22 maio 2015

Rapazes...

Falava da Argentina Santos com à vontade mas respeito, como compete às pessoas finas. Referia-se à Amália sem nunca usar a expressão diva porque, afirmava, há expressões calistas que já não podem ouvir-se. Comentava-se António dos Santos e sorria, lembrada do minh'alma de amor sedenta, ou do partir é morrer um pouco. Quando lhe perguntavam pelos sucessos fadistas sorria envergonhada, torcendo as pontas do xaile entre os dedos finos e bem tratados. Não gosto de falar disso, fui apenas uma rapariga com sorte. Conhecera Maria Teresa de Noronha que lhe ensinara, sem nunca lho dizer, que o Pintadinho era especial, ou se cantava muito diferente ou não se cantava porque era imitação. Comentava os discos do Camané, as saudades do Tony de Matos, a afinação irrepreensível da Hermínia, a injustiça de se associar o Max à mula da cooperativa. Discorria sobre o lundum, sobre a teoria da música portuária ou dos folhetos dos ceguinhos, da irrazoabilidade do fado ter nascido no mar, não obstante a beleza dos versos do Régio, superiores na frase os olhos ceguinhos de choro.... Sabia do fado Lopes ou do fado Anadia, das quadras glosadas em décimas, das afinações de Coimbra e Lisboa, da lenda das dez mil guitarras perdidas em Alcácer-Quibir... Conversava sobre fado, ouvia os outros, revelava um interesse sobre o mundo fadista nas suas várias vertentes - a história, as tendências, os contra-baixos, os mestres, a qualidade do som. 

Depois ia para casa. Sentava-se no seu peugeot, ajustava o espelho por onde via a perfeição da maquilhagem ou o surgimento de uma ruga, compunha uma madeixa de cabelo e ajustava a saia, que teimava em subir para níveis que não eram os dela. Talvez pusesse um pouco de baton, que a dignidade e a estética se mantêm numa festa ou no bulício do trânsito. E ia para casa, um terceiro esquerdo nas avenidas novas, decorado com um esmero simples. Sentava-se na sala ao lado de uma caixa com discos de 33 rpm, 45 rpm, mesmo 78 rpm. E alguns CD's: o Armandinho, o Artur Paredes ou o filho, o Menano, a Amália ou a Ercília Costa, os irmãos Moutinho, a Carminho ou o Vicente da Camara, o Tony de Matos sempre a apanhar a orquestra com elegância e saber. Na aparelhagem, o fado que se repetia sempre, sempre, ao longo da noite: de cada vez que te vejo / sinto um desejo canalha / beijar-te e marcar-te o beijo / c'oa ponta de uma navalha. Agarrava uma chave de fendas grande, afiada, e riscava os discos um a um - a Amália, o Vicente, o Tony, a Fernanda Baptista ou a Ada de Castro, o Marceneiro ou o Tristão da Silva. Riscava para trás e para a frente até à destruição total e irreversível. Depois daquele lote massacrado olhava com ar triste para o cabo da chave de fendas onde uma etiqueta revelava um pensamento de António Arroio: rapazes, não cantem o fado...   

JdB     

1 comentário:

Anónimo disse...

JdB
Um delicioso delírio, imprevisível e imprevisto quando acontece, a fazer lembrar a extraordinária "lanterna vermelha" de faca na liga.
"...reza-te a sina traçada na palma da mão,,,".
Obrigado

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