20 dezembro 2024

Em memória de Alexandre O'Neill (que ontem faria 100 anos)

 Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato! 

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill, in 'Feira Cabisbaixa'

18 dezembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

Compreensivelmente é italiana a Natividade mais antiga que se conhece. O conjunto foi esculpido em madeira de tília e de olmo, no século XIII, pouco tempo depois de S. Francisco de Assis ter inaugurado a primeira representação do nascimento de Jesus, na noite de Natal de 1223. A originalidade e a força daquele gesto alastraram-se rapidamente por toda a cristandade, assim instituindo a tradição dos presépios, até aos dias de hoje.

As imagens pertencem à Basílica de Santo Estêvão, em Bolonha e podem ser vistas na pequena capela no interior de uma das sete Igrejas que formam o complexo conhecido por Basílica de Santo Estêvão: a da Santíssima Trindade ou Martyrium.

A Basílica de Santo Estêvão corresponde a um complexo arquitectónico, também designado por "Sete Igrejas" ou “Santo Sepulcro” 
(a mais famosa do grupo) ou "Sancta Jerusalem Bononiensis", cumprindo a intenção do Bispo e patrono da cidade
 – S. Petrónio –  de recriar em Itália os lugares sagrados de Jerusalém.

A Natividade de Bolonha foi concebida por um autor desconhecido, à escala real, sendo por isso o maior presépio monumental de Itália. A policromia que hoje reveste as imagens foi introduzida um século mais tarde (após 1370), pelo pintor bolonhês Simone dei Crocifissi, nos tons característicos da pintura sacra medieval: em ouro, índigo, magenta e verde. Graças a um restauro meticuloso (2006), a ancestral Adoração dos Magos preserva a beleza do estilo gótico original. 

Para se perceber a escala: as figuras mais altas, dos dois Reis em pé, medem 1,60m,
enquanto o que está ajoelhado, a homenagear o Menino, mede 1,10m.

É tocante o olhar protector do pai, pousado sobre o Pequenino revelado pela Mãe, com simplicidade e confiança, aos misteriosos visitantes ricos, que reconhecem n’Ele o Deus encarnado. Por isso, mal o avistam, adoram-No e oferecem-lhe os melhores presentes, protagonizando a primeira epifania da vida do Messias na terra. 

Perpassa uma enorme paz entre todos, cada um cumprindo uma missão simbólica: S. José, o guardião meigo; Maria, mãe atenta e generosa com os desconhecidos, antecipando a maternidade universal que lhe iria ser pedida como co-redentora da humanidade; o primeiro Mago ajoelhado e sem coroa para venerar o maior dos Reis; o segundo Mago a apontar para a Estrela que os conduzira àquela gruta distante; o terceiro Mago reluzindo uma oferta valiosa, talvez um incensário para abençoar naquele Bebé todos os seres humanos salvos pelo Filho do Homem.  

O esplendor do colorido medievo foi recuperado no restauro concluído em 2006.
Actualmente, o conjunto está exposto numa vitrina transparente,
com os níveis de humidade e de temperatura controlados electronicamente.

Em vez dos tradicionais traços étnicos representativos das diferentes raças do planeta, estes Sábios do Oriente simbolizam as três idades da fase adulta, desde a juventude até à senioridade, cabendo ao mais velho o lugar de honra no cortejo, junto ao Salvador do mundo. 

Um dos visitantes mais ilustres do valioso presépio de Bolonha foi Dante Alighieri, que estudou direito naquela cidade da Emilia-Romana e frequentou assiduamente o complexo de sete igrejas da Basílica de Santo Estêvão. De facto, algumas das cenas narradas no purgatório do autor da Divina Comédia são reconhecíveis em figuras esculpidas nos capitéis da galeria superior do claustro medieval: como o nu semi-esmagado por um pedregulho ou a cara violentamente torcida em 180º.  

Claustro que replica o pátio de Pôncio Pilatos, onde Jesus foi condenado à morte.
O itinerário dos monumentos constitutivos da Basílica costuma começar na Igreja do Crucifixo,
cuja cripta, designada «do Sepulcro», contém uma cruz nas dimensões da original,
segundo reza a lenda, assim revelando a altura de Jesus. 

No seu pensamento do dia 17 de Dezembro, o P. Vasco Pinto Magalhães, sj focou-se num dos segredos do Deus que extravasa os pensamentos humanos, começando logo no nascimento pária: «Estes dias que vão correndo, todos sentimos o desejo de viver num mundo mais justo e mais pacífico. Para fazer a paz é preciso ser forte por dentro, isto é, paciente e manso para aguentar as dificuldades sem desistir do bem. Fortaleza nada tem a ver com violência: esta é ingénua, impulsiva e nada constrói. A violência é sinal de fraqueza moral e espiritual.» (in ‘Não há soluções, há caminhos - 365 vezes por ano não perguntes porquê, mas para quê’). A mansidão lúcida, livre e transbordante de amor daquele Recém-nascido explica porque volta a querer renascer no nosso coração, ano após ano, desejoso de ficar connosco para sempre. O maior presente! Festas Felizes e santas a todos. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

17 dezembro 2024

Das orquestras e das perguntas sobre orquestras

Vamos elevar este estabelecimento ao nível da ligeireza - e vamos falar de orquestras numa vertente tão lúdica e ridícula quanto possível.

Declaração de interesses: sou um canhoto estranho, isto é, pouco consistente. Eu explico: escrevo com a mão esquerda, o meu olho director é o esquerdo, seguro uma raquete ou um taco de bilhar na mão esquerda, se quiser dar um murro ou um estalo é com a mão esquerda que o faço e é com essa mão que atirarei uma pedra. Por outro lado, jogo futebol com o pé direito, tal como sou destro a jogar às cartas, a manusear o rato do computador ou a usar a faca de carne ou de peixe à mesa. A tocar uma viola sou também destro mas, se me imaginasse a tocar violoncelo ou violino ou contrabaixo, é a mão esquerda que segura o arco.

Há muito tempo que tenho este olhar curioso para uma orquestra e que formulo esta pergunta que não me é respondida: porque não há canhotos numa orquestra? Eu percebo que não seja possível - por motivos que me parecem de ordem prática - haver um canhoto como eu a tocar violino. Mais do que uma certa inestética, como se fosse um soldado numa parada a marchar em desacerto com os camaradas, há um lógica de ordem prática: o meu arco e o do meu vizinho embateriam forçosamente um no outro. 

