A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós. Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem. A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.
Valter Luís (nome próprio, nome próprio) não andava numa fase famosa da vida. Em bom rigor, não seria necessário que o cronista que agora conta a história interpretasse sinais psíquicos e os transformasse em palavras. Era ele próprio, Valter Luís, que o fazia, sentado num sofá confortável do consultório modesto da sua psiquiatra.
- não ando numa fase famosa da vida...
Dizia isto e olhava para a rua, para um parque de estacionamento de um supermercado onde as pessoas se abasteciam de inutilidades em promoções, saindo ajoujadas de sacos brancos e pagamentos diferidos.
- sabe, senhora doutora, esta semana são os verdes: brócolos, couve galega, ervilhas, favas, talvez um lombardo. Já reparou que o espinafre é o terylene dos vegetais? Chega-se-lhes um pouco de fogo e ficam em nada. Já cozinhou espinafres?
Depois, compenetrado que aquela devaneio se pagava a preço de consulta, pelo que o tempo não era de banalidades, repetiu a frase do dia, como se daí decorresse a esperança de uma benção especial, ou de uma luz redentora vinda não se sabe de onde.
- não ando numa fase famosa da vida...
E Valter Luís (nome próprio, nome próprio) queixava-se de estar sozinho no mundo, ainda que rodeado de uma mulher, de amigos, de colegas de profissão ou de canasta aos primeiros sábados do mês. Era um palrador que não tinha interlocutor, um gourmet que viva com uma vegetariana niquenta, um adulto fogoso para quem o olhar desinteressado e bocejante da mulher transformava as noites íntimas numa experiência impessoal, um ex-atleta de alta competição rodeado de sedentarismo burguês e fumador.
- não ando numa fase famosa da vida...
E a psiquiatra, ajeitando o vinco de umas calças elegantes, olhando de soslaio para o relógio, para a fotografia da sua bebé deitada muito direita numa alcatifa felpuda e para as promoções da semana, falava-lhe na infância, no direito à felicidade, nas coincidências significativas, nas novas tendências de interpretação dos sonhos e nos químicos recentes que não provocavam náuseas. Mas Valter Luís (nome próprio, nome próprio) ouvia pouco, porque se lamentava da solidão em que viva, sem companhia na cozinha e com uma ausência na cama.
Levantou-se, despediu-se e desejou à médica uma Santa Páscoa, não porque fosse católico, mas porque a frase lhe parecia bonita, redonda, auditiva, correcta, sorridente apesar do peso que via nos crentes e do milagre da ressurreição em que descria, cepticismo esse agravado pela fase pouco famosa em que viva. O milagre é uma prerrogativa dos optimistas, porque a fé é dos optimistas, pensava ele... O milagre é uma espécie de ciência mais evoluída, não acessível ainda ao humano, apenas ao divino. É um acontecimento antes do seu tempo, no fundo.
Chegou a casa, um apartamento modesto com vista para um beco, e foi para a cozinha preparar o almoço pascal, apesar da descrença no túmulo vazio, na felicidade da vida e nas noites tumultuosas de gestos e velas com cheiro a sândalo. Dez minutos mais tarde, S. José Cristina (nome próprio, apelido) surgia-lhe estranhamente cedo, vinda do call center onde trabalhava. Vestia uma lingerie toda roxa, que os tempos impunham a cor, mesmo aos incréus. Apareceu-lhe sem pudor nem bocejo, provocante, com aquela figura longilínea de quem parecia uma libelinha a preparar um flic-flac. Sorriu-lhe provocante e carnívora, nos vários sentidos da palavra:
- queres que tempere o cabrito? Ou compraste borrego?
