No início desta semana, para compor o texto sobre solidão que postei na 3ªfeira, pedi ao ChatGPT o seguinte: poema que fale de solidão de um poeta português. Em menos de 10 segundos o "sistema" apresentou-me isto:
Solidão do Poeta (Inspirado pela alma portuguesa)
Na penumbra da noite que me veste, Caminho só, num fado que me chama. A lua, confidente que me empreste O brilho pálido que o peito reclama.
Meu canto ecoa em paredes vazias, Versos moldados por silêncios frios. Companheiros, são as horas tardias, E o vento que sopra nos montes sombrios.
Que é do amor? Que é da vida tão doce? Perdi-me em palavras, perdi-me em mim. Um poeta sem rima que só se torce, Num cais deserto, sem barco, sem fim.
Mas na solidão encontro um espelho, Onde meu ser, despido, se revela. Sou mar bravio, sou astro sem brilho, Mas também sou alma, e isso me impele.
Oh, solidão, cruel e tão querida, És musa e dor, veneno e guarida.
E acrescentou: este poema reflete a melancolia e introspecção tão presentes na obra de muitos poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Que achou? Quando lhe perguntei quem era o autor, informou-me: o poema que escrevi é original e inspirado no estilo melancólico de grandes poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca, mas não pertence a nenhum autor específico: fui eu quem o compôs para você.
Olho para o poema: se excluirmos as rimas doce / torce ou espelho / brilho, o poema não envergonha ninguém, e tem um verso particularmente criativo: O brilho pálido que o peito reclama. Se tirarmos o brasileirismo do tratamento por você, o diálogo que mantém comigo é impressionante. Tudo isto demorou nem um minuto. Onde é que vamos parar?
A agilidade do marketing para compor mensagens lapidares parece aguçar-se na aproximação ao Natal ou face a acontecimentos especialmente impactantes em determinado país ou mesmo no mundo. Vimos o IKEA no seu melhor durante a campanha eleitoral das últimas legislativas nacionais, com cartazes à Monty Python, de que lembro alguns, só descodificáveis para os eleitores nacionais, em modo private joke certeira:
Surfando a onda de sucesso do IKEA, outras marcas criaram cartazes cheios de humor, uns também com farpas políticas directas (um inédito em Portugal), outros mais despolitizados, como preferiu a FNAC. Curiosamente, uns escassos 9 meses sobre as legislativas de 10 de Março de 2024 e só em pesca à linha (em blogs e no Facebook) ainda resistem na net exemplos dessa exuberância publicitária dos primeiros meses deste ano. Isto corresponde a um apagão informativo clamoroso do passado recente na google, cuja maioria das pesquisas apenas dá acesso a links institucionais (CNE e afins, com instruções sobre os locais de voto e infantilizações equivalentes) e, em matéria de cartazes restringe-se aos dos Partidos com assento na A.R., sendo os mais visíveis no google os do Bloco de Esquerda. Estranhos tempos de suposta liberdade democrática e de apregoado pluralismo de todos os quadrantes, mas com descarada redução do património histórico a um par de vestígios higienizados. Se isto não é cancelamento... Aqui vão exemplos de cartazes divertidos, em diálogo uns com os outros, caçados com enorme esforço, pelo que convém revê-los e guardá-los como documentos históricos expressivos de uma ousadia democrática desempoeirada, que deu os primeiros passos uns meses antes de cumprirmos meio século sobre o 25 de Abril:
Mais 3 empresas entram no diálogo publicitário disparado pelo IKEA, com a famosa estante onde se esconderam milhares de euros no escritório do Chefe do Gabinete do PM de então (Nov.2023), em S.Bento.
O outdoor da SUN esteve exposto ao lado da sede do PS, no Largo do Rato.