Vejamos o exemplo do trompete, um instrumento musical de sopro, da família dos metais, constituído por corpo, chave de água, bomba de afinação, pistões, cotovelos e bocal. Os pistões são o componente onde o trompetista carrega (com os dedos da mão direita) para fazer um derivado de sons. Ora, uma vez que o trompete se projecta para a frente do músico, não há nenhum impedimento prático deste carregar nos pistões com os dedos da mão esquerda. Acontece que eu nunca vi um trompetista canhoto, como nunca vi um clarinetista, ou fagotista canhoto. Será que, em toda a história da música e das orquestras nunca ouve um cavalheiro a dizer ao mestre artífice: oh, Josué, faça-me aí um trompete com os pistões do outro lado, que eu nasci canhoto... Temos aqui um problema de inclusão?  

***

No dia 8 de Dezembro fui representar a Acreditar num concerto solidário com as bandas dos três ramos das Forças Armadas. Voltei a ter um olhar perscrutante: há por aí um grumete canhoto? Não, não havia. E deparei com outra estranheza: nenhuma das bandas tem violino, ausência para a qual, estou certo, haverá uma razão lógica. O meu primeiro pensamento foi lógico: numa banda das Forças Armadas só faz sentido haver instrumentos que se possam tocar em movimento, como numa marcha, por exemplo. Mas depois percebi que havia contrabaixos e violoncelos, pelo que o meu raciocínio caiu pela base. 

***

Aqui ficam estas notas de superior importância, vertidas em duas perguntas: (1) porque não há canhotos numa orquestra? e (2) porque não há violinos numa banda das Forças Armadas?     

JdB

16 dezembro 2024

Poemas dos dias que correm

Uma arte

A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras. E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

 – Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (Toma nota!) uma calamidade. 

elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006

15 dezembro 2024

III Domingo do Advento

 EVANGELHO – Lucas 3,10-18

Naquele tempo,
as multidões perguntavam a João Baptista:
«Que devemos fazer?»
Ele respondia-lhes:
«Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma;
e quem tiver mantimentos faça o mesmo».
Vieram também alguns publicanos para serem batizados
e disseram:
«Mestre, que devemos fazer?»
João respondeu-lhes:
«Não exijais nada além do que vos foi prescrito».
Perguntavam-lhe também os soldados:
«E nós, que devemos fazer?»
Ele respondeu-lhes:
«Não pratiqueis violência com ninguém
nem denuncieis injustamente;
e contentai-vos com o vosso soldo».
Como o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias,
ele tomou a palavra e disse a todos:
«Eu batizo-vos com água,
mas está a chegar quem é mais forte do que eu,
e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo.
Tem na mão a pá para limpar a sua eira
e recolherá o trigo no seu celeiro;
a palha, porém, queimá-la-á num fogo que não se apaga».
Assim, com estas e muitas outras exortações,
João anunciava ao povo a Boa Nova».


13 dezembro 2024

Da ideia própria das perguntas

O sítio dos costume, mais ou menos o mesmo local, mais ou menos a mesma hora

Cresci com uma pessoa que tinha uma ideia muito própria das perguntas; e cresci com uma pessoa que tinha uma irritação muito vincada relativamente a essa ideia muito própria das perguntas. Ou seja, para uma determinada pessoa, as perguntas vais ao centro? Se sim, por onde vais? tinham uma resposta pintada de acrimónia: é relevante por onde vou? Para a pessoa que tinha acrimónia nos bolsos, pronta a sair em resposta a determinadas perguntas, o relevante era vais ao centro?, sendo que o resto era desimportante, parecia-lhe. 

Para esta mesma pessoa também havia uma espécie de informação - que apelidava de informação não solicitada - que justificava um punhado de acrimónia deitado ao diálogo. Se à pergunta vais ao centro? lhe fosse respondido sim, e vou pela rua do lado direito, então sentia-se no direito à irritação; afinal, só perguntara se ia ao centro, não lhe interessando se a pessoa em questão ia pela rua do lado direito ou pela rua do lado esquerdo. A pergunta era vais ao centro? e a resposta seria bastante directa: sim, não, não sabe / não responde, nenhuma das anteriores.

Vergílio Ferreira, no seu livro Para Sempre (Livraria Bertrand, 1983), aborda este tema, não sabendo que aborda este tema, porque menciona aspectos que são de uma conjugalidade mais literária (embora até nisso, na conjugalidade, haja pontos de intersecção...). E diz, referindo-se a Sandra (que é mulher do protagonista do livro que, por acaso, é autobiográfico): 

Sandra rarissimamente me perguntou fosse o que fosse, ah, sei bem porquê. Perguntar, situarmo-nos num plano de dependência onde se recebe a dádiva, o favor de uma resposta. Havia o resto, e esse resto era muito maior que a pequena coisa que eu queria. 

Sandra, que nunca terá pronunciado a palavra amor porque dizia que isso era ridículo, o importante seria o que se vive, responde-lhe mais à frente:

Tudo tem o seu mundo para existir. Ao nível mais alto ou mais profundo as palavras são intrusas.  

Gostava de imaginar que Sandra, ao falar da intrusão das palavras no nível mais alto ou profundo do mundo, estava a dar uma justificação elevada a quem - a tal pessoa com quem cresci - tinha uma ideia muito própria das perguntas. Temo que não seja o caso. Encontrar motivos superiores para as nossas idiossincrasias pode ser um motivo meritório, se bem que porventura inútil. Às vezes só nos resta o eufemismo: tinha um feitio desafiante...

JdB

11 dezembro 2024

Dos planos

Almoço um destes dias com pessoa de quem sou muito amigo. Falamos de tudo: da família, netos, filhos, emprego ou outras actividades, cônjuges, saúde mental e física. Estamos ambos reformados, pelo que já nos poupamos à conversa que sempre achei maçadora da carreira, dos fringe benefits, da incompetência dos chefes, dos pares ou dos subordinados. Conversamos sobre os méritos e deméritos da aposentadoria, de como gerimos os dias, e diz-me ele que vive particularmente feliz: faz muito do que quer e quando quer, tem folga financeira, tem família saudável e próxima - uma alegria total. E diz-me ainda que não sabe (vigiai, porque não sabeis dia nem hora) quanto tempo lhe resta, pelo que se habituou a não fazer grandes planos, vivendo um dia de cada vez.

A conversa, vinda de quem veio, não me surpreendeu, mas não deixei de pensar nessa coisa, não sei se muito moderna, de não fazer planos, de viver o dia a dia e fazer disso uma espécie de filosofia de vida. Há muito que o oiço, não só em pessoas em idade de reforma, mas também em pessoas mais novas: não quero fazer planos, quero viver o presente, gritar o carpe diem como se fosse a única frase que me resta gritar. 

Olho para dentro de mim próprio e tenho a sensação de que não há nenhum músculo que se move na direcção do gozar o dia a dia. Tenho muitos planos? Não sei se muitos: quero terminar o doutoramento, e só isso já me leva para o final de 2025. Nesse mesmo ano gostaria de ir, para além de outros destinos mais próximos, ao Chile (onde tenho amigos) e a outro país da América Latina. Em 2026, se um amigo ainda por lá viver, apetece-me ir a Macau e à China. Em 2027, se ainda cá estiver em condições, talvez me atire à Austrália (onde decorrerá o congresso de oncologia pediátrica nesse ano) e Nova Zelândia (onde também tenho amigos).