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo, depois de Jesus ter atravessado de barco para a outra margem do lago, reuniu-se grande multidão à sua volta, e Ele deteve-Se à beira-mar. Chegou então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Ao ver Jesus, caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência: «A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva». Jesus foi com ele, seguido por grande multidão, que O apertava de todos os lados. Ora, certa mulher que tinha um fluxo de sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais, tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a multidão e tocou-Lhe por detrás no manto, dizendo consigo: «Se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada». No mesmo instante estancou o fluxo de sangue e sentiu no seu corpo que estava curada da doença. Jesus notou logo que saíra uma força de Si mesmo. Voltou-Se para a multidão e perguntou: «Quem tocou nas minhas vestes?» Os discípulos responderam-Lhe: «Vês a multidão que Te aperta e perguntas: 'Quem M e tocou?'» Mas Jesus olhou em volta, para ver quem O tinha tocado. A mulher, assustada e a tremer, por saber o que lhe tinha acontecido, veio prostrar-se diante de Jesus e disse-Lhe a verdade. Jesus respondeu-lhe: «Minha filha, a tua fé te salvou». Ainda Ele falava, quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: «A tua filha morreu. Porque estás ainda a importunar o Mestre?» Mas Jesus, ouvindo estas palavras, disse ao chefe da sinagoga: «Não temas; basta que tenhas fé». E não deixou que ninguém O acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. Quando chegaram a casa do chefe da sinagoga, Jesus encontrou grande alvoroço, com gente que chorava e gritava. Ao entrar, perguntou-lhes: «Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu; está a dormir». Riram-se d'Ele. Jesus, depois de os ter mandado sair a todos, levando consigo apenas o pai da menina e os que vinham com Ele, entrou no local onde jazia a menina, pegou-lhe na mão e disse: «Talitha Kum», que significa: «Menina, Eu te ordeno: levanta-te». Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar, pois já tinha doze anos. Ficaram todos muito maravilhados. Jesus recomendou-lhes insistentemente que ninguém soubesse do caso e mandou dar de comer à menina.
Claro que o perigo está nas pessoas que esgrimem a linguagem maliciosamente, manipulando o próximo, ocultando, mentindo, deformando a realidade segundo a sua conveniência. Precisamente, esta ameaça que George Orwell denunciou com mestria ao dissecar o fenómeno da novilíngua, sempre constituiu um perigo, porque o poder das palavras é uma constante, pelo que é um alvo incontornável de tribunos pouco escrupulosos, desde tempos imemoráveis. Extraordinário e bizarro é a função demasiado diversa e controversa atribuída à linguagem pelos filósofos de todas as eras. A história conta-se por si e fica-se atónito com algumas das teses defendidas. Numa linha cronológica, observam-se guinadas regressivas e tortuosas, difíceis e perceber, tal o descaramento.
Na Grécia antiga, Sócrates (470-399 a.C.) vê-a luminosa, considerando que «A palavra é o fio de ouro do pensamento» . Também o discípulo amado a aclama na abertura do seu Evangelho, revelando-lhe o sentido mais sagrado: «No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (…) Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.» (João 1:1-4)
No seu estilo lúcido, o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) dispara o sinal de alarme sobre a ambivalência que pode comportar: «Algumas palavras podem esconder outras.» O famoso escritor de fábulas gaulês Molière (1622-1673) delineia a magna missão da linguagem, na senda da visão socrática: «A palavra foi dada ao homem para explicar os seus pensamentos, e assim como os pensamentos são os retratos das coisas, da mesma forma as nossas palavras são retratos dos nossos pensamentos.».
O filósofo francês do Iluminismo Voltaire (1694-1778) não tem ilusões sobre o perigo do mau uso da linguagem: «Ils ne se servent de la pensée que pour autoriser leurs injustices et n'emploient les paroles que pour déguiser leurs pensées.».
O clérigo anglicano Robert South (1634–1716) destrinça entre uns e outros, mas introduz uma nota insólita ao tomar por sábio quem dissimula: «A palavra foi dada ao comum dos mortais para comunicar os seus pensamentos e aos sábios para os disfarçar.»
O ardiloso aristocrata francês e clérico, que fez carreira durante a Revolução Francesa e depois com Bonaparte e os seus sucessores, Charles Talleyrand-Périgord (1754-1838), professava a hipocrisia sem rodeios: «A palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento.»
O escritor francês Stendhal (1783-1842) assume o pior propósito, que tinha sido (compreensivelmente) muito recomendado por alguns dos protagonistas da Revolução Francesa «A palavra foi dada ao homem para esconder o seu pensamento.»
O dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912) não tem ilusões, mas fixa-se na solução mais segura e preferida: «Eu prefiro o silêncio; no silêncio ouvem-se os pensamentos e vê-se o passado, o silêncio não pode esconder… o que as palavras escondem.» Curiosamente, o Nobel português da Literatura, também confia mais no silêncio e no seu efeito regenerador sobre as palavras. Interpelativo um homem de palavras confiar mais no silêncio. Em 1971, sem a presença do silêncio, as palavras soavam-lhe temíveis…
«A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.»
José Saramago como jornalista da crónica publicada no vespertino “A Capital” e depois em livro lançado de 1971
«As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. (…) É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto.
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»
José Saramago - crónica publicada no livro “Deste Mundo e do Outro”,
Editorial Caminho, Lisboa, 4.ª edição, 1997.