Em 2018, o IKEA esmerou-se na sua missiva de Natal (ao invés deste ano, que lançou um meramente mercantilista) com uma curta-metragem interpelativa, dirigida sobretudo aos países hispânicos. Aproveita o clima afectivo da quadra para arriscar um alerta forte sem o efeito colateral de “murro no estômago”. Porque há verdades que doem, mais ainda quando se adentram na vida rica, mas cheia de claro-escuros, de tantas famílias. Partindo da matriz familiar do Sul da Europa e das sociedades latino-americanas, onde se juntam várias gerações à mesma mesa, denuncia-se a grande ilusão que podem ser as redes sociais, na miragem de estarmos mais interconectados com os outros, mas afinal menos disponíveis para os que estão ao lado. O tempo não estica para tudo: ou imagens de pessoas no ecrã ou gente de carne-e-osso.
Convenhamos que muita cusquice se alimenta nas redes sociais, que devassam sem conseguir aproximar-nos de quem surge nos telemóveis ou nos tablets! Se dúvidas houvesse, confirma-se quanto o principal se joga nas escolhas do nosso coração e bem menos nas proezas tecnológicas ao nosso alcance. Vivemos mergulhados na superabundância de recursos (pelo menos, no Ocidente), o que exige saber escolher, deixar opções para trás, cientes do perigo de tentar ir a tudo e acabar em overdose. Bem sabemos que não é a mesa a transbordar de comida que engorda e dá cabo da saúde, mas o que realmente consumimos. Mais critérios e filtros afinados tornam-se incontornáveis para tirarmos o melhor partido do que está à mão de semear, mas requer moderação para evitar excessos viciantes e, a prazo, degradantes.
Claro que a validade de algumas perguntas na curta-metragem do IKEA poderá ser questionável, porque desconhecermos a cor preferida de alguém próximo não significa, necessariamente, desinteresse e frieza. Mas, sem nos atermos ao pormenor de cada interpelação, a ideia central merece ser levada a sério e repensada, no final do dia. Poderá servir de bússola para aprofundarmos e enriquecermos a relação com os outros, começando pelos mais chegados. Dizia um amigo meu, na altura pai de filhos pequenos, que uns vizinhos se preocupavam muito com os filhos, mas ocupavam-se bem pouco deles… Aplica-se, na perfeição, ao leit motiv do spot publicitário da marca sueca, observado pelo ângulo mais positivo e verdadeiro: «Everyday, we have the chance to know more about the people around us»:
Quadra bem anunciar o Natal lembrando a liberdade tão necessária ao coração humano e crucial na relação com o próximo, para poder ser saudavelmente recíproca, positiva, sem atropelos ao que no outro (em cada um) é sagrado e intocável. É especialmente reconfortante constatar a explosão de liberdade que traz à humanidade o Menino que está a chegar, como se canta neste hino natalício:
Hoje, a partir das 17h30, o Cristo Rei ficará iluminado em tons encarnados para lembrar o drama imparável dos deslocados e refugiados. É indizível a dor que provoca abandonarem a sua terra, por vezes, deixar para trás os mais velhos e frágeis da família, para fugir à pobreza e às guerras, aventurando-se em travessias perigosas até regiões estáveis e prósperas do globo, onde dificilmente serão tratados como um nativo. De 18 a 24 de Novembro, decorre a RED WEEK organizada pela Fundação AIS, em homenagem e em alerta para a situação dramática de milhões de cristãos vítimas de perseguição religiosa no mundo. Um dos pontos altos da semana é a apresentação do estudo: «Perseguidos e Esquecidos? Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé». Como é possível que uma época tão sensível aos Direitos Humanos e tão adepta das amplas liberdades, pactue (pelo silêncio noticioso) com estas perseguições mortíferas e inaceitáveis para os padrões de liberdade de que o nosso tempo se considera arauto e campeão? Onde estão a ONU e a maioria das ONG profissionais da denúncia? Hoje, às 17h30 será o lançamento do referido relatório, em Lisboa, no MUDE. Calendário das apresentações pelo país:
Quem nasceu no lado rico do planeta tende a banalizar e subestimar a sua situação de privilégio, apesar dos problemas que lhe calhem em sorte, porque ninguém está imune às dificuldades. Não existe o paraíso na terra, ainda que se vivam momentos sublimes. Por isso, Quem se prepara para nascer impotente, insignificante e paupérrimo num lugarejo perdido, como lembramos na Noite Santa, será a nossa melhor ajuda para vermos mais, percebermos melhor e dispormo-nos a fazer a nossa parte, com gente de carne-e-osso ao nosso lado.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Eu sou uma fazedora. E não imagino como vai ser quando deixar de poder fazer.
