28 outubro 2024

Duas Últimas

Fui ouvir Angelique Kidjo à Gulbenkian este sábado. Não sabia quem era, nunca tinha ouvido, comprei bilhetes para ir e para oferecer. Um concerto fantástico!

O meu gosto pela música africana data, muito provavelmente de 2008, ano em que estive no Zimbabwe dois meses. Antes disso tenho dúvidas - não me lembro - de que ouvisse esse estilo musical. Lembro-me de ouvir Dudu Manhenga ao vivo em Harare, num concerto privativo.

Regresso à Gulbenkian. Sou um habitué do espaço - curiosamente, lá estarei na próxima 3ªfeira a ouvir o Requiem Alemão de Brahms. Não estou habituado, no entanto, a ver a sala cheia de pessoas em pé, a dançarem, a cantarem, a baterem palmas, a entusiasmarem-me com Angelique Kidjo. Vale a pena ouvir e apreciar. Incluí neste post uma música mais lenta - Malaika - porque foi muito pedida pelo público, apesar de não ter sido tocada, e é muito bonita. Divirtam-se e apreciem.

JdB




27 outubro 2024

XXX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,46-52

Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu,
a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
começou a gritar:
«Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Muitos repreendiam-no para que se calasse.
Mas ele gritava cada vez mais:
«Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-O».
Chamaram então o cego e disseram-lhe:
«Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
Jesus perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?»
O cego respondeu-Lhe:
«Mestre, que eu veja».
Jesus disse-lhe:
«Vai: a tua fé te salvou».
Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.

23 outubro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 VITAMINAS DIÁRIAS 

Com as máquinas potentes que são os pequenos rectângulos dos nossos telemóveis, chegam-nos por mãos amigas incontáveis mensagens sugestivas e inspiradoras. Entre as incisivas e sábias estão as do Pe.Vasco Pinto Magalhães, sj, de que partilho uma selecção especialmente actual, saída da colectânea alimentada a cada dia – «NÃO HÁ SOLUÇÕES, HÁ CAMINHOS: 365 vezes por ano não perguntes porquê, mas para quê».  Talvez resulte num bom aperitivo para ir saboreando ao longo das próximas semanas, à maneira de um gin tomado em boa companhia:  

«22.OUT

Todos, sem excepção, temos um defeito dominante. E a melhor forma de corrigir defeitos é desenvolver as qualidades contrárias. E o segredo para desenvolver qualidades ou virtudes é puxar pela nossa melhor qualidade. Quando desenvolvo o meu talento, todo o resto da personalidade cresce e amadurece. Qual é a minha melhor qualidade?

21.OUT

Alegrar-se com o bem dos outros é um princípio de felicidade em que nos temos de educar. Incomoda um mundo de "bota-abaixo", que não sabe ver nem alegrar-se com o bem alheio. É já grande coisa entristecer-se e doer-se com o sofrimento do amigo, e quase todos somos capazes disso. Outra coisa é alegrar-se com o bem do próximo – isso é grandeza de alma!

20.OUT

O perdão não se opõe à justiça. Pensar o contrário seria, no mínimo, ingenuidade. É que, se podemos e devemos perdoar aos patrões da droga, aos terroristas e a todos os criminosos em geral se eles revelam arrependimento, a sociedade não pode deixar de os julgar e, se for caso disso, de os condenar a uma pena justa. A paz também resulta da justiça correctamente exercida e aplicada pelos órgãos próprios. Devemos mesmo exigir que essa justiça funcione devidamente.

18.OUT

Disse alguém que o futuro pertenceria a quem oferecesse mais esperança. Os políticos costumam acenar com promessas várias, mas nem sempre as promessas significam esperança. São mais a cenoura à frente do burro... Esperança é a credibilidade de um projecto. Esperança é a convicção de que a vida vale a pena e faz sentido. Esperança é a força para lutar mesmo na dificuldade. Esperança é "estar de esperanças".

17.OUT

A lista de desgraças do nosso mundo parece não acabar e até aumentar: guerras, fome, escândalos, abusos, corrupção... Parece que vai tudo de mal a pior. Será? O pessimismo parece mais inteligente, mas a esperança é mais sábia. Não será esta desgraça um grito de que tudo tem que mudar, de que queremos ir por outro caminho? E se queremos é porque ele existe.

16.OUT

Quem crê sabe que não há noite nem escuridão que dure sempre. Sabe e experimenta que há sempre uma saída, por mais fechada que pareça a situação. E se não a está a ver, não é porque não exista, é porque ainda não chegou a hora.

13.OUT

Curioso... À medida que a fé vai perdendo qualidade, não aumenta o ateísmo, aumenta a superstição. O nosso mundo à medida que se orgulha de não precisar de Deus, enche-se de amuletos e bruxas.

12.OUT

A primeira vítima do mal que faço sou eu próprio. Fiz mal àquele porque com esta "piadinha" lhe estraguei a fama, fiz mal àquela porque lhe fiz perder uma oportunidade, e ao outro porque lhe acertei em cheio no ponto fraco... Mas fiz mal – antes de mais – a mim próprio, porque não me portei como gente. O outro até pode crescer com o mal que lhe fiz, mas eu já desci uns pontos na escala da humanidade.

10.OUT

O ressentimento é uma das experiências humanas mais negativas. O ressentido está sentido com os outros e está sentido consigo, e remorde-se, não se perdoa nem perdoa, acha que tem todo o direito a isso. É a cegueira do ressentimento! Só um acto de humildade, e saber perder os falsos direitos a que me agarro, pode fazer-me sair dessa dor de andar magoado com a vida.

27.SET

A Fortaleza. Faz-nos imensa falta para superar os medos, os cansaços, para saber viver com as próprias fragilidades sem desanimar e com as fragilidades do mundo sem violência nem cinismo. A fortaleza é um dom que permite perdoar e recomeçar sempre. Só os fracos se vingam e mentem. Os fortes estão bem com a verdade, mesmo que traga sofrimento.

25 SET

O entendimento é como a inteligência, um "ler por dentro". É o que significa a palavra. É um dom que não se consegue com cursos, porque é uma atitude que (…) nos dá a capacidade de ir ao fundo das coisas, de interpretar os tempos e os modos. Sem discernimento nem as regras nos salvam.

