No princípio era o bolero. E era nesse momento, ainda vago de estética e lucidez, que Violeta Côto, sobre quem nos debruçaremos quase de imediato, manifestava uma inclinação. Depois vinha a milonga, a confirmar o olhar clínico, e em seguida o tango, uma espécie de prova de fogo. O curso podia estender-se à rumba, ao mambo, ao cha cha cha. Mas quem chegava ao tango, a mãe de todas as danças, com um sorriso nos lábios - ainda que com um aperto nos sapatos - estava pronto para enfrentar os campeonatos, os parceiros, as noites de brilho e de glória, a sensualidade sul-americana.
Violeta Côto era originária de Miratejo, na margem sul. Crescera a ouvir rap, hip hop, desgarradas violentas e ritmadas nas penumbras feias de prédios estragados. Decidira-se, no entanto, pelo salão, pelo vestido coleante, pela saia que esvoaça ao som de Osvaldo Pugliese, por uma cabeça tombada para trás que revela um pescoço esguio, um cabelo revolto - e uns dentes ligeiramente assimétricos. Percorreu a senda dos campeonatos, do apuramento do passo, das complicações burocráticas, e estabeleceu-se como professora.
Naquele dia, um fim de tarde quente e seco abafado ao sol de Julho, descobrira um talento natural no Engenheiro Alonzo Grande, filho de Ramón Grande, neto de Juan Grande, viúvo saudoso de uma senhora rica do Baixo Alentejo que era dona de cavalos, de cortiça, de perdizes, de arcas congeladoras e de uma vasta colecção de estribos. O espanhol, natural de Gijón, não tinha sobreiros nem espaço de frio, apenas uma larga fortuna herdada de quem, em alturas de racionamento, mantinha stocks discretos. Duas fortunas juntas dão origem a um todo que é superior à soma das partes.
Violeta era esplêndida nos seus 35 anos: um cabelo, um pescoço e uns dentes já descritos, umas pernas ligeiramente incoerentes onde ressaltavam umas coxas talvez demasiado largas, um peito volumoso e que vibrava numa constância generosa para gáudio disfarçado dos alunos da escola. Violeta e Alonzo dançaram Por una Cabeza, e toda a gente jura que ela corou, cambaleou nos acordes finais, o seu peito bateu a descompasso. Numa palavra - que por acaso são duas - ficou perturbada.
Alguns meses depois, Alonzo Grande levava a professora a conhecer os filhos - Ramón e Carlota. Face à necessidade de transformar esta história numa ficção breve, passamos imediatamente aos diálogos que decorreram no escritório do engenheiro, enquanto na sala ao lado Violeta, ouvindo tudo, tombava a cabeça para um lado e para o outro questionando-se se a pintura de Vieira da Silva não estaria pendurada ao contrário.
- O Pai quer falar deste tema?
- A que tema se está a referir, Carlota?
- A este seu suposto romance... Violeta, professora de dança, 40 anos mais nova do que o Pai...
- Não quer dar a sua opinião, Ramón?
- Eu concordo totalmente com a Carlota. Vê-se ao que ela vem. Um rico da sua idade...
- Pois eu fico chocado com a vossa reacção. A Mãe e eu não lhes ensinámos essa intolerância.
- Ai Pai, por amor de Deus! Não me fale de intolerância. Todos somos, sabe? Há quem não tolere gente maçadora, outros não toleram gente feia, outros não gostam de gordos ou de baixos. A virtude não está em não ser, mas em não mostrar. Mas desta vez não consigo disfarçar. É mais forte do que eu.
- E você, Ramón?
- Olhe, Pai. Sabe-se lá se não aparece um dia uma criança filha dela e de um Rúben qualquer do Murfacem...
- E onde é isso?
- Não faço ideia, mas tanto faz. E já viu o nome? Violeta Côto Grande? Parece anúncio a próteses...
- O tema está encerrado, meninos. A minha vida é a minha vida.
Regressaram à sala onde Violeta bebericava um champanhe e mantinha o sorriso de quem tem uma surdez estratégica. Três meses mais tarde, Violeta e Alonzo casavam discretamente pelo civil e partiam em lua de mel. Não tinha passado uma estação do ano quando o homem de Gijón, que casara no Baixo Alentejo, morria de ataque cardíaco, pouco passava das 11 da noite. Os filhos foram encontrá-lo na cama, confrontados com uma viúva chorosa e de camisa de noite e com um pai com as calças de pijama vestidas do avesso. Um mês depois o encontro era menos funesto mas igualmente perturbante. Mencionemos apenas o diálogo entre os personagens conhecidos e o advogado:
- Carlota e Ramón, os meus sentidos pêsames.
- Obrigado, Dr. Antunes.
- Passemos às formalidades. Como sabem, o vosso pai era dono de uma fortuna assinalável e que crescera ao juntar-se com a da vossa mãe. Ao casar com a Sra. D. Violeta...
(sinais de desconforto nos dois filhos)
... ela passaria a ser herdeira substancial dos bens...
(evidentes e crescentes sinais de desconforto)
... só que há uma declaração prévia, devidamente validada do ponto de vista legal e a cuja leitura vos vou poupar. Assim, a Sra. D. Violeta aceitou casar com o vosso Pai com uma condição...
(Desconforto e etc.)
... que era a de total renúncia ao que quer que fosse dele. Com excepção...
(Sinais de expectativa vagamente tensa)
- Posso interromper, Dr. Antunes?
- Claro, Ramón...
- Porquê, Violeta? Porquê um casamento, que se via que não era por amor, com um velho rico e que lhe era desconhecido, para depois renunciar a tudo? Enfim, a tudo não sei, porque interrompi o Dr. Antunes antes da excepção...
- Com excepção da vasta e invejável colecção de discos de tango do vosso Pai.
Violeta Côto (que nunca quisera ser Grande) levantou-se e beijou aqueles que jamais haviam sido seus enteados.
- Adeus. Vou pedir ao Rúben, um amigo também da margem sul, que me ajude a levar os discos lá de casa. Outra coisa, Carlota. Por acaso tens o telefone do Arquitecto Castelo, que fazia parte do grupo de velhos do teu pai? Ouvi dizer que tem inéditos do Carlos Gardel e muitos discos de 78 rpm. Em calhando telefono-lhe, não vá ele gostar de dançar...
JdB
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* publicado inicialmente em 6.12.2012