A sabedoria popular dos homens do deserto forjaram vários provérbios, destacando-se um de maior densidade, que deixaram nas paragens por onde passaram, nomeadamente em Portugal: «a palavra é prata, o silêncio é ouro». Outro provérbio árabe recomenda uma sobrevivência comedida, à prova das turbulências da vida, sem ousadias. Talvez talhado por uma ‘medida mais curta’ repleta de senso comum, embora tenha boa aplicação em inúmeras circunstâncias: «Não diga tudo o que sabe; Não faça tudo o que pode; Não acredite em tudo que ouve; Não gaste tudo o que tem, Porque: Quem diz tudo o que sabe, Quem faz tudo o que pode, Quem acredita em tudo o que ouve, Quem gasta tudo o que tem; Muitas vezes diz o que não convém, Faz o que não deve, Julga o que não vê, Gasta o que não pode.»
O poeta-escritor de origem irlandesa Oscar Wilde (1854–1900), viciado em aforismos e cioso de descortinar a verdade mais indecifrável, explora sempre novos ângulos: “Words! Mere words! How terrible they were! How clear, and vivid, and cruel! One could not escape from them. And yet what a subtle magic there was in them! They seemed to be able to give a plastic form to formless things, and to have a music of their own as sweet as that of viol or of lute. Mere words! Was there anything so real as words?” Acabou por poupar as palavras, mas não a hipocrisia mais comum nos seres humanos: «As nossas caras são verdadeiras máscaras que nos foram dadas para ocultarem os pensamentos.»
No século XX, dois idealistas recuperam o alcance mais nobre do que se profere. Fernando Pessoa (1888-1935) oferece-lhe variadas conotações, todas grandes: «Se ser Homem é pouco, e grande só / Em dar voz ao valor das nossas penas / E ao que de sonho e nosso fica em nós / Do universo que por nós roçou; / Se é maior ser um Deus, que diz apenas / Com a vida o que o Homem com a voz: / Maior ainda é ser como o Destino / Que tem o silêncio por seu hino / E cuja face nunca se mostrou.» No poema a "D.Pedro", na MENSAGEM, o poeta afirma de outro modo o valor incomensurável da palavra: «Fiel à palavra dada e à ideia tida. / Tudo o mais é com Deus!»
Gandhi (1869-1948) fixa-se igualmente no lado mais solar da realidade: «Mantenha os pensamentos positivos, porque os seus pensamentos tornam-se as suas palavras.»
Com sentido de humor, o poeta, músico-compositor brasileiro Maviael Melo, recicla a velha piada, que mostra a distância abissal entre a condição de turista e a de imigrante em determinado sítio, ilustrando com a metáfora-limite do inferno. Melo adapta-a ao despudor com que muitos políticos seduzem os eleitores com palavras apetecíveis, vendendo fantasias à caça do voto acrítico, quais encantadores de serpentes:
Numa guerra de palavras deliciosa, a BMW resolveu provocar a Audi, implantando um cartaz de publicidade desafiador mesmo em frente ao concessionário tunisino da marca rival, para aliciar os clientes da concorrência. A disputa decorreu há 3 anos, na Tunísia, onde qualquer das marcas estava circunscrita a nichos de mercado, longe do sucesso das marcas francesas e da VW.
A resposta do desafiado não se fez esperar e, com luva de pelica encostou a BMW às cordas, num jogo certeiro com o logo da marca:
O despique foi seguido com gáudio pelos locais e, rapidamente, tornou-se notícia além-fronteiras, apesar de a paródia comercial não ter saído do território tunisino. Cirurgicamente, o contraditório da Audi foi exibido junto à provocação da BMW, produzindo este duelo antológico:
Para devolver a luz à palavra, a poesia que Sophia de Mello Breyner (1919-2004) compôs em 1974 ou a de Manuel Alegre e a de José Régio, fazem a justa reposição, completando todo o ciclo, desde o desvirtuamento até à limpidez original recuperada. De certo modo, percorrem o trilho da fé:
«Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Sophia de Mello Breyner Andresen
- Junho de 1974 in “Com fúria e raiva”
«Palavras tantas vezes perseguidas
palavras tantas vezes violadas
que não sabem cantar ajoelhadas
que não se rendem mesmo se feridas.
Palavras tantas vezes proibidas
e no entanto as únicas espadas
que ferem sempre mesmo se quebradas
vencedoras ainda que vencidas.
Palavras por quem eu já fui cativo
na língua de Camões vos querem escravas
palavras com que canto e onde estou vivo.
Mas se tudo nos levam isto nos resta:
estamos de pé dentro de vós palavras.