23.SET

Mais do que coisas novas, aquilo de que precisamos é de uma maneira nova de ver as coisas. Não é o que acontece numa sociedade envelhecida e cínica, que gere as crises com oportunismo e sem referência a valores, e numa cultura que legaliza disfarçadamente a violência e a morte, parecendo trazer novidade, mas revelando tão só esgotamento e vazio. Quem não vir o bem no âmago da realidade nem sequer chega a compreendê-la e não tem futuro.

22.SET

O nosso mundo vive cheio de solidão negativa, sem perceber nem aceitar esse dom, essa necessidade, de estar só para poder recolher-se e organizar-se, para poder dar e dar-se. Oferece-nos, pelo contrário, dois álibis, para enganar a solidão: o trabalho e o divertimento. A ocupação e a satisfação talvez nos façam esquecer, mas deixam-nos cada vez mais longe de nós mesmos e dos outros.

21.SET

A solidão é, talvez, o maior sofrimento humano, já que fomos feitos para nos ligarmos e ser ligados. A solidão como vazio, como desamor e como perda de sentido, é uma espécie de morte por rejeição. Mas a solidão também pode ser saboreada como ocasião de outros encontros, com quem nos ama mesmo quando tudo se perdeu. E há quem saiba estar sozinho e bem, sem ter que fugir para esquecer ou enganar o vazio. O primeiro passo para viver bem a solidão vem precisamente ao descobrir que dentro de cada um de nós há alguém que nos ama: podemos ser nós... e é certamente Deus!

18.SET

Um dos mandamentos da verdadeira alegria diz assim: "Vê bem como fazes os cálculos das tuas avaliações!" Conta-se que, certa vez, um duende da floresta entrou numa loja e mudou a etiqueta dos preços. Por cima da máquina de lavar colocou o preço de dois euros e de uma dúzia de molas de roupa o de quinhentos euros. Foi a confusão! Parece-me que na nossa vida entrou um duende atrevido: damos muita importância aos negócios e, por exemplo, nem sequer uma tarde temos para brincar com os nossos filhos!

16.SET

A ave canta, mesmo que se parta o ramo, porque sabe que tem asas. Nós, na hora da dificuldade ou da doença, deixamos de cantar. É assim porque não sabemos ver com vistas largas e profundas. Porque só vemos, com as palas que temos nos olhos, aquilo que está mesmo diante de nós. Porque só confiamos no que tocamos e está à mão. Pobre materialismo, tão infeliz... Voa tão baixo...

14.SET

É diferente a espera e a esperança. Se estou à espera do comboio que não chega, digo a mim mesmo: "tem paciência, espera". Mas também oiço uma voz cá dentro que diz: "tem esperança"; isto é, mesmo que o comboio não chegue podes crescer com esta situação, podes tirar partido dela e até inventar outra saída. A espera é de coisas materiais. A esperança abre horizontes e dá sentido ao que nos acontece.

13.SET

Comunicar é mais do que transmitir, como formar é mais do que informar. Comunicar é comungar. Comunicar é estabelecer uma ponte que funciona nos dois sentidos. Podem ser úteis os comunicados, mas sem resposta recebida e aceite, não há comunicação que seja comunhão.

12.SET

Quem sofre, a maior parte das vezes, mais do que uma solução, só quer partilhar a sua dor, ser ouvido e apreciado, acompanhado. Não é estranho que seja dessa ajuda, que todos podemos dar, que a maior parte de nós foge?

11.SET

Ninguém é tão flexível como a pessoa justa. A justiça ajusta a vida à verdade e à rectidão, sabe para onde vai e, por isso, tem compaixão. O injusto é o rigorista quando quer pôr tudo na mesma bitola e é o relaxado quando mede as situações pelo que lhe convém.

10.SET

Alguém disse que a coisa menos comum é o senso comum. Bastaria um pouco de bom-senso, de sentido das conveniências, das prioridades, dos direitos dos outros, para tudo ser melhor. O senso comum não nasce connosco, mas pode aprender-se e exercitar-se. Nem há verdadeira maturidade sem ele.

6.SET

"Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz." Quando Jesus disse isto tinha em mente aquelas pessoas que, para chegar aos seus fins mesquinhos, são capazes de arquitectar estratégias com argúcia e fazer mexer o mundo, enquanto tanta gente boa não é capaz de ser crítica nem de ser criativa. Ora uma caridade sem inteligência, sem discernimento, pura e simplesmente não é caridade.

4.SET

A paciência é uma "paz-ciência". A "paz-ciência" não se contenta com tratados de reconciliação nem com tréguas. Vai muito mais longe, pensa que tudo tem a sua hora e, ainda que não goze a paz, sabe vê-la no horizonte. A ciência da paz deve começar no momento do desencontro. A ciência da paz é a paciência. A paciência tem horizontes largos e é própria dos fortes.

2.SET

O desejo mais profundo de uma pessoa é ser feliz. Não só por um momento, mas feliz para sempre. Outra coisa não seria normal! Mas há quem desista desse sonho por lhe parecer uma paixão inútil e impossível, confundindo felicidade com bem-estar ou prazer. Ser feliz é ser fecundo. É esse o significado da palavra. E uma árvore só é fecunda quando é podada. Não se é feliz sem podar o egoísmo.

1.SET

"Humor com amor se paga". Parece haver qualquer engano nesta frase, mas não. Quando se trata do verdadeiro humor, de uma compreensão crítica, de uma observação que faz ressaltar o relativo e nos rende à humildade do que somos, a resposta só pode ser também um olhar que aceita com ternura. Sabemos é pouco o que é o humor. Sabemos melhor o que é a ironia e o cinismo.

21.AGO

Distribuir é uma sabedoria. Pode pensar-se que é fácil e que, para ser justo, basta dividir em partes iguais para cada um. Mas não, essa seria uma justiça cega, sem coração. Distribuir é dar a cada um aquilo que cada um necessita. E como as necessidades são distintas, só há igualdade se se atender à diferença.