Concretizarei tudo isto? Não faço ideia. Sei lá eu se não me falece a vontade, a verba ou a força. Mas, à luz do que sei hoje, até 2027 tenho as minha vida muito ocupada, com estudos, voluntariado (um projecto muito específico, que terminará em 2026) e viagens. Nunca fui um fazedor nato, nem nunca tive uma apetência forte para estar sempre em agitação. Temo, porém que, se não tiver planos, a minha vida decorra demasiadamente sob o signo da rotina, o que é complicado para um homem que já gosta muito - ou excessivamente - de rotinas. 

Mais do que precisar de planos, gosto de ter planos, e até de partilhá-los com quem me fôr próximo. Há circunstâncias na vida em que, não os tendo, tudo pode ficar desinteressante - ou triste.

JdB 

10 dezembro 2024

Poemas dos dias que correm

 Um Sonho

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, celestial girasol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves
Suaves...

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse
E o sol, o celestial girasol, esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos,Flor!à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem!Além freme a quermesse...
- Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos
Beijos se beijam,Flor!à flor dos frescos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Esmaiece na messe o rumor da quermesse...
- Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo . Esmorece a quermesse...
Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos ,
Cítolas, cítaras, sistros ,
Soam suaves , sonolentos ,
Sonolentos e suaves ,
Em Suaves ,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse
O rumor amolece, esmaiece, esmorece...
Dê-me que eu beije os teus morenos e amenos
Peitos!Rolemos,Flor!à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Ah! não resista mais a meus ais!Da quermesse
O atroador clangor, o rumor esmorece...
Rolemos, ó morena! em contactos amenos!
- Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Três da manhã.Desperto incerto...E essa quermesse?
E a Flor que sonho? e o sonho? Ah!tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz,luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora,à flor dos flóreos fenos...

Eugénio de Castro
Arcachon,12 de julho de 1889.

09 dezembro 2024

Do que dizem os olhos de cada um

Num romance, ou filme, de cujo nome não me recordo, alguém termina uma relação com alguém dizendo-lhe: não gosto da minha imagem que vejo reflectida nos teus olhos. Essa imagem não sou eu. 

No conto O Príncipe Feliz (citado por Irene Vallejo em O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024), Oscar Wilde coloca na boca do rio a seguinte frase: porque quando se inclinava, eu conseguia ver a beleza das minhas águas nos seus olhos. 

Num dos seus poemas de que mais gosto - Impressão Digital - e que já citei abundantemente neste estabelecimento, diz António Gedeão:

Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns. 

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente. 

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

Tanto tem razão o personagem que põe fim à relação como tem razão o rio que vê a beleza das saus águas reflectidas no Príncipe Feliz. Quem tem mais razão ainda é o Gedeão, que alguns conheceram como Rómulo de Carvalho. Afinal, cada um vê o que quer nos olhos do outro. Talvez a pergunta, que tanto tem comovido entrevistados, o que dizem os teus olhos?, não tenha uma resposta verdadeira ou não tenha uma resposta falsa e, por isso, seja uma pergunta que pode devolver-se ao entrevistador: e tu, o que vês nos meus olhos? 

Conhecemo-nos através dos outros, através do que nos dizem, do que nos respondem, da forma como reagem às nossas palavras ou aos nossos actos, como comentam as nossas decisões ou dão opiniões sobre os nossos gestos. Está no domínio do sonho (que se transformará em pesadelo) achar que temos direito ou só queremos ver a luz nos olhos do nosso próximo. Provavelmente vemos tudo - o sol e a sombra, o que temos de melhor ou o que temos de pior, a luz e a escuridão. Por vezes vemos o que somos e não queremos ver, por vezes vemos uma imagem injusta, por vezes vemos o amor mas preferimos ver outra coisa, porque o reflexo nos parece desagradável. E quem disse que o exercício do amor era sempre agradável?

Vemos o que quisermos ver: vemos moinhos? São moinhos. Vemos gigantes? São gigantes. Acima de tudo, precisamos de escolher bem o que vemos nos olhos do outro.

JdB

08 dezembro 2024

Solenidade da Imaculada Conceição

 EVANGELHO – Lucas 1,26-38

Naquele tempo,
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,
a uma Virgem desposada com um homem chamado José.
O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o anjo:
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras
e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo:
«Não temas, Maria,
porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
reinará eternamente sobre a casa de Jacob
e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo:
«Como será isto, se eu não conheço homem?»
O Anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril;
porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

06 dezembro 2024

Poemas dos dias que corem

Paredão do Estoril, mesma hora, dia diferente

A pedra

Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.
voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.
E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.
A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.
O poeta quer escrever
a voz na pedra.
Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.
Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.
Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.

Mia Couto

05 dezembro 2024

Duas Últimas

Fui convidado para um jantar de anos, que se realizará antes do Natal. Depois de várias indicações sobre local, hora, menu, o que se passa a seguir e onde, recebi um último pedido: vamos ter em minha casa um pianista no escritório ao lado da sala, sem altifalantes, para não nos perturbar. Desafiava-vos a escolherem, desde já, uma música para ele tocar, de forma a que ele fique com um repertório ao nosso gosto.

O pedido só aparentemente é simples mas, no fundo, é como aquela pergunta difícil: se houvesse um fogo em tua casa e só pudesses retirar uma coisa, o que tirarias? Conheço milhares de músicas, pelo que a escolha era desafiante. Pensei no As time goes by, do filme Casablanca. Pensei em muitas outras a que associo momentos marcantes da minha vida. Acabei por escolher um dos tangos mais bonitos de Carlos Gardel e umas das músicas mais bonitas alguma vez compostas. 

Deixo-vos com El dia que me quieras, numa versão instrumental. Espero que apreciem tanto como eu. Estou muito curioso em saber as músicas que compõem a lista.