Nem outra glória há maior do que esta.»
Manuel Alegre, em “O Canto e As Armas”, 1967
PALAVRAS
Palavras, atirei-as
Como quem joga pedras, lança flores.
Abriram fendas nas areias,
Suscitaram carícias e furores.
Sobre mim recaíram
Pesada de multíplices sentidos.
Tenho os lábios que um dia as proferiram
E os dedos que as gravaram — já feridos.
Tintas de sangue as restituo aos ventos,
Prestidigitador que sou de sons, palavras.
Dá-lhes novos alentos,
Fogo sonoro que em mim lavras!
Errantes lá pra solidões imensas
Com asas no seu peso, à recaída,
Me tragam, ágeis, densas,
A resposta final que me é devida.
José Régio (1901-1969)
Colheita da Tarde, 1971 - Volume póstumo
Nada como a poesia para tirar o melhor proveito do poder da palavra. Ainda bem que Portugal é país de poetas.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Todos conhecemos a compulsão - em nós, ou nos outros. Pode revelar-se no consumo de droga ou de álcool, no jogo desenfreado ou numa vontade insaciável de comer. Nada se faz por prazer, para apreciar um bom momento ou desfrutar de minutos de satisfação. Bebe-se, joga-se ou come-se porque sim; para atingir um estado de olvido, para recuperar o que se perdeu, porque há uma química qualquer que nos manda consumir mais e mais. Deglute-se um queijo grande em dez minutos, come-se caviar com uma concha da sopa. Porquê? Porque sim; porque pode faltar, porque está ali, porque há uma sensação psicológica de fome. Come-se depressa para poder comer mais.
Conhecei / conheço tudo: gente que bebeu e deixou, que se drogou e deixou, que jogou e deixou. Talvez a compulsão da comida, por ser menos nociva de uma imagem social ou de um pecúlio bancário, seja mais difícil de combater. Aos outros (ou também outras) conheci-os/as na fase do durante e na fase do depois, o que é sempre reconfortante.
Portugal tem a compulsão da pedinchice, como pode ver-se, de forma confrangedora, neste video. Aos 50 segundos, mais ou menos, Costa pergunta, com aquele ar satisfeito de quem passa por todos os pingos da chuva, se já pode ir ao Banco buscar o dinheiro com que ele pretende salvar a nação. Podia fazer uma graçola de oportunidade sobre a recuperação, sobre a forma difícil como se diz resiliência em alemão ou mesmo que o texto não estava escrito PMingLiU, um tipo de letra que lhe diz muito, vá lá saber-se por quê. Costa queria apenas pedinchar, dar azo a essa compulsão tão portuguesa. Enquanto uns bebem, outros jogam, outros comem, António Costa pedincha dinheiro - e não se coíbe de o dizer. Só me admira não ter perguntado: e o bancozito, onde é o bancozito?
Conheci / conheço gente com compulsões: dominam-nas, vencem-nas, travam batalhas difíceis. Conheço-lhes, repito, o antes, o durante e o depois. Portugal, infelizmente, temo nunca lhe conhecer o depois.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus disse aos seus discípulos: «Passemos à outra margem do lago». Eles deixaram a multidão e levaram Jesus consigo na barca em que estava sentado. Iam com Ele outras embarcações. Levantou-se então uma grande tormenta e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água. Jesus, à popa, dormia com a cabeça numa almofada. Eles acordaram-n'O e disseram: «Mestre, não Te importas que pereçamos?» Jesus levantou-Se, falou ao vento imperiosamente e disse ao mar: «Cala-te e está quieto». O vento cessou e fez-se grande bonança. Depois disse aos discípulos: «Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?» Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros: «Quem é este homem, que até o vento e o mar Lhe obedecem?»
Almoço - ontem - com amigos. Ao fundo da sala do restaurante, vejo - não consigo, nem quero ouvir - a CM TV a esmiuçar o caso do Noah, a criança de dois anos que havia desaparecido de casa dos Pais. Conheço o suficiente do canal para não me interessar ver: um caso, seja dramático seja violento, é esmiuçado durante horas a fio, com intervenções de gente que, aparentemente, sabe do que fala; são jornalistas, ex-inspectores da PJ, advogados, sei lá mais o quê. Gente que será paga para falar, para adaptar os seus conhecimentos da lei ou da espécie humana aos dramas do quotidiano. Não faz o meu estilo, mas é o estilo do grupo CM.
