FALTA-NOS O SILÊNCIO – II
Uma meditação da Madre Teresa de Calcutá (citada no “gin” 12.OUT.2022) lembrava que a natureza privilegia o silêncio, porque tudo medra melhor na tranquilidade de uma azáfama subtil, sem barulho, quase imperscrutável aos ouvidos humanos.
Conta uma lenda que um lavrador perdeu o seu relógio de estimação, herdado da família, cujo modelo antigo já não estaria ao seu alcance voltar a arranjar. Inconsolável com tamanho desgosto, virou do avesso o celeiro onde lhe perdera o rasto, mas nada. Acorreu-lhe, então, pedir ajuda a umas crianças que brincavam por ali, aliciando-as com a promessa de uma boa recompensa para quem descobrisse o magnífico relógio. Cheios de ânimo, os miúdos revolveram o ‘local do crime’ de cima a baixo, mas nada.
Triste e já preparado para dar o caso por encerrado, o lavrador vê aproximar-se um miúdo, que lhe pede para voltar ao celeiro sozinho para nova pesquisa. Claro que anuiu ao insólito pedido, pois pior não ficaria. Ao cabo de algum tempo, a criança voltou com o relógio na mão! Parecia magia! Nem dava para acreditar. Precipitaram-se logo sobre o rapaz, para perceber como tinha conseguido dar com aquela peça tão pequena. A maior surpresa veio da resposta sábia da criança: «mal entrei, sentei-me no chão e fiquei à espera, em silêncio, para ouvir o tique-taque do relógio (antigo, de corda) e perceber de onde vinha o som».
O título da lenda varia entre “o poder do silêncio” e “escolhi esperar”, na senda da velha recomendação ‘pára, escuta e olha’, que valoriza a atitude expectante, capaz de dar maior atenção ao que nos rodeia. As vantagens são múltiplas, segundo os psicólogos que advogam o silêncio para maior concentração, auto-conhecimento, amadurecimento interior, capacidade de adaptação e até para aumentar a criatividade. Aplica-se igualmente à oração, para a escuta da voz de Deus e para melhor entender os refolhos da alma humana. É também considerada a atitude adequada para resolver problemas complexos, pois oferece o espaço de tranquilidade que melhora a percepção e a capacidade de engendrar respostas criativas. Einstein foi claríssimo: «The monotony and solitude of a quiet life stimulates the creative mind». Até o agitado Picasso prescrevia ao artista a solidão silenciosa: «Without great solitude, no serious work is possible». Está longe da passividade, menos ainda do alheamento da realidade. É apenas uma abordagem menos comum, menos vocal numa sociedade empanturrada num bruaá barulhento e atordoante.
Indo mais longe, Bento XVI elogiou o silêncio, precisamente, no Dia Mundial da Comunicação Social (2012), explicando o seu elo intrínseco e complementar com a palavra, para permitir uma comunicação mais rica. Dalai Lama afirmava que «o silêncio é, por vezes, a melhor resposta» e Pitágoras considerava que «os insensatos distinguem-se pela conversa, enquanto os sábios pelo silêncio», porque implica boa dose de sabedoria e subtileza ser-se mais silencioso e não comunicar apenas por palavras:
«SILÊNCIO E PALAVRA: caminho de evangelização
(D)esejo partilhar convosco algumas reflexões sobre um aspecto do processo humano da comunicação que, apesar de ser muito importante, às vezes fica esquecido, sendo hoje particularmente necessário lembrá-lo. Trata-se da relação entre silêncio e palavra: dois momentos da comunicação que se devem equilibrar, alternar e integrar entre si para se obter um diálogo autêntico e uma união profunda entre as pessoas. Quando palavra e silêncio se excluem mutuamente, a comunicação deteriora-se, porque provoca um certo aturdimento ou, no caso contrário, cria um clima de indiferença; quando, porém se integram reciprocamente, a comunicação ganha valor e significado.