JdB

04 dezembro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 GULBENKIAN CELEBRA A PRIMAVERA EM DEZEMBRO

Na próxima Sexta-feira, para começarmos bem o fim-de-semana que aí vem, a Gulbenkian vai transmitir em sinal aberto a fantástica obra de Stravinsky (1882-1971) – «Sagração da Primavera», às 19h00, a partir do Grande Auditório, (no website Fundação Calouste Gulbenkian - YouTube). Apenas veremos a metade musical desta obra de tridimensional, sem o ballet associado à música vanguardista e revigorante do compositor russo, que Leonard Bernstein, em 1973, considerou um expoente da arte: «Essa pauta tem sessenta anos de idade... e também as melhores dissonâncias que alguém poderia imaginar, assim como as melhores assimetrias, as melhores politonalidades e tudo o mais que lhe queira chamar.» A peça estreou em versão de luxo, na Primavera de 1913 (29 de Maio), em Paris, tendo por produtor Sergei Diaghilev, o corpo de bailarinos era a sua famosa companhia Ballets Russes e a coreografia do genial Nijinsky. A Rússia acumula génios no ballet. Um deles foi defenestrado, há dias, apenas com 39 anos, por ter criticado a guerra de Putin contra a Ucrânia, embora as autoridades falem em acidente, mais um a cair de uma janela russa, que se tornaram letais, desde Fevereiro de 2022.  

Na «Sagração da Primavera», a ideia do sacrifício da jovem a dançar até à morte, para aplacar a fúria dos deuses primaveris, inspira-se nos rituais pagãos da Rússia medieva. A obra teria sido concebida pelo compositor, em parceria com o filósofo e pintor russo Nicholas Roerich, que retratou cenas desses ritos pré-cristãos para criar os cenários e figurinos alusivos ao paganismo russo. No ballet torna-se mais perceptível a sequência de quadros da composição de Stravinsky, cuja primeira parte é dedicada à adoração da terra: Augúrios primaveris – Dança das adolescentes, Ritual da abdução, Círculos da primavera, Ritual das aldeias rivais, Cortejo do Sábio, Adoração da terra (O Sábio), Dança da Terra. Seguem-se os quadros da segunda parte, intitulada «O sacrifício»: Círculos místicos das adolescentes, Glorificação da eleita, Evocação dos antepassados, Ação ritual dos antepassados, Dança sacrificial (A eleita).

Nesse concerto de 6 de Dezembro, o maestro Hannu Lintu interpretará também uma obra do veneziano Luigi Nono (1924-1990): «Como una ola de fuerza y luz», de conotação política expressa, para homenagear quem combate pela liberdade. O compositor italiano dedicou-a à morte do líder da esquerda revolucionária chilena – Luciano Cruz, e também à revolução argelina, às vítimas de Auschwitz e às sublevações no Vietname, em Cuba e em países da América do Sul (omitindo os Gulags soviéticos e as prisões políticas na Cortina de Ferro). 

Para um lanche memorável com chá, scones e bolos caseiros, o Convento dos Cardaes tem o claustro aberto aos fins-de-semana e feriados, até 15 de Dezembro, das 15h30 às 18h30 (reservas através de natalsolidario@conventodoscardaes.com). Será também uma boa ocasião para visitar o museu e a Igreja do antigo convento barroco, situado no número 123 da rua do Século. Os fins-de-semana incluem também música, com este calendário de concertos: 

7 de Dezembro - 16h30 - Coro Christus Ensemble
8 de Dezembro - 16h30 - Coro Santo Inácio
14 de Dezembro - 16h30 - Polyphonia Schola Cantorum
15 de Dezembro - 16h30 - Coro Regina Coeli 

Entre 27 de Novembro e 8 de Dezembro, acumulam-se festas importantes de Nossa Senhora: a primeira começa em França, durante o século revolucionário da Cidade das Luzes e a segunda acaba em Portugal, que reconheceu com dois séculos de avanço o dogma da Imaculada Conceição. Por generosidade do autor, transcrevo a história aventurosa da famosa «medalhinha milagrosa» (como é conhecida em Portugal), que até da mortífera epidemia de cólera (1832) protegeu quem a usou: 

«A MEDALHA DE NOSSA SENHORA 

No ano de 1830 (há quase 200 anos), o dia 27 de Novembro foi um sábado. Às 17h30, a Irmã Catherine Labouré, das Filhas da Caridade, uma sociedade fundada por S. Vicente de Paulo e Santa Louise de Marillac, fazia a sua oração diante do quadro de S. José na capela da rue du Bac, casa-mãe das Filhas da Caridade, em Paris. De repente, vê Nossa Senhora sobre uma hemisfera, pisando uma serpente, segurando nas mãos um globo terrestre encimado por uma cruz. Catherine ouve: «Este globo representa o mundo inteiro, a França e cada pessoa em particular». Numa segunda imagem, vê Nossa Senhora abrindo as mãos com raios resplandecentes: «Estes raios simbolizam as graças que ninguém pede». Forma-se uma oval em torno da aparição com a inscrição em letras douradas: «Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a vós» («Ô Marie conçue sans péché, priez pour nous qui avons recours à vous»). Catherine ouviu então uma voz:

   — «Cunha uma medalha com esta imagem. Quem a usar confiadamente receberá grandes graças».

A imagem roda e, no reverso, aparece uma cruz por cima das iniciais de Maria e, em baixo, dois corações, um coroado de espinhas e o outro trespassado por uma espada.

A medalha que Nossa Senhora pediu para cunharem.
No anverso, a sua imagem e uma oração dirigida a ela;
no reverso, o «M» de Maria, encimado por uma cruz,
com os corações de Jesus e de Maria por baixo.

Passado uns dias, Nossa Senhora voltou a aparecer e a pedir-lhe novamente que mandasse cunhar a medalha.

A Irmã Catherine contou tudo ao seu confessor, que lhe disse para esquecer aquelas imaginações, no entanto, ele próprio foi falar do assunto a Mons. de Quélen, Arcebispo de Paris. As circunstâncias eram tão difíceis, que a própria Virgem Maria tinha comentado à Irmã Catherine que «os tempos eram maus». O anticlericalismo grassava, o Governo não tinha força para impedir os revolucionários de perseguir os católicos, o Arcebispo de Paris governava a sua diocese refugiado na clandestinidade. Sobretudo, do ponto de vista do Arcebispo de Paris, era relevante que aquela medalha fosse uma tomada de posição clara acerca da Imaculada Conceição de Maria, porque na época se discutia na Igreja a oportunidade de proclamar esse dogma. Só 24 anos depois, no dia 8 de Dezembro de 1854, é que o Papa Pio IX proclamaria o dogma da Imaculada Conceição. Mons. de Quélen percebeu tudo o que estava em causa, mas autorizou a cunhagem da medalha.

Foram tantos os milagres, que o povo passou a chamar-lhe a «medalha milagrosa». A expansão foi extraordinária. Em poucos anos, cunharam-se milhares, centenas de milhar, milhões, milhares de milhões de medalhas, por todo o mundo. Por exemplo, durante o carnaval de 1832, uma terrível epidemia de cólera semeou o pânico em França: em poucas horas, morreram 20 mil pessoas. A medicina racionalista foi impotente, mas as Filhas da Caridade continuaram a cuidar dos doentes, sem medo de entrar nos tugúrios mais pobres, nem medo do contágio. Todos aqueles que receberam a «medalha milagrosa» salvaram-se e muitos deles converteram-se. Elas próprias, continuamente em contacto com os doentes mais graves, salvaram-se incólumes da epidemia: nem uma só Filha da Caridade foi infectada!

