06 outubro 2010

Moleskine

Festejos. Continua a saga social dos vários festejos para os quais vou sendo convidado. Falo agora do almoço dos 50 anos da minha querida amiga L., no passado Sábado. Apesar de desafiado, coibi-me de dizer umas palavras por altura dos discursos, preferindo ouvir quem partilhou com ela, sobretudo, momentos de alegria saudável e juventude risonha. A nossa amizade assenta noutras emoções, provavelmente mais dolorosas, mas nem por isso menos importantes. Conheci-a talvez há onze ou doze anos, aquando da minha entrada para as Equipas de Nossa Senhora. Em 2001, ano de todas as partidas, a L. organizou um terço semanal em sua casa onde se chegaram a reunir muitíssimas pessoas que mal se conheciam, mas que rezavam por um propósito comum. Nesse ano, ainda, deu Catequese ao (meu) domicílio. A aluna adorava a catequista, sendo que a inversa também é, presumo, verdadeira. Tendo o privilégio de uma memória selectiva e fantasiosa, estou certo da importância das ideias trocadas para a viagem que a aluna faria mais tarde: que há pessoas que nascem para ser anjos, que Nossa Senhora tem colo para todos os filhos, que Deus não é senão Amor. Temos um pelo outro uma amizade certa, construída na convicção de que estaremos disponíveis para o que for preciso. Nunca me falhou em nada, nunca me disse um não, nunca lhe supus um talvez. Foi também com ela que aprendi que o tempo é um conceito elástico, e que a duração de um dia ou de um minuto varia de pessoa para pessoa. Tem uma fé inquebrantável, contagiante e sem vergonha, e devo-lhe a minha primeira ida a Fátima, sobre cujo 12 de Maio escrevi no meu livro. Estou certo de que acredita que a oração não lhe resolve os problemas, mas que lhe dá forças para os resolver. Revejo-me naquela fé: um misto de crença ingénua, convicção profunda, certezas que só nós sabemos. Penso que não preciso de repetir o conceito sobre se conseguiria viver sem a amizade dela...

Mineiros chilenos. Prevê-se que saiam na primeira quinzena de Novembro, antes do que estava previsto. Tendo eu laivos fortíssimos de pessimismo, gosto de pensar que esta característica tem as suas vantagens: antes prever o horror da saída por alturas do Natal que posteriormente é antecipado quinze dias, do que prever a alegria de uma saída breve e tudo se atrasar por causa de setecentos metros de rocha. Vi a gaiola na qual sairão todos os mineiros. Enchi-me de um misto de esperança e de claustrofobia, do pânico de uma viagem do fundo da terra e que dura quinze minutos, do terror do encravamento a meio de uma oração sofrida. Mas isto sou eu, no remanso de um conforto desconhecido da comunidade mineira. Lamento, no entanto, não me ter cruzado com notícias que dessem conta das rotinas, das lideranças, dos problemas. Curiosidades...

Televisão. Sempre tive esta característica sobre a qual escreverei um dia: quando todos atentam no protagonista de uma entrevista, eu olho para o lado, para aquilo que é acessório, secundário, não vende nem interessa: a camisa do secretário de estado ao lado do ministro, o cabelo do jornalista do periódico de província, a T shirt do operador de câmara... Seguia eu no outro dia, pela segunda ou terceira vez, o concurso do J C Malato que é, como seria de esperar, a pessoa mais filmada, quando dei por mim a observar os figurantes (é assim que se chamam os espectadores contratados?) gente que faz disso uma actividade remunerada (quase) diária, que aplaude, ri e canta de acordo com as indicações, não do sentimento. Ora, estou certo de que quem se encontra por trás do Malato tem o privilégio de um tempo de antena quase permanente, enquanto o apresentador pergunta, para enervamento dos concorrentes, quem escreveu Os Maias ou em que mês se deu o 25 de Abril... Aconteceu, naquele dia, que a figurante estava visualmente decapitada – um selo, cuja dificuldade de visão me impede de identificar, tapava-lhe a cara em permanência. Aparecia um corpo, balofo e desinteressante, e não uma face que nos podia entusiasmar pela beleza serena. Já me viram este azar? Não? Enfim... também quem pensa nisto se não eu? Talvez só a figurante, que poderia ter envergado, ao nível dos artelhos, um A3 escrito a vermelho relâmpago: mamã, mamã! estou aqui...

JdB

3 comentários:

Ana LA disse...

Bom dia JdB.
Belíssima letra (em forma e conteúdo), pena que se tenha arrependido nas últimas duas linhas.
Partilho a alegria do almoço e a pureza da anfitriã. Há umas semanas o Anacleto unia a família esta semana a L não só une, como liberta. Estranho, mas a paz que ela nos trasmite é como o Red Bull...dá asas.

Anónimo disse...

Querido amigo, as tuas palavras deixam-me feliz por sentir que a verdadeira amizade é um bálsamo para as nossas vidas tão aceleradas. Poder parar uma tarde para partilhar com a família e com os meus amigos o que me vai na alma e oferecer-lhes um almoço num fantástico dia de Outono, foi realmente um prazer. Tive realmente muita sorte em conhecer-te pois a tua simplicidade e a fé com que aceitas as pedras do caminho, têm-me ajudade muito a tentar ser uma pessoa melhor.
Bem Hajas!
mIhL

Luísa A. disse...

(Festejos) Precisava muito dessa fé, João, que nos faz acreditar na nossa própria força. A minha fé continua na fase ainda mais «ingénua» da relação mercantil com a Providência Divina. E não há meio de dar o salto.
(Mineiros chilenos) A aventura vai, certamente, dar muito pano para mangas à indústria cinematográfica. Talvez nunca saibamos a verdade da sua experiência subterrânea, mas não será menos interessante saber como os outros a imaginam.
(Televisão) Também sou muito sensível a esses detalhes, João. Falam mais sobre a própria pessoa do que aquilo que ela diz. Quanto à senhora «decapitada», e numa altura em que tudo se pela por um momento de glória televisiva, o selo «decapitador» não deve ter magoado menos do que magoaria a guilhotina.

Acerca de mim

Arquivo do blogue