20.AGO

Deveríamos agradecer ter nas nossas casas alguém mais velho, um avô, mesmo gasto e doente. Para além do seu saber, essa pessoa humaniza-nos, dá-nos sentido da história e mostra-nos o que vale a vida, torna-nos solidários. Mesmo quando já não fala e "só" dá trabalho, pode ser amado e isso faz-nos muito bem. Quando lhes baterem à porta com teorias de eutanásia, que dizem que a pessoa vale o que produz, digam que não estão.

18.AGO

Respeitar a liberdade de cada um e a sua diferença não significa tolerar tudo o que cada um diz ou faz. Tolerar não é ser indiferente nem é não ter uma ideia do que é o bem; tolerar não é pactuar nem pode ser demitir-se de educar para um mundo melhor. Isso é permissividade. Respeitar o outro é também exigir responsabilidades.

12.AGO

Todos precisamos de amigos e de relações. Mas tudo isso pode não ser mais do que agitação e aparência, se não há uma vida interior que nos acompanhe e saiba fazer escolhas, que dê conteúdo às nossas relações e divertimentos. Há quem tenha uma vida social intensa, mas não saiba avaliar o que lhe acontece a si próprio e à sua volta.

4.AGO

Um famoso guia espiritual dizia que desconfiava da palavra "fazer" porque lhe sabia a fabricar ou a produzir. Ora Deus ao criar não faz propriamente nada, mas limita-se a existir e a comunicar-se contagiosamente! Não haverá aqui também uma lição para a nossa sociedade que vale pelo que produz em vez de contagiar a vida?

1.AGO

O silêncio é um valor inestimável. Sem silêncio não se ouve e ainda menos se escuta. O homem que não se escuta a si próprio, desconhece-se. O que não tem espaço e tempo para meditar, para ouvir o significado dos sons e das palavras, anda neste mundo a reboque, sem leme. Só no silêncio é possível descobrir outros sinais de comunicação. Aproveitemos este tempo de férias para fazer silêncio. O silêncio é o segredo de uma melhor comunicação.

28.JUL

Quando chega a noite e olho para trás posso compreender melhor a importância de me ter levantado, ou não, àquela hora, o valor de tal visita, o impacto do que disse e ouvi. A vida entende-se da frente para trás. Só um dia saberei bem o valor de cada passo. É preciso muito cuidado com o desânimo, pois posso estar a desvalorizar algo em relação ao qual, um dia mais tarde, poderei dizer: "Que bom foi ter acontecido!"

27.JUL

O primeiro passo para superar o mal e os problemas é enfrentá-los e admiti-los. É o que muitas vezes não se faz e, então, nem se sabe que dimensão têm, nem onde se situam, nem como agem. É assim que nos tornamos fabricantes de monstros e vivemos à espera de milagres.

24.JUL

-"Bom dia, então como vai isso?" - "Ah, mais ou menos, vamos andando!" Resposta horrível, morna, que nem sequer é verdadeira. Sabemos se vai chover ou fazer sol, sabemos se a Bolsa sobe ou desce, mas parece que não queremos ver e agarrar a vida, dizer se está a ser construtiva ou não, pondo assim o nome às coisas! Sem identificar os caminhos, não sou eu que decido sobre a minha vida, é alguém que me leva à trela.

23.JUL

Ainda faz mais impressão encontrar aquelas pessoas que se fazem infelizes. Aquelas para quem está sempre tudo mal, para quem o que têm nunca chega, para quem cada coisa constitui uma dificuldade, que encaram o futuro com angústia e horror... Ora isto não é sério. Fazer de tudo um caso sério não é nada sério. E pode curar-se com outra educação... desde pequenino. Ser feliz, aprende-se!

21.JUL

Tanta gente, actualmente, sofre de "adolescência retardada". Custa-lhes escolher. Ficam infantis ao pensar em tantas coisas que se lhes oferecem, lhes agradam e quereriam obter, mas a verdade é que... "já não temos idade para isso". Quanto maior é o leque de possibilidades de divertimento, mais difícil é comprometer-se com uma realização séria. Aliás, de que andamos à procura: do divertimento ou da fecundidade?

10.JUL

"A maturidade é uma ave que levanta voo ao cair da tarde." Foi Platão que o disse, poeticamente. E, realmente, os nossos "homenzinhos" feitos à pressa e cheios de opiniões, tal como os fabricam as nossas sociedades de aceleração e abundância, são tão infantis afectivamente!... O problema é ainda mais grave numa sociedade que não respeita os velhos.»

Sem saudosismos, lembro um momento luminoso e festivo das vitamínicas JMJ de Lisboa, em 2023, porque as boas memórias ajudam a manter vivas as melhores experiências que nos calharam em sorte. Partilho também outros momentos musicais do mesmo grupo, em gravações com mais qualidade dos que as gravadas nos palcos abertos das célebres Jornadas em Portugal:

 



Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

22 outubro 2024

Dos preconceitos e do Hawaii

Gosto da ideia de preconceitos. Não porque ser preconceituoso seja bom, mas porque ser preconceituoso abre lugar à inteligência: ou se percebe que o preconceito faz sentido e isso é uma prova de inteligência - ou de necessidade de sobrevivência - ou se percebe que o preconceito não faz sentido e abre-se uma via para a redenção. 

Fui educado no preconceito contra a gente que maça; isto é, as pessoas podem ser feias, gordas, atarracadas e até estrábicas - não podem é maçar o próximo, sendo que o próximo somos nós próprios. Noutras casas que conheci bem, o preconceito é estético; isto é, as pessoas podem maçar o próximo, contar histórias com detalhes que nada acrescentam à narrativa, suscitar hipotensão no interlocutor - não podem é ser feias, gordas, atarracadas e nem sequer estrábicas. Lembro-me de me contarem que uma pessoa deste segundo exemplo, trocando correspondência com alguém que nunca tinha visto, perguntou: fuma? É alto? Este preconceito é mais factual e, por isso, mais fácil de gerir: uma pessoa gorda avista.-se à distância e pode-se fugir dela; já uma pessoa maçadora requer um contacto e, só depois, se aquilatar da dimensão da tragédia. 