Chego a casa e, a maio da tarde, fico a saber que a criança é neta de um primo ainda próximo, com quem gosto de conversar sobre coisas de família. Felizmente, pela hora de jantar dizem-me que a criança foi encontrada com vida, aparentemente bem de saúde. Comento que as fechaduras das casas foram feitas para impedir gente de entrar, e não de sair. No caso desta família a vizinhança era de confiança - a criança é que não...
Ler as caixas dos comentários de alguns jornais online é um exercício estranho - assemelha-se à toma de um purgante, só que não se purga nada e, nesse sentido, é pior. Apenas nos vem um refluxo gástrico e uma descrença num franja significativa da espécie humana. Eu sei que temos casos de crianças desaparecidas e que se veio a provar terem sido vítimas de grande violência. E eu sei que o facto de ser gente da minha família só é argumento para mim, não para o comum dos mortais que desconfia de tudo e de todos - e há profissionais do azedume sem mais nada para fazer. No entanto, quando uma criança de dois anos desaparece e alguém comenta que tudo cheira a esturro ou que o primeiro parágrafo do aviso nas redes sociais dos pais ter sido escrito em inglês lhe parece um acto de vaidade, quando isso acontece, repito, há algo de estranho que se revolve dentro de nós.
Não digo nada de novo: as caixas de comentários dos jornais online são uma latrina onde demasiadas pessoas bolçam raivas, frustrações, bílis, agressividade; são latrinas onde as pessoas já se conhecem e se insultam sem nunca se terem visto, onde ocupam os seus tempos livres para uma espécie de catarse em que o vómito as atinge primeiro, antes de chegar ao destino. Talvez da próxima vez tome óleo de fígado de bacalhau. Pelo menos talvez limpe os meus interiores...
Actualização (às 08.30h):
Os dois comentários abaixo retratam o que escrevi acima. Eu sei que a criança é neta de um primo e que da idoneidade da família os outros não poderão falar. Mas o que leva esta gente, ainda não se sabendo nada, a escrever isto?
Esta história está muito mal contada. Esperemos que a PJ investigue porque precisámos de saber exactamente o que é que os supostos progenitores desta infeliz criança andaram a fazer. O nosso Estado continua a não zelar pela segurança de crianças inocentes que continuam infelizmente a morrer às mãos de pais irresponsáveis. Esperemos pelo menos que haja um minimo de decência por parte da Comissão de Protecção de Menores e que a guarda desta criança lhes seja de imediato retirada.
A história está muito mal contada.
Aqueles progenitores com ar de toxicodependentes não inspiram o minimo de confiança.
Esperemos que as autoridades investiguem qual é concretamente a actividade que eles desenvolvem e em que circunstâncias a inocente criança andava nua pelo mato fora.
Aos meus 20 anos estava-se em 1978. Nada de muito memorável me vem à memória: estava atrasado nos estudos, tinha amores felizes e infelizes, fazia praia na altura certa e punha meias na altura certa. Tinha amigos, festas, bebia cerveja e dançava. Era imberbe, magro e fumava Português Suave sem filtro - o fumo mais agressivo que atravessou os meus pulmões, sendo que nas veias nunca entrou nada nocivo.
Como me disse um amigo num ano particularmente difícil, aos 20 anos o drama mais grave das nossas vidas era não saber o que fazer nessa noite. O drama era igual em 1977 e, vou apostar, em 1979. Um anos antes de ter 20 anos e um ano depois de ter 20 anos estava atrasado nos estudos, namorava, fazia praia, dançava, etc., etc. Uma vida que, em bom rigor, pouco acrescentava à riqueza das nações.
Ora, acontece que os 20 anos serão importantes - pelo menos do ponto de vista musical. Senão vejamos:
Na sua famosa música, Hier Encore, Charles Aznavour canta:
Hier encore, j'avais vingt ans, je caressais le temps J'ai joué de la vie Comme on joue de l'amour et je vivais la nuit Sans compter sur mes jours qui fuyaient dans le temps J'ai fait tant de projets qui sont restés en l'air J'ai fondé tant d'espoirs qui se sont envolés Que je reste perdu, ne sachant où aller Les yeux cherchant le ciel, mais le cœur mis en terre
Por sua vez, no seu fado igualmente famoso Primeiro amor, Cidália Moreira canta:
Ai quem me dera
Ter outra vez vinte anos
Ai como eu era
Como te amei, santo Deus!
Meus olhos
Pareciam dois franciscanos
A espera
Do sol que vinha dos teus
O que une Charles Aznavour e Cidália Moreira? Em que ponto do Universo, tangível e intangível, se encontram o arménio e a fadista cigana? Em tudo: no palco, na emoção, na paixão pela música e, sobretudo, num olhar retrospectivo sobre os 20 anos - anos de brincar aos amores, de fazer castelos no ar, de ter olhos franciscanos e amores de Santo Deus.