Não cito a frase verbatim, mas o espírito é este. Oiço-a de uma querida amiga com quem almocei a semana passada numa esplanada de bairro. O dia está simpático e alongamo-nos na conversa: as vidas de algumas pessoas que nos estão mais próximas, as nossas próprias vidas, o futuro possível, os projectos para os dias que estão para chegar. Falamos de solidão: dos que a têm e reconhecem, dos que a não têm, dos que dizem que a não têm, do que significa, na verdade, solidão.
Para esta minha amiga, a angústia (a palavra é minha) está no já não poder fazer. Para o meu Pai, que se manteve totalmente lúcido até à antevéspera de morrer, aos 94 anos, o desânimo instalou-se no momento em que perdeu a autonomia, quando deixou de poder apanhar transportes públicos para ir onde quisesse. Para um amigo mais recente, a tristeza está na sua viuvez de meses, na casa onde entra todos os dias e já não encontra ninguém. Para outros, a infelicidade está na ausência de alguém com quem partilhar uma vida ou, numa visão mais modesta, os dias excessivamente longos.
Um dicionário online diz-nos que solidão é estado do que está só, isolamento. Nunca como hoje se falou tanto de solidão - e ainda bem. Fala-se da solidão dos velhos, abandonados à sua sorte pelo egoísmo ou dificuldades dos mais novos; fala-se da solidão das gerações modernas, jovens enfiados na penumbra dos quartos a comunicarem de forma virtual. Fala-se na enorme solidão de um mundo conectado como nunca. Já o Eça, falando de viagens à Condessa de Ficalho, mencionava a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas, uma certa forma de solidão de quem se sente rodeado de pessoas que não falam a sua língua (e esta expressão língua deve usar-se de modo metafórico).
Talvez o mal dos tempos modernos não seja a solidão, stricto sensu, mas uma espécie de tristeza que advém da falta de algo. Nada me garante que quem vive sozinho tenha solidão e nada me garante que quem vive sempre em agitação não a tenha. Talvez não devamos falar de solidão, mas de privação ou carência que assumem diversas formas. Ou talvez devêssemos chamar solidão a tudo isto: à perda de actividade profissional ou de autonomia por via da obsolescência ou da velhice, às saudades de alguém importante que morreu, à vida numa casa grande demais porque o telefone não toca. Também poderá ser solidão - neste definição forçosamente ampla a que me atiro - uma vida sonora que não permite, ou que propositadamente evita, a escuta de uma voz interior.
A conversa com esta minha amiga começou com uma pergunta importante lançada para a mesa: vamos lá definir o que é isso de solidão.
Ver notícias, ler jornais e conhecer realidades mais ou menos próximas de nós é muitas vezes um exercício de desesperança. As assimetrias multiplicam-se em inúmeros contextos, há uma crescente sensação de insegurança, a polarização instalada vai semeando um clima de discórdia (aparentemente) insanável e fomenta-se a ideia de que os consensos, as realidades co-construídas, e a cooperação, são cada vez mais uma miragem, e nem temos tempo para analisar e assimilar este turbilhão de informação.
Que mundo estamos a construir? O que queremos transmitir aos que virão depois de nós? Que cultura estamos a deixar às crianças que já habitam este mundo?
As interrogações sobre o que acontece no mundo são muitas e as sucessivas crises económicas, sociais e ambientais do nosso tempo alimentam talvez a maior crise do mundo contemporâneo – a crise da esperança.
Estando em crise, é prioritário resgatá-la. E o mote para esse resgate foi lançado pelo Papa Francisco, em 2022, quando definiu para o ano de Jubileu de 2025 o lema “Peregrinos de esperança”.