O silêncio é parte integrante da comunicação e, sem ele, não há palavras densas de conteúdo. No silêncio, escutamo-nos e conhecemo-nos melhor a nós mesmos, nasce e aprofunda-se o pensamento, compreendemos com maior clareza o que queremos dizer ou aquilo que ouvimos do outro, discernimos como exprimir-nos. Calando, permite-se à outra pessoa que fale e se exprima a si mesma, e permite-nos a nós não ficarmos presos, por falta da adequada confrontação, às nossas palavras e ideias. Deste modo abre-se um espaço de escuta recíproca e torna-se possível uma relação humana mais plena. É no silêncio, por exemplo, que se identificam os momentos mais autênticos da comunicação entre aqueles que se amam: o gesto, a expressão do rosto, o corpo enquanto sinais que manifestam a pessoa. No silêncio, falam a alegria, as preocupações, o sofrimento, que encontram, precisamente nele, uma forma particularmente intensa de expressão. Por isso, do silêncio, deriva uma comunicação ainda mais exigente, que faz apelo à sensibilidade e àquela capacidade de escuta que frequentemente revela a medida e a natureza dos laços.
Quando as mensagens e a informação são abundantes, torna-se essencial o silêncio para discernir o que é importante daquilo que é inútil ou acessório. Uma reflexão profunda ajuda-nos a descobrir a relação existente entre acontecimentos que, à primeira vista, pareciam não ter ligação entre si, a avaliar e analisar as mensagens; e isto faz com que se possam compartilhar opiniões ponderadas e pertinentes, gerando um conhecimento comum autêntico. Por isso é necessário criar um ambiente propício, quase uma espécie de «ecossistema» capaz de equilibrar silêncio, palavra, imagens e sons.
Grande parte da dinâmica actual da comunicação é feita por perguntas à procura de respostas. Os motores de pesquisa e as redes sociais são o ponto de partida da comunicação para muitas pessoas, que procuram conselhos, sugestões, informações, respostas. Nos nossos dias, a Rede vai-se tornando cada vez mais o lugar das perguntas e das respostas; mais, o homem de hoje vê-se, frequentemente, bombardeado por respostas a questões que nunca se pôs e a necessidades que não sente. O silêncio é precioso para favorecer o necessário discernimento entre os inúmeros estímulos e as muitas respostas que recebemos, justamente para identificar e focalizar as perguntas verdadeiramente importantes. Entretanto, neste mundo complexo e diversificado da comunicação, aflora a preocupação de muitos pelas questões últimas da existência humana: Quem sou eu? Que posso saber? Que devo fazer? Que posso esperar? É importante acolher as pessoas que se põem estas questões, criando a possibilidade de um diálogo profundo, feito não só de palavra e confrontação, mas também de convite à reflexão e ao silêncio, que às vezes pode ser mais eloquente do que uma resposta apressada, permitindo a quem se interroga descer até ao mais fundo de si mesmo e abrir-se para aquele caminho de resposta que Deus inscreveu no coração do homem.
No fundo, este fluxo incessante de perguntas manifesta a inquietação do ser humano, sempre à procura de verdades, pequenas ou grandes, que dêem sentido e esperança à existência. O homem não se pode contentar com uma simples e tolerante troca de cépticas opiniões e experiências de vida: todos somos perscrutadores da verdade e compartilhamos este profundo anseio, sobretudo neste nosso tempo em que, «quando as pessoas trocam informações, estão já a partilhar-se a si mesmas, a sua visão do mundo, as suas esperanças, os seus ideais» (Mensagem de 2011, para o Dia Mundial das Comunicações Sociais). […]
A contemplação silenciosa faz-nos mergulhar na fonte do Amor, que nos guia ao encontro do nosso próximo, para sentirmos o seu sofrimento e lhe oferecermos a luz de Cristo, a sua Mensagem de vida, o seu dom de amor total que salva.
Depois, na contemplação silenciosa, surge ainda mais forte aquela Palavra eterna pela qual o mundo foi feito, e identifica-se aquele desígnio de salvação que Deus realiza, por palavras e gestos, em toda a história da humanidade. […]
Palavra e silêncio. Educar-se em comunicação quer dizer aprender a escutar, a contemplar, para além de falar […]»
In Mensagem do Papa Bento XVI para o 46º DIA MUNDIAL
DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS - 24 de Janeiro de 2012.
Não por acaso, Maria «guardava no seu coração» todos os factos misteriosos e importantes que testemunhava, ciente de que só os poderia maturar naquele silêncio atento, a que o tempo vai dando sentido. Encarnou como ninguém este silêncio activo, aberto aos outros e à vida. Em tempo de Quaresma convidar ao silêncio ganha especial sentido.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)