Os 20 anos cantam-se aos 50 ou aos 60. Ninguém, com 20 anos, canta músicas sobre os 20 anos. Ou, mais certo ainda, ninguém na grande noite do fado infantil deseja ter outra vez 20 anos... Os 20 anos são coisas sempre do passado. Já dos 19 ou 21 ninguém canta...
A mudança de relações entre pais e filhos é um exemplo típico da expansão geral da democracia. Os pais já não estão muito seguros dos seus direitos sobre os filhos, os filhos já não sentem que devem respeito aos pais. A virtude da obediência, que era outrora exigida sem discussão, passou de moda e com certa razão.
A psicanálise aterrorizou os pais cultos com o medo de causarem, sem querer, mal aos filhos. Se os beijam, podem provocar o complexo de Édipo; se não os beijam, podem provocar crises de ciúmes. Se os repreendem em qualquer coisa, podem fazer nascer neles o sentimento do pecado; se não o fazem, os filhos adquirem hábitos que os pais consideram indesejáveis. Quando vêem as crianças a chupar no polegar, tiram disso toda a espécie de conclusões terríveis, mas não sabem o que fazer para o evitar. O uso dos direitos dos pais que era antigamente uma manifestação triunfante da autoridade, tornou-se tímido, receoso e cheio de escrúpulos. Perderam-se as antigas alegrias simples e isto é tanto mais grave quanto é certo que, devido à nova liberdade das mulheres solteiras, a mãe tem de fazer muito mais sacrifícios do que antigamente ao optar pela maternidade.
Nessas circunstâncias, as mães conscienciosas exigem muito pouco dos filhos e as mães pouco conscienciosas exigem demasiado. Umas reprimem a sua afeição natural e mostram-se reservadas, as outras procuram nos filhos uma compensação das alegrias a que tiveram de renunciar. No primeiro caso, impede-se o desenvolvimento da afectividade das crianças, no segundo estimula-se em excesso. Em nenhum dos dois, porém, há essa felicidade simples e natural que é o melhor que a vida de família pode proporcionar. Em face de todas estas dificuldades, é de admirar que a natalidade decline?
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo, disse Jesus à multidão: «O reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. Dorme e levanta-se, noite e dia, enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como. A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga, por fim o trigo maduro na espiga. E quando o trigo o permite, logo mete a foice, porque já chegou o tempo da colheita». Jesus dizia ainda: «A que havemos de comparar o reino de Deus? Em que parábola o havemos de apresentar? É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes que há sobre a terra; mas, depois de semeado, começa a crescer, e torna-se a maior de todas as plantas da horta, estendendo de tal forma os seus ramos que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra». Jesus pregava-lhes a palavra de Deus com muitas parábolas como estas, conforme eram capazes de entender. E não lhes falava senão em parábolas; mas, em particular, tudo explicava aos seus discípulos.
Embora seja um fiel seguidor de programas televisivos de cozinha / gastronomia, não me parece que alguma vez tenho postado neste estabelecimento algo relacionado com a cozinha. Para quem tem 7' para perder - ou para investir, sei lá eu - vale a pena ver o vídeo e ler o artigo do Observador.
Falamos de Gordon Ramsay, um dos mais famosos chefs do mundo. Aparentemente terá vindo a Portugal gravar um programa para uma série e aproveitou para cozinhar um pequeno almoço: porco preto (não sei se alcatra), vegetais salteados e ovos estrelados. O Observador (e alguns, poucos, comentários no Youtube) dão voz à indignação de portugueses que se insurgem contra esta ideia de pequeno almoço português. curiosamente, no Youtube o maior número de comentários é sobre o facto de ele dizer "a little touch of olive oil" e despejar meia garrafa.
No artigo do jornal há alguém que questiona o mundo que o segue: "O Ramsay a seguir vai fazer o quê, comer pastel de nata com colher?" Gosto da pergunta indignada porque abre porta para um raciocínio nacionalista: comer um pastel de nata com colher é adulterar o petisco, este bolo português que deveria ter sido exportado abundantemente, para equilíbrio das contas públicas e engrandecimento da Nação.