Mas que esperança queremos (e precisamos) de resgatar? Não falamos da esperança ligeira, fácil, quase infantil, assente na premissa de que tudo ficará “bem” de forma imediata, com concretizações abstratas. É-nos mesmo quase insuportável, olhando e escutando para a realidade, o discurso de uma esperança express, ou on demand.
A esperança que cremos que o mundo precisa de resgatar é uma esperança humilde, silenciosa e esclarecida, capaz de aceitar o momento de desesperança presente, mas que, tal como um peregrino, se compromete com o destino, caminha e aceita que a dificuldade e o sofrimento farão parte do processo. É também paciente, confronta-nos com a nossa vulnerabilidade e apresenta-nos a fragilidade dos outros.
Como disse Tolentino, “S. Paulo é um oportuno mestre da esperança”. E as suas cartas são expressão de uma espera encarnada que me têm servido como guia (ou mesmo manual técnico) para este resgate do verdadeiro sentido da esperança que tenho tentado concretizar e que acredito que precisamos de fomentar. S. Paulo projeta a esperança em Deus, no futuro, na salvação que virá, mas anima-a no presente, no quotidiano, na fidelidade ao ordinário da vida e dá-nos pistas muito concretas de como podemos agir e amadurecer o nosso sentido da esperança.
Este realismo da espera no presente, que necessita de todos os sentidos despertos, remete-nos para a ideia de integralidade, e que é a chave para as respostas que precisamos para os desafios do nosso tempo. Olhar a realidade como um todo e para os desafios de forma concertada é o ponto de partida para uma sociedade mais justa social, económica e ambientalmente.
A “esperança integral” tem tradução num amor “que tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta”, e pode ser traduzida na paz, na oração, na alegria, nas relações familiares, na vida laboral, nos mercados, nas políticas públicas. E que perante a dureza das situações nos vai abrindo uma porta de possibilidades escondidas que o turvo da desesperança não nos permitia observar.
E é esta a semente que gostava de lançar para o tempo do Ano Santo que estamos prestes a iniciar – descobrir e alimentar uma esperança esclarecida, madura, que olhando de forma integral para a realidade abre caminhos para novos entendimentos e novas perspetivas (mais criativas) para dar resposta aos desafios do nosso tempo.
Em 2025, celebraremos também os 10 anos da encíclica Laudato Si’ e os 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, dois sinais de esperança em dois momentos históricos distintos. Que este tempo seja uma oportunidade de redescoberta da esperança como dom do Espírito, que é difícil de reconhecer na adversidade, mas que é o que nos conforta e garante.
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas. Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele mandará os Anjos, para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais, da extremidade da terra à extremidade do céu. Aprendei a parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo. Assim também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta. Em verdade vos digo: Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece: nem os Anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai».
Retomo, em tempos de pandemia e quarentena, a leitura de Imagens Imaginadas, de Pedro Mexia (Tinta da China, 2019). Em Momentos Kodak (pg. 100) é citada Nancy Martha West, autora de Kodak and the Lens of Nostalgia (2000):
"As pessoas que tiram fotografias rápidas usam a fotografia como forma de evitar, e até de negar, as memórias dolorosas, nomeadamente a memória da morte de uma pessoa amada. Tiram quase exclusivamente fotos de momentos felizes, e usam essas fotos como modo de reconstruir a sua história através da narrativa de prazeres e afectos 'intemporais', tentando assim consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, e no qual nos lembramos de momentos em que de algum modo escapámos ao sofrimento e à perda."
Calhou começar a dedicar-me à fotografia de uma forma totalmente amadora (por oposição a experiente, e não a profissional) quando os meus filhos eram crianças. Apesar de haver muitas fotografias banais, de momentos familiares - na praia, numa festa, em férias - o meu prazer consistia em fotografar-lhes os rostos de perto, (quase) sempre com chapéus de adultos, como se transpusesse para eles um gosto (que eles não tinham) e que eu não conseguia satisfazer. Era um tempo, ainda, de felicidade, manchado apenas por trivialidades - um dente partido, uma amigdalite, um febrão extemporâneo. Também nesse tempo, e no decurso de viagens, fotografei muitas paisagens - fotografias normalmente desinteressante, para não dizer más. Não há uma originalidade, um pormenor, uma perspectiva. Tudo, ou quase tudo, poderia ser substituído sem mágoa por postais ilustrados.
