As tiradas cortantes são inequívocas, escondendo um desconforto que não se contenta com pouco, como é próprio de quem intui um desejo de infinito que o presente não alcança. Não poupou o entrevistador do The Paris Review: «Quando as perguntas são velhas e gastas você arrisca-se a receber de volta respostas gastas e velhas.» Outra equivalente, como resposta à questão se escreveria melhor quando estava apaixonado: «Que pergunta. Mas tem a nota máxima pela tentativa.»
Nas suas milhentas aventuras, deambulando por palcos de guerra, pesava-lhe, em especial, o suicídio do pai e o estranho presente que a mãe lhe enviara pelo correio, sempre muito impositiva: a pistola daquele fim trágico. E arrastou a dúvida se a intenção seria sugerir-lhe desfecho idêntico ou apenas oferecer uma mórbida recordação do desastre.
Tentativa de esboço do seu complexo retrato psicológico, em pinceladas aparentemente paradoxais:
- Boémio na vida mas rigoroso e disciplinado no trabalho, começava o dia de alvorada: «tão perto quanto possível do nascer do sol.» E fazia um registo diário do número de palavras escritas «para não estar a enganar-me a mim mesmo.» Enorme horror à fraude, à imprecisão e ao inacabado.
- Rodeado de amigos nas farras mas isolado na arte: «Quanto mais avançamos na escrita, mais sozinhos estamos.»
- Excessivo e atormentado nas relações mas comedido e maximamente discernido na literatura. Aliás, considerava que o talento essencial do escritor era a capacidade crítica, qual radar capaz de detectar e erradicar o mais leve assomo de mediocridade. «Se um escritor deixar de observar está acabado. (…) Tenta sempre (escrever) sob o princípio do iceberg. Há sempre sete oitavos submersos para cada parte que está à vista.»
- Duro (até à irascibilidade) e assertivo na vida mas muito meigo a fixá-la no papel. Comentava assim o livro que lhe valeu o Nobel – O Velho e o Mar –, assemelhando-se a uma criança agradecida por um presente recebido: «A sorte foi eu ter um homem bom e um bom rapaz e o facto de ultimamente os escritores se terem esquecido de que isso ainda existe. Além do mais, o oceano é tão digno da literatura como um homem. Por isso tive sorte, nesse aspecto.»
- De um idealismo intempestivo nos combates do dia-a-dia, mas de uma abertura dócil e empática para registar o mesmo quotidiano no papel, dispondo-se a roçar o mistério com uma ternura que lhe escapava para viver. Como não havia de ser grande? «Faz-se algo (na escrita), com a imaginação, que não é uma representação mas antes uma coisa totalmente nova e mais verdadeira do que qualquer coisa que está viva e é verdadeira, e dá-se-lhe vida e, se for suficientemente bem feita, ela torna-se imortal.»
Nos anos transcorridos em Paris, privou com os artistas que por ali deambulavam nos animados anos 20: Ezra Pound, Monet, Joyce, Gris, Picasso e Bracques. À pergunta sobre as suas heranças literárias, nem hesitou em referir músicos, pintores e também alguns escritores, abrangendo estilos e épocas bem diversas. Acabou por convocar um milénio de história da arte ocidental, lembrando Bach, Mozart, Giotto, Tintoretto, Bosch, Goya, Joyce, Tolstoi, San Juan de la Cruz, Shakespeare, etc.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, passando a publicar às Segundas)
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(1) Título: Entrevistas da Paris Review
Autores: vários
Data de edição/reimpressão: 2009
Editor: Tinta da China
2 comentários:
Can't wait pelo Pasternak... que bom ter-te de volta ah volta dos livros. Nao havia um programa que se chamava Conversas ah Volta dos Livros? Podiamos fazer um clube sobre o assunto. Eu alinhava jah. E tu moderavas. Bjs londrinos. pcp
Bjs indochineses, a aguardar tb o teu regresso, MZ
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