Ambos os preconceitos protegem quem os usa: fugir de gordos ou de maçadores pode ser um gesto de sobrevivência e, por isso, podemos classificá-los de inteligentes. O que derrota este argumento? A certeza de que por trás do horror à maçada ou à gordura há uma arrogância. Nunca conheci ninguém maçador que tivesse preconceito contra maçadores; e nunca conheci ninguém com um módico de excesso ponderal que tivesse horror aos gordos. Podemos ter horror àquilo que somos? Sim, podemos, mas não será saudável.

***

Koko Crater Arch Trail, Oahu (de acordo com o meu telemóvel), Outubro de 2024

A minha não vontade de ir ao Hawaii assentava num preconceito: é americano, não me interessa. Fui com vontade de exercer a minha inteligência e, como resultado, dizer cheio de alegria: enganei-me! Adorava voltar. Acontece que não é o caso. Gostei de ir? Sim, gostei? Gostava de voltar? Não me parece. E porquê? Talvez porque não seja suficientemente interessante para justificar a repetição. 

(Alguém me contou, e não afianço que a referência fosse esta, que fulano, ao ser-lhe perguntado o que tinha achado da Coreia do Sul, terá dito: é a Amadora em melhor.)

Honolulu é a Amadora em melhor? Não, é bastante mais do que isso. Mas não é suficientemente mais do que isso. Seguramente que o resto do Hawaii (ou apenas a ilha de Oahu, onde se situa a capital) tem paisagens muito bonitas. Mas a melhor paisagem de Honolulu são as ruas bonitas, largas, debruadas a lojas boas. O resto, diria eu com prudência, é muito americano, cheio de turistas americanos, de doses americanas, de carestia americana. Apesar disso, os locais são gente muito simpática, afável, calma, talvez cheios de uma delicadeza que lhes vem da Polinésia, não do Illinois. 

JdB

21 outubro 2024

Texto e fotografia dos dias que correm

 

Honolulu, Outubro de 2024

A Lamentação é Completamente Inútil

Não há dúvida de que é inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante o mundo. Resta saber se não é igualmente inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante nós próprios. Evidentemente. De facto, ninguém se lamentará perante si próprio, a fim de se incitar à piedade, o que nada significaria, dado que a piedade é, por definição, o voluptuso encontro de dois espíritos. Para quê, então? Não para obter favores, porque o único favor que um espírito pode fazer a si próprio é conceder-se indulgência, e toda a gente percebe quanto é prejudicial que a vontade seja indulgente para com a sua própria e lamentável fraqueza.

Resta a hipótese de o fazermos para extrair verdades do nosso coração amolecido pela ternura. Mas a experiência ensina que as verdades surgem apenas em virtude de uma pacata e severa busca, que surpreende a consciência numa atitude inesperada e a vê, como de um filme que parasse de repente, estupefacta, mas não emocionada.

Basta, portanto. 

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

20 outubro 2024

XXIX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,35-45

Naquele tempo,
Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
«Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
Jesus respondeu-lhes:
«Que quereis que vos faça?»
Eles responderam:
«Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
Disse-lhes Jesus:
«Não sabeis o que pedis.
Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?»
Eles responderam-Lhe: «Podemos».
Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber
e sereis batizados com o batismo
com que Eu vou ser batizado.
Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
não Me pertence a Mim concedê-lo;
é para aqueles a quem está reservado».
Os outros dez, ouvindo isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Jesus chamou-os e disse-lhes:
«Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
Quem entre vós quiser tornar-se grande,
será vosso servo,
e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;
porque o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir
e dar a vida pela redenção de todos».


18 outubro 2024

De um viagem de 26 horas

Não vou falar sobre as alegrias de uma viagem de avião de Lisboa para o Hawaii: saí de casa pelas 04.30h de um Domingo e cheguei ao hotel em Honolulu nesse mesmo dia pelas 22.30h, o que não parece dramático - já fazia isso quando, em miúdo, há mais de 50 anos, ia com a minha mãe a Badajoz. Acontece que entre Hawaii e Portugal há uma diferença de 11 horas. Em resumo: apanhei um voo pelas 6.40h em Portugal e desembarquei 26 horas depois. É mais de um dia entre voos e aeroportos.

Uma viagem destas é um teste à sanidade mental de qualquer criatura. A ideia de que amamos a humanidade e que a diversidade é que dá encanto à espécie humana pode cair num repente: a gorda que vai ao nosso lado no avião e com quem mantemos um contacto físico permanente e inevitável, o velho que aclara a garganta com um volume de som que acordaria um surdo, as pessoas que reclinam os assentos como se não tivessem ninguém atrás ou a pessoa que vê videos partilhando o som com o resto dos passageiros são um desafio. Qual diversidade, qual encanto, qual amor à espécie humana. Uma viagem destas é um convite alegre e recusável à misantropia. 

Temos esta ideia, alimentando um anti-nacionalismo empedernido, que a TAP só é uma companhia decente a partir do momento em que se entra no avião, enquanto muitas outras companhias são decentes enquanto não se entre no avião. Viajei na Lufthansa porque me parecia uma companhia decente; a alternativa seria a United Airlines ou a Air France, com as quais tive experiência menos boas. O embarque em Frankfurt para Vancouver foi de vergonha - confuso, desorganizado, ineficiente, cheio de um excesso de proximidade física desnecessária. Uma incompetência. Comida boa, avião mau, pequeno e desconfortável para uma viagem de 10 horas. É o que temos.

Há uma virtude numa viagem desta dimensão: veem-se filmes que normalmente não se veriam. Como a escolha de entretenimento a bordo era fraquito, dei por mim a ver dois filme:

  • La nuit du verre d'eau (filme franco-libanês): Líbano, Verão de 1958. Três irmãs da boa sociedade cristã passam férias na montanha libanesa. A vida tranquila da aldeia é rodeada pelos ecos de uma revolução em Beirute e pela chegada de dois visitantes franceses. Mas é no interior da família que se vive a agitação. A mais velha das irmãs, Layla, mãe e esposa perfeita, abrirá os olhos sobre a sociedade patriarcal que as mantém sob controlo. No jovem Líbano que sonha com uma época áurea, poderá uma mulher ter um destino diferente daquele que é traçado pelos homens?
  • April, come she will (filme japonês): Shun Fujishiro é psiquiatra e trabalha num hospital universitário em Tóquio. Está noivo de Yayoi Sakamoto. Num dia de Abril, quando está prestes a casar com Yayoi Sakamoto, recebe uma carta do seu primeiro amor, Haru Iyoda. Namoraram há 10 anos. De repente, a sua noiva Yayoi Sakamoto desaparece.