A Irmã Catherine teve uma vida muito simples, sem chamar a atenção, num hospício das Filhas da Caridade dedicada a servir os pobres, sem-abrigo ou mutilados da revolução e das guerras. Só quando ela morreu, as religiosas que viviam com ela contaram alguns dos episódios da sua vida.

Levaram o corpo para a capela da rue du Bac. O Papa Pio XII canonizou-a em 1947.

Na sua recente Encíclica acerca do Sagrado Coração de Jesus e também do Imaculado Coração de Maria, o Papa Francisco cita abundantemente S. Vicente de Paulo, fundador das Filhas da Caridade. Além disso, decorre o aniversário da principal aparição a Santa Catherine Labouré, a 27 de Novembro, e estamos a poucos dias da grande festa de 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Motivos de sobra para recordar esta história da medalha pedida por Nossa Senhora.»

José Maria C.S. André – publicado a 1-XII-2024 
em media anglo-portugueses e 

 A concluir, uma colectânea de músicas com sabor a Natal: 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

02 dezembro 2024

Moleskine

 

Paredão do Estoril, um destes dias de manhã cedo
 

Haverá 50 anos de diferença entre estas duas frases: para que a Terra não esqueça, e vocês serão lembrados. Curiosamente, ambas se referem ao holocausto. A primeira, o título - provavelmente o subtítulo - de um livro que li há 50 anos; a segunda, uma das últimas frases ditas num filme que vi há pouco tempo. Ambas se referem à memória, à lembrança. 

Como tudo na vida, a memória já não é o que era. A minha geração (e outras antes disso) foi educada para a memorização das coisas: rios, serras, caminhos de ferro, reis, elementos da tabela periódica. Hoje já não é assim, pois está tudo à distância de um clique, de uma inteligência artificial, de um google. O que faz esta mudança pela nossa lembrança das pessoas? Desabituados que estaremos a usar a memória, como gerimos a memória que temos das pessoas? Ninguém com 40 anos ou menos lembrará de cor os rios de Portugal. Saberão lembrar as pessoas que lhes foram importantes? Em que parte do corpo está a nossa memória?

***

Oiço esta frase atribuída a C S Lewis: não é humilde quem pensa que é poucochinho, mas quem pensa pouco em si próprio. A modernidade, ou o salazarismo, sei lá eu, deram cabo da palavra humilde, cuja etimologia (se a memória não me falha) está em húmus, em algo inferior, que está abaixo de. Uma virtude que o tempo adulterou.

***

Janto um dia destes com sobrinhos que casarão para o ano. São pessoas na casa dos trinta e muitos que vivem juntos, que lidarão menos bem (e muito naturalmente) com algumas tradições antigas que sentem desactualizadas e sem sentido. Como (quase) todos os daquela geração, por mais alternativos que sejam, querem o casamento tradicional: missa, fraque, damas de honor, copo de água sentado com entrada, prato, mesa de queijos e de doces. 

Neste parágrafo não está envolvida nenhuma crítica, até porque gosto muito deste (futuro) casal. É uma constatação sociológica: por mais que algumas tradições mudem, outras querem-se imutáveis.

***

Por causa do meu doutoramento, tenho vindo a entrevistar Pais de crianças / jovens com cancro que estão em tratamento ou fora de tratamento há pouco tempo. Em resposta à pergunta: na fase de diagnóstico / tratamento do seu filho(a), onde foi buscar apoio (fé, família, amigos, ciência, etc.) para lidar com a situação? a resposta foi quase sempre e mesma: ao meu filho(a). 

A resposta não está errada, porque nenhuma resposta está errada, mas fez-me pensar. O meu filho(a) seria, para mim - e num pensamento repentista - a resposta à pergunta: o que o fez nunca desanimar? Talvez o ânimo e o apoio se cruzem algures.  

***

Já aqui escrevi sobre isto: a minha valentia física (já se vai perceber porque não uso a palavra coragem) nunca foi posta à prova. Na minha vida nunca fui confrontado com a necessidade ou inevitabilidade de bater em alguém ou de me defender de ataques físicos. Não posso imaginar, por isso, como reagiria se me visse envolvido numa circunstância semelhante.

Apanho numa palestra a definição de coragem, de quando a palavra entrou no léxico inglês: vem do latim cor (coração) e significava originalmente contar a história de quem somos com todo o nosso coração. De uma forma simplista, porque esta definição tem outras implicações, estas pessoas tinham a coragem de ser imperfeitas. 

Continuo sem saber se sou valente, ou destemido. Mas gosto de saber que sou um pouco corajoso.

JdB

01 dezembro 2024

Símbolos para o dia de hoje

                                     


Hino (original) da Restauração * 

Lusitanos, é chegado
O dia da redempção
Caem do pulso as algemas
Ressurge livre a nação

O Deus de Affonso, em Ourique
Dos livres nos deu a lei:
Nossos braços a sustentem
Pela pátria, pelo rei

Às armas, às armas
O ferro empunhar;
A pátria nos chama
Convida a lidar.

Excelsa Casa, Bragança
Remiu captiva nação;
Pois nos trouxe a liberdade
Devemos-lhe o coração.

Bragança diz hoje ao povo:
“Sempre, sempre te amarei”
O povo diz a Bragança
“Sempre fiel te serei”

Às armas, às armas
etc, etc…

Esta c’roa portugueza
Que por Deus te foi doada
Foi por mão de valerosos
De mil jóias engastada.
Este sceptro que hoje empunhas,
É do mundo respeitado,
Porque em ambos hemisférios
Tem mil povos dominado!

Às armas, às armas
etc, etc…

Nunca pode ser subjeita
Esta nação valerosa,
Que do Tejo até ao Ganges
Tem a história tão famosa.

Ama-a pois, qual o merece;
Ama-a, sim, nosso bom rei
Dos inimigos a defende,
Escuda-a na paz, e lei.

Às armas, às armas
etc, etc…

Ai! Se houver quem já se atreva
Contra os lusos a tentar,
O valor de um povo heróico
Hade os ímpios debellar.

Viva a Pátria, a liberdade,
Viva o regime da lei,
A família real viva,
Viva, viva o nosso rei.

Às armas, às armas
etc, etc…

I Domingo do Tempo do Advento

 EVANGELHO – Lucas 21,25-28.34-36

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas
e, na terra, angústia entre as nações,
aterradas com o rugido e a agitação do mar.
Os homens morrerão de pavor,
na expectativa do que vai suceder ao universo,
pois as forças celestes serão abaladas.
Então, hão de ver o Filho do homem vir numa nuvem,
com grande poder e glória.
Quando estas coisas começarem a acontecer,
erguei-vos e levantai a cabeça,
porque a vossa libertação está próxima.
Tende cuidado convosco,
não suceda que os vossos corações se tornem pesados
pela intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida,
e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha,
pois ele atingirá todos os que habitam a face da terra.
Portanto, vigiai e orai em todo o tempo
para que possais livrar-vos de tudo o que vai acontecer
e comparecer diante do Filho do homem».