Deixei de fotografar rostos há muito tempo: os meus filhos cresceram, e a dimensão de lazer - ou desejo de registo para memória futura - já não faz sentido. As crianças já são outras, são os filhos deles, que eles fotografarão como entenderem, com ou sem chapéu, provavelmente de telemóvel. Continuei, contudo, a dedicar-me à fotografia sempre na dimensão amadora isto é, inexperiente. Como penso já ter dito aqui neste estabelecimento, o meu prazer fotográfico vai agora maioritariamente para os ambientes urbanos: o reflexo de um prédio espelhado, a perspectiva de um claustro, uma assimetria - ou talvez uma simetria - a nota dissonante de um gordo em frente a um ginásio ou de uma anoréctica numa montra pejada de éclairs. Paisagens também, com outra qualidade, confesso.
Será que Nancy Martha West tem alguma explicação para esta mudança, ou encolheria os ombros, como se faz perante uma banalidade que não merece atenção? Talvez, segundo ela, eu tenha tentado reconstruir a minha história, desejando consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, o que claramente não consegui, ainda que por motivos extemporâneos. Agora procuro olhares sobre a urbe, já não sobre as pessoas, forçosamente transitórias. Talvez seja o desalento, talvez seja um desejo de fixar espaços que são, pelas circunstâncias, mais perenes. Ou talvez não seja nada disso, o que é mais provável.
É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão parecer-se-à com a fome de luz?...
Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"
Tenho de inventar a minha vida verdadeira, está tudo desfeito, tudo por fazer,
tenho de recompor cada minuto da vida
e de inventar-lhe o sentido.
Tenho de encher de sentido o que nunca teve sentido,
inventar um sentido e pô-lo nas coisas do mundo.
Dar-lhes esse sentido.
Nasci. Passei por muitas mortes. E agora tenho de viver. Viver como quem inventa a vida verdadeira e a dá ao mundo, assim uma coisa do mundo.
Quero nascer de novo e saber como é que se faz o ofício de homem com o sentido em si e com um amor largo no próprio ofício, quero saber como é o trabalho de estar vivo.
Tenho de inventar a minha vida verdadeira como quem inventa uma casa para se habitar num espaço deserto, num mundo perdido.
Esta frase, que todos já ouvimos muitas vezes, leva-me sempre a fazer uma pergunta a mim próprio: para que serve a curiosidade? Durante muito tempo alimentei uma convicção de que não pretendo abdicar, nem mesmo tendo ouvido gente culta a tentar-me convencer do contrário. Em bom rigor a tese não é minha, não me atiro tanto para fora de pé... A tese é a de que o conhecimento faz - ou pode fazer - de nós pessoas melhores. Isto é, há uma certa relação directa entre o que sabemos e a tolerância.
Há muitas formas de sermos boas pessoas: sendo bons chefes, bons vizinhos, bons Pais, bons cônjuges, bons amigos. O exercício das virtudes junto dos nossos mais próximos é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para sermos melhores pessoas. Ora, a nossa humanidade pode provir de inúmeras fontes: da Igreja para quem for crente, da educação recebida em casa, do ambiente em que se cresce, da escola ou da rede social / familiar. Há, no entanto, uma fonte que muito contribui para a tolerância.
A Enciclopédia Católica Popular ensina-nos o que também pode ser a tolerância: [o] respeito pela liberdade e dignidade do próximo, procurando compreender o que há de verdade nas suas diferentes formas de pensar e de agir, nomeadamente através do diálogo. Este respeito, esta procura da compreensão da verdade do outro, não se constrói apenas em cima do conhecimento, mas assenta - e muito no conhecimento. Não falo apenas do conhecimento académico, mas do conhecimento adquirido através do contacto com os outros, com a diferença de culturas, de geografias, de modos de vida.