Quanto ao pequeno almoço português, não sei se existirá. É chá e torradas? Iogurte e granola? Um croquete e um café sem princípio ao balcão de uma pastelaria? Como em muitos aspectos da vida, não sabemos o que é, sabemos o que não é: porco preto, vegetais salteados ("in a little touch of olive oil"), ovos estrelados. O pior para mim, caso isto seja um pequeno almoço português: o excesso de energia do cavalheiro, a profusão de vez em que disse "fantastic", a correria de um lado para o outro. Podemos comer pastel de nata com uma colher - desde que estejamos sossegados.
Na capital da Colômbia, um atento e bondoso condutor de um camião do lixo de Bogotá reparou que nos bairros ricos da cidade, mais a Norte, havia livros nos caixotes do lixo. Muitos, demasiados. Num país de enormes contrastes sociais, aquele trabalhador nocturno, que se ficara pela Primária, tinha a noção da importância daquela ferramenta de cultura para as inúmeras crianças pobres do seu país, sem acesso a um bem que outros se davam ao luxo de desperdiçar irresponsavelmente. Apesar ou talvez por causa dos seus parcos estudos, José Alberto Gutiérrez sabia que a aprendizagem poderia ser o elevador social para os nascidos nas zonas desfavorecidas, reféns do círculo vicioso da pobreza.
Resolveu começar a coleccionar os calhamaços encontrados nos caixotes de lixo. Contou com a colaboração da mulher para os recuperar e da filha para os ordenar nas estantes com que forrou as paredes da casa. Alguns ricos acabaram por se aperceber do seu projecto e fizeram doações generosas, pelo que, em pouco tempo, Gutiérrez constituiu uma biblioteca com mais de 25 mil volumes, que abriu aos mais pobres de Bogotá, genericamente residentes no bairro La Nueva Glória.
Recordação da infância, que adorava ouvir a mãe ler-lhe histórias, ao deitar.
Dos 90m2 do seu apartamento, 70m2 ficaram para uso do público, chegando-lhe a pequena área sobrante para viver com a família.
Com sentido poético, José Alberto baptizou o novo espaço bibliográfico de «La Fuerza de las Palabras», inspirado no lema que o motivara e dera forças para persistir no seu sonho educativo, ajudado pela família.
Entre os seus compatriotas tornou-se conhecido por «el señor de los libros» e a sua fama galgou fronteiras. Em Junho de 2017, a BBC noticiou-o com o título «Dustbin man builds free library of thrown away books». A Associated Press dedicou-lhe uma reportagem, que remata com o desejo maior de José Alberto – erradicar a ignorância do planeta, acreditando no poder imenso do conhecimento para o pleno desenvolvimento humano e a promoção da paz. Foi só algo naïve, ao associar a educação directamente à paz, baseado na velha crença de que o saber, só por si, torna os seres humanos mais bondosos, pacíficos, sociáveis. Infelizmente, isto é desmentido pelos factos, como a história mostra à saciedade. Basta lembrar a elite nazi, a quem não faltava (na maioria) estudos e até um especial gosto pela cultura. Vários deles eram frequentadores assíduos de tertúlias eruditas e melómanas. O próprio Gutiérrez é a prova viva de como a generosidade e os gestos de paz provêm mais do ‘coração’ do que das habilitações literárias e da profusão de talentos intelectuais. É apenas um pormenor que em nada retira mérito à grandeza e eficácia da iniciativa de Gutiérrez, que já franqueou o acesso à universidade a muitos visitantes da sua casa-biblioteca:
No Vaticano, também na mesma linha de atenção aos necessitados, mas indo mais longe na origem das decisões bondosas, Francisco partilha conselhos práticos sobre a melhor forma de chegar a quem sofre, começando pelos doentes. No seu estilo directo, cheio de humor e descomplicado, explica como a receita é simples, quando as atitudes partem de um coração voltado para o próximo: primeiro ouvir, reparar em quem nos rodeia e só depois falar. Mesmo a calhar para o nosso tempo, que se acha campeão da comunicação…
No colombiano e no Papa argentino a ‘Força das Palavras’ e, mais ainda, das suas vidas, são uma dádiva a favor do próximo. Inspirados e inspiradores, como bibliotecas em carne-e-osso.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.
Almoço na 6ª feira passada no clube onde me fiz sócio antes da pandemia. Nunca se sabe quem partilha mesa (ou bacalhau, o que acontece a esses dias) naquele momento. Une-nos o facto de sermos homens, de estarmos de gravata, de não usarmos os telemóveis e de provavelmente nos termos cruzado familiar ou socialmente. O interesse das conversas tem a ver com o interesse dos interlocutores, não com o facto de pertencermos ao mesmo Clube.