28 novembro 2024

Da nostalgia dos primeiros beijos *



O video acima - cujo descrição sucinta é we asked twenty strangers to kiss for the first time - corre na internet e tem, de há três semanas para cá, mais de setenta milhões de visualizações. Confesso que não sei porquê, embora eu seja uma das pessoas que engrossa a estatística. Apanhei o video num blogue qualquer e vi-o uma vez, que para mais não se justifica.

Presumivelmente, os intervenientes nestes primeiros beijos não serão actores. Se forem, o assunto deixa de ter interesse, confesso. Não fazendo do ósculo uma das suas actividades profissionais, o que sentem estas pessoas quando beijam pela primeira vez uma pessoa desconhecida? Que reacção lhes provoca? Uma sensação agradável ou de estranheza? Conseguimos beijar a boca de alguém sem que isso mexa connosco? O impacto é igual para todos? E que marcas deixará? Apenas a memória de meia dúzia de segundos em que, de olhos fechados, se trocam fluidos bocais? Ou, pelo contrário, este primeiro beijo deixa a vontade de um segundo ou de um terceiro? Quem sabe de um futuro encontro para que os olhos comprovem o que os lábios sentiram?

Revivi o meu primeiro beijo. Detentor de uma boa memória, lembro-me com quem foi, para além da hora e do local. Lembro-me até do outro par ao lado, envolvido em actividade semelhante, à distância do silvo de um comboio.  Recordo a arrebatação, o sentimento de êxtase pela espinha abaixo, a ideia de algo proibido, aventuroso como só o miguel strogoff. Também lembro, porque sou detentor de uma boa memória, o desinteresse estético da minha namorada de então, uma colega de liceu pequena,  que não vejo há mais de quatro décadas e que não reconheceria na rua.

Usemos a ideia de primeiros beijos como uma metáfora. O que me atrai neste conceito que revisito com uma frequência que exaspera os mais pacientes? Porque falo tanto nestas épocas da minha vida - a do verdadeiro primeiro beijo e dos anos seguintes? É a procura da simplicidade de que falava na semana passada? É a lembrança de uma emoção, de um sentimento, de um frémito que os tempos e o feitio feriram de morte? É a ideia de uma vida cuja única preocupação, como me escreveu um amigo, era saber o que faríamos nessa noite?

Sábado passado disseram-me: já sei que eras amigo do JCS. Confirmei e recuei quarenta anos, revendo a irmã dele por quem me interessei afectivamente. Não tenho saudades dela, mas da ideia dela e do tempo dela. Não tenho saudades desta colega a cujos lábios encostei os meus numa ingenuidade desajeitada. Mas retive pormenores, significado de uma importância interior. Talvez eu seja um nostálgico obsessivo, não fixado especificamente nas pessoas, mas nos tempos, nas emoções, no entusiasmo inexplicável de sentir que uma rapariga me guardava os cigarros, como se fosse guardiã de um tesouro que pertencia a ambos.

Já sei que eras amigo do JCS. Sim, fui amigo dele num tempo de algarve, de cartas manuscritas, de noites longas nos terraços, de verdades e consequências reveladas com uma cara que corava, um coração que pulava, uns olhos que fugiam do que o amor já fixara; sim, fui amigo dele num tempo de músicas dançadas na quietude de temperaturas amenas, com a cara encostada a uma rapariga que não se mexia, cujos cabelos cheiravam a timotei ou a fragrâncias compradas em badajoz. Sim, fui amigo dele num tempo de quer dançar comigo? e de obrigado, de mãos dadas escondidas, de olhares furtivos e abraços dançantes, de corpos juntos e almas presas. Sim fui amigo dele num tempo de primeiros beijos.

JdB

* publicado originalmente a 2 de Abril de 2014

27 novembro 2024

Poemas dos dias que correm

 Amar uma pedra, um cão, uma osga, uma barata.

Amar uma pessoa que não gosta de nós.
Amar uma pessoa de quem não gostamos.
O amor é mais difícil que a mecânica quântica.
Fernando Pessoa, num poema em que caridade rima
com electricidade, diz que não tem caridade.

Às vezes, aquilo a que chamamos amor não é amor:
- é exigir amor em troca
- é dar para que dês

Amar alguém é confiar nessa pessoa, não estar de pé atrás, acreditar nessa pessoa. Gostamos pouco uns dos outros, disse Tonino Guerra.
Querer amar e ser amado, dizia Jorge Luis Borges, é muito ambicioso, não é humilde.
Acho que devemos pedir só para amar.
É fácil amar quando a vida nos corre bem.
Quando a vida nos corre mal, insultamos o mundo e, às vezes, insultamos Deus. Acreditar então nas coisas mais queridas, mais pequeninas:
- as medalhinhas do nosso Baptismo, que entretanto foram roubadas, se perderam.
- a imagem de Nossa Senhora de Fátima comprada na loja dos 300.
- dois versos de uma oração de que esquecemos o resto.

Às vezes, a vida corre-nos muito bem e esquecemo-nos da compaixão. A compaixão é o amor. Só a compaixão salva. Só a compaixão é eterna.
O sofrimento nem sempre se vê. E o sucesso, como o desespero, pode cegar.

Às vezes, temos grandes amigos e não sabemos. A padeira do nosso bairro, o vizinho do nosso prédio. Anos e anos a dizer:”Bom-dia! Boa-tarde!, mais nada, e essas palavras bastaram.

O amor nem precisa de palavras. Mas as palavras sabem bem.

Adília Lopes

26 novembro 2024

Da redenção *

Abílio entrou na Fábrica A Ilusão das Beiras pelo início da manhã de uma segunda-feira chuvosa, fria e escura. É um homem magro, alto, que mais parece um ramo de salgueiro que se partirá à menor ventania. Tem umas olheiras fundas e um cabelo grisalho muito ralo, penteado para o lado. Aparenta ter 60 anos, mas talvez ande no meio dos 40, embora gastos. 

Passados um ano a trabalhar como mecânico, estabeleceu um primeiro contacto social com a Deolinda, uma rapariga de 32 anos, morena, com uma beleza pouco óbvia, uns olhos ligeiramente assimétricos e uma cicatriz grande num braço. Deolinda sentiu-lhe a perturbação no olhar, quase como se a realidade lhe fosse algo difícil de suportar – uma luz demasiado intensa, um frio desagradável, um calor de derreter. Ou talvez, e apenas, um desajuste imperceptível com o mundo em seu redor.