Uma viagem destas torna-nos facilmente misantropos. Não fujo à regra. Salvaram-se ambos os filmes, que vi com gosto.

JdB

17 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

Waikiki (Honolulu), Outubro de 2014

Claro Enigma

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.
Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.
Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?
Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro - vinha azul e doido -
que se esfacelou na asa do avião 

Carlos Drummond de Andrade

15 outubro 2024

Nos 30 anos da Acreditar

A Acreditar fez ontem 30 anos, e eu tive o gosto de escrever um texto para o Sapo. É uma bonita data... Eu apanhei o comboio já em andamento, corria o ano de 2001.

JdB

***

Somos um tripé, que tomba fatalmente na ausência de um dos suportes

Caminante no hay camino, se hace camino al andar. 
(Antonio Machado Ruiz)

A Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro nasceu há 30 anos. E nasceu, como muita coisa nasce, fruto de uma necessidade do momento, de uma angústia, de uma pergunta que requer uma resposta tão imediata quanto possível, de um espanto: como assim, o meu filho tão pequeno tem cancro? 

À volta de uma mesma mesa, um conjunto de Pais entendeu que era preciso fazer mais pelos seus filhos mas, também, pelos filhos de todos os outros Pais, presentes ou futuros, que viessem a ser confrontados com este desafio. O que existia não chegava – era preciso garantir apoio emocional a Pais e doentes, era preciso prestar informação técnica numa linguagem para leigos, era preciso tornar a estadia num hospital tão confortável quanto possível. Era preciso garantir tudo o que não havia e que fosse importante para aquelas crianças ou jovens. 

30 anos é uma vida. Olhar para ontem, para aquele ponto de partida, e olhar para hoje, para o ponto onde estamos, é percorrer uma estrada onde está tudo o que é intangível e o seu contrário: a morte e a vida, a resiliência, a esperança e o desalento, a certeza em dias melhores, a palavra Acreditar como verbo de conjugação obrigatória. Mas é, também, percorrer uma estrada cheia de conquistas: a construção de três Casas, a dinâmica dos sobreviventes, as alterações legislativas, o crescimento da asociação e o seu posicionamento enquanto parceiro credível – e indipensável! – para tudo que é a oncologia pediátrica.

O lema dos nossos 30 anos - quando o cancro se mete no caminho, ninguém vai sozinho - é particularmente feliz, pois condensa duas ideias importantes, de obviedades distintas. Por um lado, na família de um jovem ou criança confrontada com um diagnóstico de cancro, ninguém vai sozinho: a família é, toda ela, afectada pelo acontecimento, pelo que tem de ser protegida das mais diversas formas; mas há, também, uma solidariedade que se instala e que suscita o cuidado, o apoio, tantas vezes assegurado pela Acreditar. Por outro lado, ninguém vai sozinho nas outras áreas: decisores políticos, profissionais de saúde e associações de Pais e de Doentes têm de conversar, articular-se, procurar soluções que tenham um impacto positivo na vida desta comunidade. Somos um tripé, que tomba fatalmente na ausência de um dos suportes.

Vive em todos nós, estou certo, o famoso verso de Sebastião da Gama: pelo sonho é que vamos. Talvez aos Pais de há 30 anos faltasse, numa primeira fase, a veleidade do sonho, preocupados que estavam com questões imediatas que urgia resolver no momento, ou no momento a seguir ao momento. Eram tempos de relativo desconhecimento da doença e das suas implicações. Só a palavra cancro instilava medo, tinha uma roupagem negra, de pouca esperança. Talvez, e parafraseando Alberto Caeiro quando dizia sou do tamanho do que vejo, a Acreditar fosse do tamanho do que via – ou do que era permitido ver.

O ADN da Acreditar mantém-se inalterado: cuidamos das crianças e jovens doentes, dos Pais e dos sobreviventes. Identificamos as suas necessidades e tentamos colmatá-las, para fortalecer uma comunidade fragilizada. Embora o discurso de profissionais e de voluntários seja fruto da história de vida de cada um, a mão que estendemos ou o sorriso que oferecemos é sempre o mesmo, porque deriva de um desejo genuíno de ajudar este próximo. Embora as palavras usadas sejam o resultado da diversidade geográfica, académica ou cultural de cada um dos que por aqui passa para servir estas famílias, há expressões que são iguais, porque pertencentes a um léxico comum onde predomina a palavra Acreditar.

Este fio condutor que une passado e presente, e que se prolongará pelo futuro, não se rompe, porque é isto que queremos ser. O fio é reforçado por aquilo que, em todo o momento, se entende como prioridade e que constitui a obra visível da Acreditar. Nesse sentido, como diria o poeta espanhol, não há um caminho, o caminho faz-se caminhando. O que hoje é prioridade amanhã não será mais. E aquilo que, hoje, não sabemos que existe, tornar-se-á alvo de todos os nossos esforços amanhã.

A Acreditar faz 30 anos. Muito nos separa dos Pais que começaram esta empreitada: os tempos são outros, as pessoas são outras, as necessidades são outras. Mas o que é determinante permanece: a nossa incansável dedicação às crianças e jovens com cancro, aos Pais e aos sobreviventes. 

João de Bragança,
Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro 

14 outubro 2024

De uma conferência no Hawaii

À hora a que me estiverem a ler, já estarei em Honolulu, para a 29ª Conferência do CCI (Childhood Cancer International),  organização global à qual dei o meu voluntariado dos últimos anos. A conferência, como sempre, corre em paralelo com o encontro, também anual, de oncologistas pediátricos e outros profissionais de saúde de todo o mundo. Lá, como todos os anos, encontrarei amizades que fui fazendo ao longo do tempo, farei novas amizades, cruzar-me-ei com muita gente que fui conhecendo e pela qual tenho estima e respeito. Embora um pouco mais distante afectivamente, não deixa de ser um tempo intenso, carregado de memórias, mas, sobretudo, de alerta para o tanto que há por fazer pelas zonas mais desfavorecidas do mundo. 

