretada por uma criança num momento especialmente doloroso, como aconteceu com a serenata deste rapazinho ucraniano, em Março de 2022. Na sua simplicidade, a fé inspirou-lhe especial confiança e mansidão para reagir à selvática agressão das tropas russas contra o seu país, devastado por um rasto de morte, tortura e saque: 

https://twitter.com/i/status/1506070567455125506

Entretanto, a gravação tornou-se viral, ajudada pela tenra idade de um miúdo incrivelmente convicto, pela invulgaridade do símbolo escolhido para falar com Jesus e até pela letra do cântico entoado em ucraniano (aqui na tradução disponível): «I sing, God, for the living and for the dead. / Alleluia, alleluia, alleluia./ And I say ‘God, save us and Ukraine.’ I say to God ‘I love you’.». Antes de se afastar do enorme crucifixo de pedra, a criança faz o sinal da cruz na sequência ortodoxa, da direita para a esquerda e conclui com uma vénia. 

Como era bom sermos contagiados pelo ânimo, pela esperança límpida deste pequeno sábio. A vida no planeta agradecia…

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

10 outubro 2022

Textos dos dias que correm

 A Riqueza de Espírito no Estado de Doença

Considerando como a doença é comum, como é tremenda a mudança espiritual que traz, como é espantoso quando as luzes da saúde se apagam, as regiões por descobrir que se revelam, que extensões desoladas e desertos da alma uma ligeira gripe nos faz ver, que precipícios e relvados pontilhados de flores brilhantes uma pequena subida de temperatura expõe, que antigos e rijos carvalhos são desenraizados em nós pela acção da doença, como nos afundamos no poço da morte e sentimos as águas da aniquilação fecharem-se acima da cabeça e acordamos julgando estar na presença de anjos e harpas quando tiramos um dente, vimos à superfície na cadeira do dentista e confundimos o seu «bocheche... bocheche» com saudação da divindade debruçada no chão do céu para nos dar as boas-vindas - quando pensamos nisto, como tantas vezes somos forçados a pensar, torna-se realmente estranho que a doença não tenha arranjado um lugar, juntamente com o amor, as batalhas e o ciúme, por entre os principais temas da literatura.

Virginia Woolf, in "Acerca de Estar Doente"

09 outubro 2022

XXVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Lc 17,11-19

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
indo Jesus a caminho de Jerusalém,
passava entre a Samaria e a Galileia.
Ao entrar numa povoação,
vieram ao seu encontro dez leprosos.
Conservando-se a distância, disseram em alta voz:
«Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».
Ao vê-los, Jesus disse-lhes:
«Ide mostrar-vos aos sacerdotes».
E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra.
Um deles, ao ver-se curado,
voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz,
e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus
para Lhe agradecer.
Era um samaritano.
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Não foram dez que ficaram curados?
Onde estão os outros nove?
Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus
senão este estrangeiro?»
E disse ao homem:
«Levanta-te e segue o teu caminho;
a tua fé te salvou».

06 outubro 2022

Do gosto pelo frio *

No seu ensaio Nautilus (1975, parece-me, e já citado neste estabelecimento) Roland Barthes afirma: 

"O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. Ora, todos os barcos de Júlio Verne são, realmente, perfeitos ambientes de aconchego, e a grandeza de seu périplo aumenta ainda mais a felicidade de sua clausura, a perfeição de sua humanidade interior. Sob este aspecto, o Nautilus é a caverna adorável: o prazer da clausura atinge o seu paroxismo quando, no seio dessa interioridade sem fissuras, é possível ver através de uma imensa vidraça o vago exterior das águas e assim definir assim num mesmo gesto o interior pelo seu contrário."

Por seu lado, na sua História do Fado, Pinto de Carvalho refere a “(...) teoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da mímica como expressão dos afectos e movimentos físicos, diz que a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta.

Só aparentemente há dissociação entre estas duas citações. E a ligação entre ambas é tão forte que consigo ainda juntar-lhe um outro vector sem que nada se perca: o apreço pelo frio como revelador de uma insegurança. Raciocinemos:

É muito pouco provável que o gosto pelo frio ou pelo calor esteja na ordem do conforto corporal mais físico. Isto é - ainda que não possamos afirmar, categoricamente (e cito), que "o frio é um estado de espírito" - podemos dizer que, tomadas as devidas precauções de roupa em quantidade qb, o que define se gostamos de temperaturas elevadas ou baixas é o nosso interior mais profundo, não uma infinidade de sensores à flor da pele que enviam sinais para o cérebro. 