Deolinda é uma minhota que, aos 22 anos, vai a meio de um curso de enfermagem em regime pós-laboral, ao qual se entrega como quem presta um serviço humanitário por vocação. É uma rapariga dócil, simpática, atenciosa. Abílio convidou-a para jantar e dançar, e baixou os olhos antes de ela lhe dizer sim, com muito gosto, com se tivesse medo de enfrentar algumas pessoas, ou como se tivesse medo de ver a vida de frente. No fim de uma noite agradável e calorosa, promissora de mais qualquer coisa, o par seguiu para o apartamento de Deolinda, onde, durante a hora seguinte, se entregariam ao prazer, à sensualidade, à exploração dos corpos. Talvez mesmo ao carinho, à atenção e à companhia, afectos cuja raridade prejudica tanta gente.

Abílio despiu-se revelando algum pudor e, estranhamente, algum incómodo pela nudez simples, descomplexada e levemente clara da Laura, fixando os seus olhos com mais intensidade numa borboleta tatuada onde ele suporia a marca de uma qualquer apendicite.

Foi sempre com algum embaraço que, deitado na cama e com um lençol por cima, se foi confrontando com o corpo da rapariga - uns seios pequenos e levemente levantados, umas nádegas bem feitas e descaídas ao limite da estética, umas pernas magras mas elegantes, um ventre liso e sem vestígios de gorduras. Deolinda foi carinhosa, disponível, amável, atenciosa.

- O que te apetece, Abílio? Ainda estás em boa forma física! Gosto muito que me acaricies. Preferes a luz acesa?

Abílio, um homem que estará na recta final dos 40, com olheiras fundas e cabelo grisalho ralo, fez amor com ela usando o cuidado de quem toca um cristal finíssimo, evidenciando a suavidade com que um alfaiate profissional e competente ajeita uma peca de tecido que cortará ao gosto do cliente, revelando a prudência de um explorador que se aventura, cauteloso, por terras que lhe são estranhas.

No fim murmurou-lhe um pedido

- abraça-me...

naquele tom de voz que revela desejo, mas pouco à-vontade devido a desabituação, e chorou como uma criança, ou talvez como uma barragem que rebenta por não aguentar mais a pressão a montante.

Levantou-se e vestiu-se, enquanto Deolinda, na cama, fumava um cigarro, surpreendida com o choro súbito, vagamente apreensiva com um exame na semana seguinte. Afastou os lençóis para que Abílio a mirasse de novo, sem que naquele olhar houvesse uma luxúria para além do saudável, mas apenas um motivo para ouvir a frase:

- És linda, Deolinda! Linda.

Depois, em pé, pronto para sair, virou-se para trás e disse:

- Saí o ano passada da cadeia onde cumpri uma pena de quase 25 anos pela morte de duas raparigas, morenas, altas e com 22 anos. Foi um impulso, uma raiva, sei lá o quê. Consideraram que já não seria um perigo para a sociedade, mas tinha que ser eu, acima de tudo, a perceber a minha cura, a estar certo de que sou inofensivo. Tu foste a prova, e sei que nunca mais quererás ver-me. Obrigado por tudo.

O ex-presidiário não teve tempo – ou talvez não tenha querido ter a oportunidade - de perceber o olhar angustiado de Deolinda, a estudante que terá de saber perfurar uma veia com uma agulha, ou estender com mestria os instrumentos a um cirurgião.

Abílio revelou um olhar diferente para a cicatriz de Deolinda, como se a realidade fosse algo a que se começasse a habituar. É possível que ela lhe tenha vislumbrado um sorriso envergonhado, não sei. Se calhar apenas o esboço, um ensaio, uma preparação. Na rádio, uma artista da moda cantava o seu último êxito, no qual o refrão mencionava diversas vezes a palavra redenção. Talvez Deolinda tenha também sorrido...

JdB

* baseado numa história já antiga

25 novembro 2024

Poemas dos dias que correm

 O que há em mim é sobretudo cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço. 

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
 
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser... 

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles o meio termo, ou qualquer termo,
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

24 novembro 2024

Solenidade de Cristo, Rei do Universo

 EVANGELHO – João 18,33b-37

Naquele tempo,
disse Pilatos a Jesus:
«Tu és o Rei dos judeus?»
Jesus respondeu-lhe:
«É por ti que o dizes,
ou foram outros que to disseram de Mim?»
Disse-Lhe Pilatos:
«Porventura eu sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a mim.
Que fizeste?»
Jesus respondeu:
«O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam
para que Eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu reino não é daqui».
Disse-Lhe Pilatos:
«Então, Tu és Rei?»
Jesus respondeu-lhe:
«É como dizes: sou Rei.
Para isso nasci e vim ao mundo,
a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

22 novembro 2024

Duas Últimas

 Stacey Kent fala em insensibilidade ou em indiferença. Roberta Sá fala em insensatez. Escolham a versão que quiserem de uma belíssima música, muito bem cantada em ambas as versões.

JdB



21 novembro 2024

Poemas (inteligentemente artificiais) dos dias que correm

 No início desta semana, para compor o texto sobre solidão que postei na 3ªfeira, pedi ao ChatGPT o seguinte: poema que fale de solidão de um poeta português. Em menos de 10 segundos o "sistema" apresentou-me isto:

Solidão do Poeta
(Inspirado pela alma portuguesa) 

Na penumbra da noite que me veste,
Caminho só, num fado que me chama.
A lua, confidente que me empreste
O brilho pálido que o peito reclama. 

Meu canto ecoa em paredes vazias,
Versos moldados por silêncios frios.
Companheiros, são as horas tardias,
E o vento que sopra nos montes sombrios. 

Que é do amor? Que é da vida tão doce?
Perdi-me em palavras, perdi-me em mim.
Um poeta sem rima que só se torce,
Num cais deserto, sem barco, sem fim. 

Mas na solidão encontro um espelho,
Onde meu ser, despido, se revela.
Sou mar bravio, sou astro sem brilho,
Mas também sou alma, e isso me impele. 

Oh, solidão, cruel e tão querida,
És musa e dor, veneno e guarida.

E acrescentou: este poema reflete a melancolia e introspecção tão presentes na obra de muitos poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Que achou? Quando lhe perguntei quem era o autor, informou-me: o poema que escrevi é original e inspirado no estilo melancólico de grandes poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca, mas não pertence a nenhum autor específico: fui eu quem o compôs para você.

Olho para o poema: se excluirmos as rimas doce / torce ou espelho / brilho, o poema não envergonha ninguém, e tem um verso particularmente criativo: O brilho pálido que o peito reclama. Se tirarmos o brasileirismo do tratamento por você, o diálogo que mantém comigo é impressionante. Tudo isto demorou nem um minuto. Onde é que vamos parar?