Penso já o ter dito neste estabelecimento - seguramente que o disse de forma pública: desde 2009, talvez, que assisto a estas reuniões; desde 2016 que sou membro do Board (presidente entre 2020 e 2023). Nunca, em momento algum da minha vida, vivi anos de um enriquecimento humano tão grande: não são só as amizades que se fazem, que vão do Chile à Nova Zelândia, da África do Sul à Áustria, da Nigéria a Hong Kong, e que nos permitem ter um abrigo, ou uma cara conhecida, em dezenas de países do mundo. Mas há uma dimensão mais importante: enquanto presidente da Acreditar aprendi muito sobre a oncologia pediátrica em Portugal. Porém, ao ser membro do Board do CCI, tive a oportunidade de abrir uma janela e ver o mundo inteiro, cheio de contradições, injustiças, desigualdades, sofrimento, dedicação e desejo de mudança. E isso faz de qualquer um de nós pessoas mais atentas, mais informadas, mais conscientes do que se passa na comunidade global da oncologia pediátrica.  

Hawaiʻi Convention Center (onde se desenrola a conferência), muito perto de Waikiki

***

Na minha lista de 50 destinos a visitar nos próximos meses ou anos nunca constou o Hawaii. Talvez nunca tenha constado porque nunca foi uma palavra com que me tivesse cruzado muito (e que, por isso, não fica na memória) ou talvez por preconceito pateta, por me sentir excessivamente nos EUA. Talvez também fosse pela distância e preço: +/- 1.300€ (só avião) numa viagem que dura cerca de 24 horas, com duas escalas, em Frankfurt e em Vancouver (as mesmas paragens e a mesma duração no regresso).

Já que lá estou, tentarei aproveitar ao máximo. O facto de já não ser presidente da organização dá-me mais liberdade. Talvez até vá à praia de Waikiki, a 10 minutos do Coconut Waikiki Hotel, onde estarei instalado.

Faremos o nosso melhor...

Adeus, até ao meu regresso.

JdB

13 outubro 2024

XXVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,17-30

Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico.
Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas
entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus,
porque a Deus tudo é possível».
Pedro começou a dizer-Lhe:
«Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
Jesus respondeu:
«Em verdade vos digo:
Todo aquele que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
por minha causa e por causa do Evangelho,
receberá cem vezes mais, já neste mundo,
em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
juntamente com perseguições,
e, no mundo futuro, a vida eterna».

10 outubro 2024

Das qualidades

Gaivota vai com as outras: praia de Cascais numa destas manhãs

[Nota prévia: embora a conversa mencionada abaixo fizesse referência a qualidades de determinados homens e determinadas mulheres, por motivos de simplicidade usarei sempre o masculino.]

Um dias destes conversava com amigos sobre qualidades: que qualidades tinha fulano, que qualidades tinha beltrano. De um se dizia que era cuidador, de outro se dizia que era factor de equilíbrio; de um se dizia que era desembaraçado, de outro se dizia que era previsível; de um se dizia que tinha uma inteligência muito prática, de outro se dizia que era consistente; e assim sucessivamente. Num breve instante de 5 minutos se fez um retrato de um e de outro.

A conversa, só assim, é uma banalidade: todos temos qualidades, todos temos defeitos. Ora, o interessante neste tema era o tipo de qualidades: umas parecem ser qualidades activas, outras parecem ser qualidades passivas. Ou seja, a umas se associa uma acção, a outras se associa uma atitude. Ser-se cuidador, ou desembaraçado, ou prático implica movimento: cuida-se de alguém, resolve-se um problema inesperado, desmonta-se um fogão em menos de um fósforo. Já as outras não implicam movimento, mas, talvez, uma atitude perante um movimento desordenado, um momento de caos. Uma espécie de reacção perante uma espécie de acção.

Neste caso em concreto, há qualidades mais importantes ou mais adequadas? Não sei, e talvez não haja resposta certa. Tudo depende. Num mundo todo feito para a acção, é natural que as qualidades práticas se destaquem. Quem tem uma natureza voltada para o fazer, por certo que valorizará umas qualidades em detrimento de outras, sendo que a inversa também é verdadeira. Há quem possa usar um argumento forte, só aplicável para certas áreas da vida: se eu tiver uma avaria num fogão, contrato o serviço ou troco de equipamento. Porém, não posso contratar um serviço de estabilidade familiar.  

No decurso desta conversa também dizia alguém: não tenho mérito nisto; limito-me a disponibilizar o que tenho e o que sou, nada faço com esforço. Aqui a porca pode torcer o rabo para quem quiser torcer o rabo à porca: mesmo que reparar um fogão esteja na natureza de uma pessoa, ser prático em tempo de avaria é diferente de ser fiável em momentos de caos. A primeira requer um dispêndio de energia física que a segunda não requer; a primeira tem uma visibilidade que a segunda não tem - ou pelo menos uma visibilidade mais imediata. Nesse sentido, num primeiro olhar, ser-se desembaraçado tem melhor imagem do que ser-se previsível - imaginando que, numa dada altura da vida, a previsibilidade é um plus. 

O que nos diz esta divagação? Nada, a não ser o óbvio: que todas as qualidades têm a sua beleza, que o cumprimento de uma natureza se vê em tudo, da mecânica à fiabilidade, do desejo de cuidar à promoção do equilíbrio, e que nada é radicalmente melhor do que nada. Tudo está naquilo que cada um valoriza por aquilo que é e pelas suas necessidades circunstanciais. Bom, bom, é valorizarmos tudo, porque, como aprendi à mesa das cartas, cada jogo tem a sua beleza.

