05 novembro 2008

LARGO DA BOA- HORA

Todos os dias, por esta hora do almoço, me perco ou me encontro em reflexões e divagações que têm por palco este Largo da Boa- Hora, em Lisboa.
Não há em Lisboa largo mais inóspito, lúgubre e feio do que este.
É pequeno, quadrado, atravancado. Tem uma quadra com três bancos, quatro árvores e um bebedouro seco sobre um pavimento de calçada portuguesa preta e branca com motivos vagos em que se destacam quatro rosas-dos-ventos, sob iluminação de três candeeiros camarários de fachada, e tudo decrépito, sujo, datado e abandonado. Por ele o Sol só passa e brevemente, nunca fica, banha-o a sombra, afoga-o a chuva, suga-o o vento.
Não tem horizonte, não tem luz, nunca tem um pássaro, nem os pombos ousam.
Nele as pessoas não passeiam, não vão estando e ficando, não desfilam. As pessoas que surgem, trespassam-no em correria. É um Largo que se cruza por obrigação, sempre na linha mais curta, de respiração sustida, semblante pesado e fechado.
Só eu o elegi como preferido. Só eu o adoptei, e nem sequer dele gosto, bem pelo contrário….
A nascente corre-lhe paralela a Rua Nova do Almada, com a sua inclinação e calçada a ladear lojas que outrora foram de comércio sucedido e hoje são de esquecimento. Curiosamente, os nela passantes, poucos aliás, não ousam entrar neste Largo, nunca desviam - intuição, temor reverencial, medo…, sei lá.
A Norte empareda-o um prédio de tantos andares, com uma fachada toda igual e simétrica, pardacenta, em que todas as janelas são antecâmaras de tédio, tristeza, vazio e solidão. É tamanho o oco, o imobilismo do interior, que as janelas são, no melhor, esperança de entrada, já que nem um mero som delas alguma vez sai ou sairá. Nem fantasmas aí residem.
A Poente igualmente o empareda um outro enorme bloco de tantos andares, devoluto de almas, mas este sinistro, com toda a fachada cega por cantaria que substitui antigas janelas, com o seu rés-do-chão preenchido por portas de indústria fechadas desde sempre, com os seus reclamos metálicos suspensos por mera ventura, e com os vidros que o tempo e a sujidade já transformaram em paredes.
A Sul, impõe-se e domina o Tribunal Criminal de Lisboa, o Tribunal da Boa-Hora, cujo rosto é o do austero Convento de São Francisco, com a sua escadaria de seis degraus, de patim curto, e a sua estreita porta de entrada para a tragédia do que lá sucede, a qual esmaga e faz esquecer qualquer resquício de beleza arquitectónica que pudesse ser deslumbrada. O hábito faz o monge; a função de tormento faz o imóvel ser isso mesmo.
Pelas dez e pelas quinze horas (horas das audiências) é um corrupio de carros celulares, sirenes, policias, advogados juízes, funcionários, testemunhas, familiares e presos que trespassam o Largo; depois segue-se a calmaria das alamedas dos cemitérios, e tudo fica vazio e silencioso.
É então aqui e na hora da calmaria que, sentado no banco, de costas para o tribunal, eu medito, peregrino, me encontro ou me perco de mim mesmo.
Não sei se escolhi ou fui escolhido pelo Largo da Boa-Hora e por este banco, atrai-me e impõe-se a tragédia humana, a verdade nua e crua, o destino, a fatalidade, a inexorabilidade da vida que dele emanam.
Aqui tudo é verdade, crueza, autenticidade.
Aqui, pessoas, ideias, sentimentos, factos, são desnudados, são expurgados de tudo o que é fingimento, encobrimento, acessório ou supérfluo. A aparência dilui-se pelo corrosivo do Largo, que não perdoa ou consente o irreal, nem mesmo quando se trata de sonhos ou fantasias.
Aqui o tempo não tem tempo, fundem-se o passado, o presente e o futuro, tudo já foi, é e será, em simultâneo, porque tudo já por aqui passou, tudo, mesmo o futuro já foi consumido num passado igual que ali vagueou.
Não me recolho pois neste banco para desfrutar do tempo que corre, para lazer, mas sim para ver a realidade.
Este é um miradouro da essência e condição humana, do que vai sucedendo na vida das almas.
Mas é mais do que um miradouro, é também um laboratório.
Como se fora um farnel, em certos dias trago comigo desde lá de fora, e bem resguardados, sentimentos, pensamentos, imagens, sensações, e outros registos que, sentado no meu banco, analiso, observo, examino, testo e experimento para tentar compreender, conhecer, empreender, decidir, sentir, recordar, esquecer ou o mais que seja na fusão de mim nesses.
É dessas vistas e observações laboratoriais que vos proponho dar conta, nestes textos que vou partilhando.
Fiquem um pouco aqui sentados comigo.


(ATM)

2 comentários:

Anónimo disse...

Gosto destes laboratórios, onde a realidade se nos apresenta núa e crua, onde nos sentimos, analisamos e descobrimos.
Gosto destes pontos improváveis e indesejáveis (aos demais) onde nos quedamos aparentemente silenciosos, nos perdemos nos labirintos interiores e nos encontramos renascidos, ou dentro de outro labirinto até encontrar a saída.
Gosto de quem pára e se escuta, e não foge amedrontado da (sua) realidade, em redemoinhos inúteis.

Vou-me sentar ao seu lado...

ana v. disse...

Sentei-me e gostei.
ATM? Espero que os ladrões não o levem, está muito na moda...

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