JdB

20 novembro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 EM CONTAGEM DECRESCENTE PARA O NATAL 

A agilidade do marketing para compor mensagens lapidares parece aguçar-se na aproximação ao Natal ou face a acontecimentos especialmente impactantes em determinado país ou mesmo no mundo. Vimos o IKEA no seu melhor durante a campanha eleitoral das últimas legislativas nacionais, com cartazes à Monty Python, de que lembro alguns, só descodificáveis para os eleitores nacionais, em modo private joke certeira:  


Surfando a onda de sucesso do IKEA, outras marcas criaram cartazes cheios de humor, uns também com farpas políticas directas (um inédito em Portugal), outros mais despolitizados, como preferiu a FNAC. Curiosamente, uns escassos 9 meses sobre as legislativas de 10 de Março de 2024 e só em pesca à linha (em blogs e no Facebook) ainda resistem na net exemplos dessa exuberância publicitária dos primeiros meses deste ano. Isto corresponde a um apagão informativo clamoroso do passado recente na google, cuja maioria das pesquisas apenas dá acesso a links institucionais (CNE e afins, com instruções sobre os locais de voto e infantilizações equivalentes) e, em matéria de cartazes restringe-se aos dos Partidos com assento na A.R., sendo os mais visíveis no google os do Bloco de Esquerda. Estranhos tempos de suposta liberdade democrática e de apregoado pluralismo de todos os quadrantes, mas com descarada redução do património histórico a um par de vestígios higienizados. Se isto não é cancelamento... Aqui vão exemplos de cartazes divertidos, em diálogo uns com os outros, caçados com enorme esforço, pelo que convém revê-los e guardá-los como documentos históricos expressivos de uma ousadia democrática desempoeirada, que deu os primeiros passos uns meses antes de cumprirmos meio século sobre o 25 de Abril:  

Mais 3 empresas entram no diálogo publicitário disparado pelo IKEA, com a famosa estante onde se esconderam milhares de euros no escritório do Chefe do Gabinete do PM de então (Nov.2023), em S.Bento.




O outdoor da SUN esteve exposto ao lado da sede do PS, no Largo do Rato.

Em 2018, o IKEA esmerou-se na sua missiva de Natal (ao invés deste ano, que lançou um meramente mercantilista) com uma curta-metragem interpelativa, dirigida sobretudo aos países hispânicos. Aproveita o clima afectivo da quadra para arriscar um alerta forte sem o efeito colateral de “murro no estômago”. Porque há verdades que doem, mais ainda quando se adentram na vida rica, mas cheia de claro-escuros, de tantas famílias. Partindo da matriz familiar do Sul da Europa e das sociedades latino-americanas, onde se juntam várias gerações à mesma mesa, denuncia-se a grande ilusão que podem ser as redes sociais, na miragem de estarmos mais interconectados com os outros, mas afinal menos disponíveis para os que estão ao lado. O tempo não estica para tudo: ou imagens de pessoas no ecrã ou gente de carne-e-osso. 

Convenhamos que muita cusquice se alimenta nas redes sociais, que devassam sem conseguir aproximar-nos de quem surge nos telemóveis ou nos tablets! Se dúvidas houvesse, confirma-se quanto o principal se joga nas escolhas do nosso coração e bem menos nas proezas tecnológicas ao nosso alcance. Vivemos mergulhados na superabundância de recursos (pelo menos, no Ocidente), o que exige saber escolher, deixar opções para trás, cientes do perigo de tentar ir a tudo e acabar em overdose. Bem sabemos que não é a mesa a transbordar de comida que engorda e dá cabo da saúde, mas o que realmente consumimos. Mais critérios e filtros afinados tornam-se incontornáveis para tirarmos o melhor partido do que está à mão de semear, mas requer moderação para evitar excessos viciantes e, a prazo, degradantes.

Claro que a validade de algumas perguntas na curta-metragem do IKEA poderá ser questionável, porque desconhecermos a cor preferida de alguém próximo não significa, necessariamente, desinteresse e frieza. Mas, sem nos atermos ao pormenor de cada interpelação, a ideia central merece ser levada a sério e repensada, no final do dia. Poderá servir de bússola para aprofundarmos e enriquecermos a relação com os outros, começando pelos mais chegados. Dizia um amigo meu, na altura pai de filhos pequenos, que uns vizinhos se preocupavam muito com os filhos, mas ocupavam-se bem pouco deles… Aplica-se, na perfeição, ao leit motiv do spot publicitário da marca sueca, observado pelo ângulo mais positivo e verdadeiro: «Everyday, we have the chance to know more about the people around us»:   



Quadra bem anunciar o Natal lembrando a liberdade tão necessária ao coração humano e crucial na relação com o próximo, para poder ser saudavelmente recíproca, positiva, sem atropelos ao que no outro (em cada um) é sagrado e intocável. É especialmente reconfortante constatar a explosão de liberdade que traz à humanidade o Menino que está a chegar, como se canta neste hino natalício:   


Hoje, a partir das 17h30, o Cristo Rei ficará iluminado em tons encarnados para lembrar o drama imparável dos deslocados e refugiados. É indizível a dor que provoca abandonarem a sua terra, por vezes, deixar para trás os mais velhos e frágeis da família, para fugir à pobreza e às guerras, aventurando-se em travessias perigosas até regiões estáveis e prósperas do globo, onde dificilmente serão tratados como um nativo. De 18 a 24 de Novembro, decorre a RED WEEK organizada pela Fundação AIS, em homenagem e em alerta para a situação dramática de milhões de cristãos vítimas de perseguição religiosa no mundo. Um dos pontos altos da semana é a apresentação do estudo: «Perseguidos e Esquecidos? Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé». Como é possível que uma época tão sensível aos Direitos Humanos e tão adepta das amplas liberdades, pactue (pelo silêncio noticioso) com estas perseguições mortíferas e inaceitáveis para os padrões de liberdade de que o nosso tempo se considera arauto e campeão? Onde estão a ONU e a maioria das ONG profissionais da denúncia? Hoje, às 17h30 será o lançamento do referido relatório, em Lisboa, no MUDE. Calendário das apresentações pelo país:  


Quem nasceu no lado rico do planeta tende a banalizar e subestimar a sua situação de privilégio, apesar dos problemas que lhe calhem em sorte, porque ninguém está imune às dificuldades. Não existe o paraíso na terra, ainda que se vivam momentos sublimes. Por isso, Quem se prepara para nascer impotente, insignificante e paupérrimo num lugarejo perdido, como lembramos na Noite Santa, será a nossa melhor ajuda para vermos mais, percebermos melhor e dispormo-nos a fazer a nossa parte, com gente de carne-e-osso ao nosso lado.   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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