Almoço com o meu querido amigo fq, a quem este post é dedicado, e com um cavalheiro simpático e educado, meio francês, meio espanhol, nascido no México. Falamos de generalidades - e falamos de música. Como ser humano normal, tenho as minhas vaidades, sendo que uma delas é o espanto que alguns estrangeiros evidenciam face aos meus gostos musicais. Como se falou de San Sebastian, de Espanha e de Cuba, referi que havia um género musical que eu apreciava muito, que eram as Habaneras. E como se falou de América do Sul (do México, mais propriamente dito), referi que gostava muito de mariachis e de Maria Dolores Pradera.
Para o meu querido e estimado amigo fq, companheiro antigo de cartas e de clube, aqui vai a Maria Dolores Pradera - a cantar também uma Habanera.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo, Jesus chegou a casa com os seus discípulos. E de novo acorreu tanta gente, de modo que nem sequer podiam comer. Ao saberem disto, os parentes de Jesus puseram-se a caminho para O deter, pois diziam: «está fora de Si». Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: «Está possesso de Belzebu, e ainda: «É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios». Mas Jesus chamou-os e começou a falar-lhes em parábolas: «Como pode Satanás expulsar Satanás?» Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode aguentar-se. E se uma casa estiver dividida contra si mesma, essa casa não pode aguentar-se. Portanto, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide, não pode subsistir: está perdido. Ninguém pode entrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens, sem primeiro o amarrar: só então poderá saquear a casa. Em verdade vos digo: Tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e blasfémias que tiverem proferido; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão: será réu de pecado eterno». Referia-Se aos que diziam: «Está possesso dum espírito impuro». Entretanto, chegaram sua Mãe e seus irmãos, que, ficando fora, mandaram-n'O chamar. A multidão estava sentada em volta d'Ele, quando Lhe disseram: «Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura». Mas Jesus respondeu-lhes: «Quem é minha Mãe e meus irmãos?» E, olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse: «Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe».
Esta ária, da ópera Les pêcheurs de perles, de Bizet, acompanha grande parte do filme O Pai, que tem como actor principal - e vencedor de um Oscar - Anthony Hopkins. Não é exactamente do filme que quero falar, embora valha muito a pena ver.
Um dia ouvi um jesuíta a dizer qualquer coisa parecida com isto: quem não é para viver sozinho não é para casar. Um dia li num livro qualquer que a vida de um monge cartuxo não era a mais desejável para quem gosta de viver em silêncio. Não sei se as frases estão relacionadas ou se as relaciono eu, porque isso faz parte da minha leve compulsão em encontrar relações entre tudo e mais alguma coisa.
O que nos dizem ambos os pensamentos? Talvez que estejamos de estar preparados para tudo e o seu contrário, e que o voto de silêncio e o casamento não são caminhos naturais para quem tem muito gosto pela vida em conjunto ou pela vida em silêncio. Isto é, ambas as opções são projectos de vida, não saídas profissionais para gente que tem jeito para isto ou para aquilo.
Ouvir Je crois entendre é assumir o confronto como uma música triste, apesar de muito bonita. Talvez, seguindo o raciocínio aplicado ao casamento e à vida cartuxa, possamos afirmar que a música triste não é para gente triste. Significa isso que eu, muito adepto de música triste porque muito adepto de música bonita, não sou um homem triste. E que as pessoas que odeiam música triste não são pessoas alegres.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
No primeiro dia dos Ázimos, em que se imolava o cordeiro pascal, os discípulos perguntaram a Jesus: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes: «Ide à cidade. Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água. Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: «O Mestre pergunta: Onde está a sala, em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?» Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta. Preparai-nos lá o que é preciso». Os discípulos partiram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito e prepararam a Páscoa. Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse: «Tomai: isto é o meu Corpo». Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho. E todos beberam dele. Disse Jesus: «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens. Em verdade vos digo: Não voltarei a beber do fruto da videira, até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus». Cantaram os salmos e saíram para o Monte das Oliveiras.
Luas, marfins, instrumentos e rosas, Traços de Dúrer, lampiões austeros, Nove algarismos e o cambiante zero, Devo fingir que existem essas coisas. Fingir que no passado aconteceram Persépolis e Roma e que uma areia Subtil mediu a sorte dessa ameia Que os séculos de ferro desfizeram. Devo fingir as armas e a pira Da epopeia e os pesados mares Que corroem da terra os vãos pilares. Devo fingir que há outros. É mentira. Só tu existes. Minha desventura, Minha ventura, inesgotável, pura.
Jorge Luis Borges, in "História da Noite" Tradução de Fernando Pinto do Amaral