20 outubro 2010

Moleskine

Livros. Acabei de ler, há algumas semanas, O Seminarista (Rubem Fonseca, Sextante Editora). Para aqueles que imaginam na obra uma continuação do meu beatério, cito a contracapa: Para o protagonista de O Seminarista, matar não causa remorso, mas também não causa prazer. É apenas o seu trabalho, que lhe permite dedicar-se àquilo que realmente ama: livros, filmes e mulheres. Quando decide que já é hora de abandonar a profissão, descobre que não é tão imune aos efeitos dos seus trabalhos e das suas escolhas como acredita ser. Li e gostei. A par de uma linguagem crua e gráfica há bastantes citações em latim. Para alguns, o fetiche é um fato de látex, para mim é o latim, se bem que não sejam usados nas mesmas circunstâncias.

Mineiros chilenos. All is well that ends well, diria Shakespeare, aqui citado para dar uma conotação intelectualmente estrangeira a este blogue.

Drama. Aproximo-me da televisão quando o locutor de serviço refere o estado dos gémeos siameses vindos de Angola e internados na Estefânia. Retenho o essencial (e cito de cor): à luz dos conhecimentos actuais da técnica, a separação é inviável. As crianças, que partilham o coração e o fígado, regressam proximamente a Angola, esperando que o futuro determine a sua sorte. Vejo a mãe, uma rapariga nova vencida pelo desânimo e pelo espanto, e o meu coração aperta-se num dó. Gostava de ser poeta, e imaginar que não há maior união do que a partilha de um coração único. Mas, de facto, só me ocorre a visão do drama adiado, a esperança de que nunca ninguém tenha de decidir quem parte, independentemente das probabilidades de sobrevivência. Nasceram a 15 de Agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora, e nada de palpável lhes parece valer.

Citação. Está-se só quando no espaço que se costuma percorrer não se corre o risco de encontrar ninguém. É a “fuga dos homens” no sentido material. Está-se só, também quando durante muito tempo não se entra em conversação verbal com ninguém. É a solidão do silêncio. Está-se só, enfim, tanto quanto o espírito no seu fundo mais íntimo não tem nenhum interlocutor, nenhuma companhia. É a solidão do coração. (...) A solidão como um sair de um lado para outro a fim de não encontrar ninguém; a solidão como um silêncio, um calar da dispersão para ouvir o essencial; e, finalmente, a solidão íntima ou profunda, na qual o espírito não possui qualquer interlocutor, que podemos chamar de solidão do coração, e corresponde ao acolhimento da experiência de Deus. [Emanuel Matos Silva, Solidão e Silêncio – Ritmos do encontro com Deus na espiritualidade cartusiana. Portefólio (Revista da Fundação Eugénio de Almeida), nº5].

Músicas. Basta fechar os olhos e imaginar o que passou pela cabeça de Grieg ao compor este segundo movimento do Concerto nº 1 para piano e orquestra. Hoje, recomendo os instantes 2'20'' e 3'11'', se bem que tudo o resto deva ser ouvido, porque obras como estas dão-nos a certeza da beleza, da bondade e do silêncio. Obras como estas restauram-nos a confiança no género humano quando tudo o resto à nossa volta o contradiz. Ingenuidade? Também por ela é que vamos.




JdB

1 comentário:

Ana LA disse...

Bom dia JdB.
Leio os seus salpicos e escrevo ao som da sua proposta musical de hoje.
A sugestão de leitura (chegou o piano, linnnnndoooo) não me entusiasma. O drama dos siameses faz-me lembrar a incapacidade de controlar a imperfeição do mundo e das coisas. A solidão assusta-me. Quando sinto necessidade de encontrar ninguém, prefiro pensar que estou em grupo - me, myself and I.
Finalmente a música,
boa malha.
Thanks e desculpe porque este comentariozito é quase um post.

Acerca de mim

Arquivo do blogue