O frio, tal como a música triste, é centrípeta. O frio convida ao recolhimento, ao gorro, à gola levantada do sobretudo, à proximidade com a lareira, ao aconchego de uma manta. O calor, pelo contrário, é centrífugo: convida às janelas abertas, aos grandes espaços, às bebidas alegres, aos sorrisos rasgados, aos movimentos amplos. Assim, o gosto pelo frio (e podemos aqui acrescentar o tempo outonal, o nevoeiro, o encurtar dos dias) revela, não uma resistência à intempérie ou uma mentalidade depressiva, mas um movimento de recolhimento. Gostar do frio é gostar do conforto da casa com tudo o que isso representa. Talvez gostar do frio não seja então um simples prazer - como ouvir música ou cozinhar ou conviver com amigos - mas também uma fragilidade, uma necessidade. E se entendermos que o movimento centrípeto da existência humana é a tal "felicidade da clausura", podemos então afirmar que o frio é uma espécie de Nautilus. Gostar do frio é ter a necessidade do "perfeito ambiente do aconchego." E nesse sentido, a nossa apetência pelas temperaturas altas ou baixas é reveladora, apenas, de uma aparente (in)segurança.

Gostar do frio (ou do nevoeiro, ou do cair da folha) ou de calor não revelam apenas resistências físicas, mentalidades depressivas ou alegres. O gosto pelas temperaturas altas ou baixas diz-nos muito mais das pessoas do que se pensa. Não ficamos tristes porque gostamos do frio nem gostamos do frio porque somos tristes. Não há aqui gosto, como quem se atira a um pop ou a uma milonga, mas necessidade. "Apreciar" o frio e, nesse sentido, a dor centrípeta é, tão só, uma metáfora para a procura de uma segurança. 

JdB

* publicado originalmente a 8 de Outubro de 2015, talvez não estivessem 30ºC...

04 outubro 2022

Crónicas de um participante de congresso internacional (III)

 Parte desta crónica tem um tom vagamente elitista. Talvez eu tenha sido afectado por um excesso de cansaço aquando do momento que suscita esta primeira parte.

À minha mesa num jantar restrito estão pessoas com formação universitária: vários médicos, uma arquitecta, uma bióloga. São pessoas urbanas, com um certo mundo. A mesa está posta com algum requinte: guardanapos de pano, copos diversos, menu impresso, prato do pão. 

Olho à volta e os meus comensais tiram o pão indiscriminadamente, sendo que a maioria dos que come pão o tira do lado que está à sua direita. A uma dada altura alguém reclama - ou apenas levanta uma interrogação - e eu explico (foi o cansaço que me levou à explicação, não a genica educativa): "o prato do pão está sempre à esquerda, porque os copos estão sempre à direita." E acrescento: "o protocolo tem sempre por trás uma razão lógica". As pessoas acham graça e há alguém que diz: "mas se tirarmos todos do mesmo lado - mesmo que seja do lado direito - então está tudo bem." O meu cansaço aumenta: "Não. O lado do prato do pão não é opcional; já o guardanapo fica do lado direito ou do lado esquerdo, consoante uma tradição francesa ou inglesa." Os meus colegas riem-se, e dizem que é por isso que eu sou presidente de uma organização mundial. 

Não há aqui elitismo, mas um olhar sociológico. Será que as pessoas, apesar de urbanas, sabem o que é um prato do pão, a etiqueta, o protocolo, as razões por trás das coisas serem feitas assim ou assado? E saberão que estas coisas também são importantes, para não cairmos numa certa cafrealização?  

***

Quando comecei nestas andanças internacionais cruzava-me com um israelita. Perguntei-lhe um dia: "não comes porco?" E ele respondeu: "claro que como!".  Agora tenho um colega sul-africano que é judeu. Percebi isso quando o convidei para um webinar a um sábado e ele recusou, dizendo que a religião dele não permitia. Voltei a perceber quando ele disse que chegaria mais tarde a esta conferência internacional por causa do ano novo judeu.

Sábado, no final de uma sessão, o meu colega quer fazer uma pergunta. Sugerem-lhe que se aproxime do microfone mas alguém diz que ele não pode, por causa da religião. Fui tentar perceber o que tinha o microfone a ver com o ser judeu. A resposta foi simples: é sábado, e os judeus não podem fazer nada que se assemelhe a trabalho; ora, aproximar-se de um microfone e fazer uma pergunta é considerado trabalho. Fazer em voz alta não é. Estamos sempre a aprender qualquer coisa.

JdB 

02 outubro 2022

XXVII Domingo do Tempo Comum

EVANGEHO - LUCAS 17,5-10

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os Apóstolos disseram ao Senhor:
«Aumenta a nossa fé».
O Senhor respondeu:
«Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira:
'Arranca-te daí e vai plantar-te no mar',
e ela obedecer-vos-ia.
Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado,
lhe dirá quando ele volta do campo:
'Vem depressa sentar-te à mesa'?
Não lhe dirá antes:
'Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires,
até que eu tenha comido e bebido.
Depois comerás e beberás tu.
Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou?
Assim também vós,
quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei:
'Somos inúteis servos:
fizemos o que devíamos fazer'».

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