JdB 

09 outubro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

OUTUBRO COM BONS PROGRAMAS 

Seguindo a ordem cronológica, na próxima Sexta-feira, às 19h00, a Gulbenkian oferece em sinal aberto a audição online do concerto, onde será interpretada a mais conhecida obra do compositor britânico Gustav Holz «Os Planetas», além do magnífico Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 (em Dó menor, op. 18), do russo Rackmaninov, interpretado pelo talentoso pianista israelita Boris Giltburg. Um programa promissor, de sala esgotada (Os Planetas – Gulbenkian Música). 

Gustav Holz e a composição orquestral que o elevou a rock star da música clássica, composta nas vésperas da Primeira Guerra Mundial.  Desdobra-se em sete andamentos: 1. “Mars, the Bringer of War” (1914), 2. “Venus, the Bringer of Peace” (1914), 3. “Mercury, the Winged Messenger” (1916), 4. “Jupiter, the Bringer of Jollity” (1914), 5. “Saturn, the Bringer of Old Age” (1915), 6. “Uranus, the Magician” (1915), 7. “Neptune, the Mystic” (1915) 

Tributo de Jimmy Page, dos Led Zeppelin à peça de Holz, incorporando acordes do primeiro andamento The Planets em «Dazed and Confused»: 


No Domingo, das 11h-12h, no Museu do Oriente, o especialista de história de arte e ourivesaria, Nuno Vassallo e Silva, irá contar a história de uma peça extraordinária, adquirida em Maio pela Fundação Oriente: um aquamanil em prata, na forma mítica de dragão-peixe fêmea, com reminiscências do monstro mitológico mencionado na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, como fauna originária da ilha indonésia de Sumatra – o caquesseitão. A par dos gomis e das bacias de água talhadas em materiais nobres, estas peças cumpriam a função de purificar as mãos, antes e depois das refeições, num ritual conhecido por ‘água-às-mãos’. Na Europa pós Renascimento, tornara-se num cerimonial comum das refeições nas cortes europeias e nas casas da nobreza.

Aquamanil Caquesseitão | Sul da China ou Sudeste Asiático (?) | Séc. XVII (primeira metade).
Descrição: escultura em prata com vulto perfeito, decorado em relevo com escamas, asas amovíveis, terminação da cauda de enroscar com pega assente em pés em forma de garra.
Medidas - 53x50x21cm; peso - 5845 g.
Integrado no acervo do Museu do Oriente (Doca de Alcântara; www.foriente.pt). 

Este aquamanil terá pertencido a um pequeno conjunto de dez exemplares, cuja maioria era propriedade de colecções da aristocracia portuguesa, todos de grandes proporções, à maneira das peças congéneres chinesas. No dorso, decorado a escamas, destaca-se uma pega portentosa para aguentar o conjunto cheio de água. Tipicamente, no bico abocanha um pássaro, por onde flui a água, garantindo um pequeno caudal, mais comedido. Misto de animal marinho alado e terrestre cruza uma cabeça de dragão com cauda de serpente enrolada e terminal de peixe (onde está a rosca, por ronde entra a água), patas de ave, asas de morcego cobertas de escamas e articuladas. Tudo indica ter inspiração na imagética oriental e poder provir das franjas longínquas do Império, longe da corte espanhola – Macau, até pelo seu peso excessivo e pelo fabrico em prata, mais comum na produção ourives chinesa do que na indiana. Na primeira metade do século XVII, período em que a peça é situada e com o país ainda sob a dominação filipina, o dragão costumava representar Portugal a resistir ao leão, que figurava Castela.  

Na Sexta-feira, 25 de Outubro, a Gulbenkian volta a emitir via streaming o concerto que decorrerá no Grande Auditório, às 19h00, dirigido pelo maestro Lorenzo Viotti, para interpretar Mozart e Brahms. Do primeiro, ouviremos o Concerto para Clarinete e Orquestra, em Lá maior (K. 622) e do segundo, a Sinfonia n.º 1, em Dó menor (op. 68) –  Concerto para Clarinete de Mozart – Gulbenkian Música.

Tantos programas interessantes, enquanto o Outono se adensa com as manhãs de nevoeiro e o cheiro aconchegante das castanhas e das brasas onde são assadas. Entretanto, o tempo voa até ao Natal…

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

08 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

O QUE ESCOLHES FAZER DAS COISAS

Com
uma navalha afiada (que fura
o ventre de
um homem) também se pode soltar
a corda de
um prisioneiro. Com a corda que suspende
o pescoço do enfocado
também se pode salvar a mão
do fundo de
um poço. O nome fica de fora quando
se enterra um corpo. A sombra
de um ovo
não é branca. O mais belo
é a inteligência. Na mão (em forma de punho)
que fere o rosto de um homem
há força suficiente para
fechar
a navalha.

João Luís Barreto Guimarães * Poeta e Médico Cirurgião.
(1967 - )
In "Claridade"

07 outubro 2024

Dos amigos virtuais

 Mais do que um assistente, um companheiro

Ao contrário de outros dispositivos de IA que se focam em aumentar a produtividade, o Friend quer ser o teu novo melhor amigo. / Ele participa nas tuas conversas, faz comentários (às vezes até atrevidos!) e envia-te mensagens aleatórias ao longo do dia. / Confesso que fiquei um pouco cético no início. Será que um dispositivo pode realmente substituir a companhia humana? / Mas depois de ver o vídeo promocional, fiquei curioso. O Friend parece tão natural nas interações que é quase como ter um amigo invisível (mas que te ouve).

Amizade ou ilusão?

A questão que fica é: será que estamos a humanizar demasiado a IA? O Friend pode ser um companheiro divertido, mas será que pode substituir a complexidade e profundidade das relações humanas? / Se ficaste curioso e queres ter o teu próprio “amigo” digital, podes fazer a pré-encomenda do Friend nos Estados Unidos e Canadá. / O preço é de 99 dólares e, por enquanto, só é compatível com iOS. Mas quem sabe, se a procura for grande, talvez chegue a Android em breve.

O futuro da amizade?

O Friend é mais do que um dispositivo, é um vislumbre do futuro da nossa relação com a IA. Será que estamos prontos para ter amigos digitais? / Só o tempo dirá. Mas uma coisa é certa: o Friend veio para ficar e promete mudar a forma como vemos a inteligência artificial.

***

Ouvi falar desta aplicação ontem. Fui investigar um pouco e percebi que tinha sido inventado por um ex-aluno de Harvard. O objectivo é que as pessoas se sintam menos solitárias com o Friend, um colar com IA e microfone com o qual pode conversar-se.

Para uma pessoa da minha idade, esta realidade arrepia. É uma surpresa? Não. Mas é aterradora: se for nas camadas mais jovens da sociedade, pelos problemas que causa em termos de relacionamento humano; se for na população mais idosa, pelo desespero que traduz.

Para uma pessoa como eu, que não tem redes sociais (com excepção do Linkedin) que não sabe como funciona o Instagram ou ex-Twitter, e que não tem qualquer interesse (nem sequer científico) em dominar o funcionamento, a utilização do telemóvel, para além do que é estritamente funcional e prático, já configura uma relação virtual. Ainda que do outro lado de um telemóvel esteja um amigo que me conhece bem, que sabe do que falo quando menciono o tópico A ou B, nada substitui o contacto presencial, ainda que só se discuta o tópico A ou B. Ou seja, posso saber tudo sobre a vida de alguém só conversando com esse alguém pelo telefone ou pelo zoom, mas isso não substitui o frente a frente. 

A solidão não se combate, seguramente, com um amigo virtual que nos faz comentários (às vezes até atrevidos); em bom rigor, a solidão nem sempre se combate com um telefone que (não) toca numa casa que parece grande de mais. A solidão combate-se com o toque humano, com a observação da linguagem corporal, com a identificação de um tom de voz, com uma atenção tão plena quanto possível ao outro. Saber tudo sobre a vida de alguém através de conversas diárias por telemóvel não é mais do que saber tudo sobre a vida de alguém. Mas não é, seguramente, conhecer a vida de alguém, nem é um combate saudável da solidão. É um artifício - e isso, como os cominhos, deve ser usado com parcimónia.

Dizem que nunca houve tanta solidão como neste tempo em que estamos todos conectados. Talvez porque digamos, para dourar o nosso sentimento de culpa (e eu disse-o!) que falamos todos os dias com fulan@, embora o que fulan@ queira seja uma visita, um abraço, um beijo - e não um telefonemaEm bom rigor, fulan@ pode viver a 45 minutos de nossa casa, mas a preguiça, a falta de vontade ou a falta de caridade impedem-nos de algo mais do que dizer: ainda ontem falei com... E a frase dá-nos um ar de atenção e de preocupação pelo outro que nos deixa dormir melhor à noite. Como dizem os ingleses, been there, done that. 

Imaginar a solidão de cada um colmatada por um amigo virtual pendurado ao pescoço é terrível. E mais terrível ainda é pensar que isso poderá ser o futuro. Ou, pior ainda, que pode ser a solução.

JdB 

06 outubro 2024

XXVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,2-16

Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.

04 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

 PRECE NO MEDITERRÂNEO

Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia,
gente que veja com o coração de ver,
vozes que nos aceitem.

É tão dura a viagem
e até a espuma fere e ferve,
e, de tão alta, cega
durante a travessia

Fazei, Senhor, com que não haja
mortos desta vez,
que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
e a vossa paz enfim
se multiplique

Mas depois da jangada,
da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser?
do mar

que é também nosso

Ana Luísa Amaral
(1956 - 2022)
In "A Liberdade Não Cabe no Poema"

03 outubro 2024

Dos profetas e dos maçadores

Paredão do Estoril, ontem, 07.30h

Esta semana ouvi a seguinte história numa aula na faculdade. O cenário é uma peça de teatro, talvez há 100 anos. Vasco da Gama  - miúdo, o que é importante! - está no seu quarto à procura de alguma coisa: vê debaixo da cama, por trás de um armário, por cima de uma estante, até que acaba por encontrar. A aia, ao lado dele, sorri satisfeita e diz-lhe: cedo começais a descobrir coisas, Sr. D. Vasco.

***

Ouvi e contei esta história várias vezes, tirada, ao que parece, de um sketch de um humorista brasileiro. Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil. Atrás de uma árvore, um índio diz para o outro, em pânico: fomos descobertos...

***

O que une as duas histórias? O que é comum à aia que toma conta de Vasco da Gama criança, e os índios que vêem a chegada de Pedro Álvares Cabral? Aquilo que os liga e os torna semelhantes é uma certa ideia de antes de tempo ou de antes do seu tempo. Curiosamente, as duas expressões a itálico são muito semelhantes: falam de tempo e usam o advérbio antes. Acontece que não há aqui dois estilos: antes de tempo ou antes do seu tempo só inadvertidamente são expressões iguais às quais se aplicou um estilo diferente. 

O nosso lado optimista ou elogioso olha para a aia e para os índios como profetas. A primeira viu o que ainda ninguém tinha visto: Vasco da Gama como descobridor de coisas importantes; os segundos teriam percebido que, na verdade, haviam sido descobertos, e que isso não lhes traria uma felicidade óbvia. Mas a razão não está sempre do lado dos optimistas ou dos elogiosos. 

Acontece que a diferença entre antes de tempo e antes do seu tempo pode ser um fio de cabelo ou um fosso intransponível: o profeta fala antes do seu tempo; os maçadores falam antes de tempo. O que distingue uns e outros é a posse: se não detivermos o tempo, mais vale estarmos calados.

JdB

02 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

Interior

o revólver de um ferro subcutâneo
o excelente amor intravenoso
o tribunal de oitava e nona instância
um louco vinte vezes furioso
 
teu belo corpo de maçãs ao colo
a escuridão relativa dos teus passos
o sumo de laranja em moderados goles
e de cigarros três ou quatro maços
 
o silêncio em repouso nas ampolas
onde convergem determinados sóis
o fantástico asseio das escovas
o bordado escondido dos lençóis
 
a pietá d’avignon ao fim da sombra
junto à ternura espessa das madeiras
o ângulo de gesso das paredes
onde já quase se pressente a noite
 
 
vasco graça moura
semana inglesa
poesia 1963/1995
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