O conhecimento pode não ser mais do que um número de circo, a exibição de uma característica, como escrever-se com as duas mãos em simultâneo ou saber dizer as palavras ao contrário numa fracção de segundos. Na sua vertente mais fútil, o conhecimento é apenas o exercício de uma memória: sei muito porque me lembro de muito; e lembro-me de muito porque tenho uma memória muito boa.
Ser-se uma pessoa muito curiosa pode não ser mais do que ser-se uma pessoa muito curiosa. O importante perguntar é o que se faz com essa curiosidade. Um dia expliquei a uma amiga chilena quem era Sto. Ireneu - e esse personagem tornou-se uma private joke nossa. Perguntava-me ela muitas vezes: para que me interessa saber quem era Sto. Ireneu? E eu respondia-lhe: imagina que estás um dia com uma pessoa chamada Ireneu. Num instante podes falar-lhe de quem era o bispo e doutor da Igreja Católica. E assim se quebra um gelo...
Identificar Sto. Ireneu encaixa-se na ideia da curiosidade. Sabe-se quem ele era porque se fixou quem ele era. No minuto em que se faz alguma coisa com a ideia - nem que seja, na sua versão mais infantil, pôr uma pessoa a rir - essa curiosidade tornou-se conhecimento. O conhecimento é a curiosidade em movimento, é o estabelecimento de um qualquer comércio humano. Ser-se curioso para consumo próprio é a gula sem o prazer sensorial - serve para quê?
Naquele tempo, Jesus ensinava a multidão, dizendo: «Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes. Devoram as casas das viúvas com pretexto de fazerem longas rezas. Estes receberão uma sentença mais severa». Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa. Muitos ricos deitavam quantias avultadas. Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante. Jesus chamou os discípulos e disse-lhes: «Em verdade vos digo: Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros. Eles deitaram do que lhes sobrava,
mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha,
Não vou perder tempo a procurar amores perdidos, perdidos na adolescência, na praia, na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações, vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto, vou guardar só as boas memórias, as memórias boas, vou deixar doer até a dor desaparecer, morrer à míngua como sem água uma planta num vaso, vou visitar velhos amantes, jóias sem par, de pôr e tirar, brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas, camas onde tenho sempre lugar, corpos que me protegem em concha, bocas que beijam os meus defeitos, vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade, e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante, a quem vou, uma vez mais, chamar amor e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro, como um dia amei os meus amores perdidos.
COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO
A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países.
As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional.
Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade.
As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.
Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois.
Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas.
Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.
O famoso piano Hubay, que permaneceu na Embaixada dos EUA em Budapeste, por décadas, até à transferÊncia para o Museu de Musicoloia, a 6.FEV.2014. Photo: da dta. para a esq.: Cultural Attache Dmitri Tarakhovsky, Laszlo Hubay, Public Affairs Counselor Karyn A. Posner-Mullen, Charge d’Affaires M. André Goodfriend, and a representative of the Museum of Musicology with the piano (Embassy photo by Attila Németh)
Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana. Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país:
Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952
EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER
«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.
Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…
Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila.
Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke
Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.
Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!
Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.
Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”
Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.
De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»
Excerto de «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril»,
Edição da Oficina do Livro, 2003; tradução
do original inglês assegurada por Manuela de Sousa Rama.
Maria Zarco (a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico).
À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto.
Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou.
Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja.
Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: «O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’. O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Não há nenhum mandamento maior que estes». Disse-Lhe o escriba: «Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes: Deus é único e não há outro além d’Ele. Amá-l’O com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios». Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente, Jesus disse-lhe: «Não estás longe do reino de Deus». E ninguém mais se atrevia a interrogá-I’O.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo, ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se. Rodearam-n'O os discípulos e Ele começou a ensiná-los, dizendo: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
Sou um utilizador recente e muito básico da Inteligência Artificial (no meu léxico comum referido como chatgpt). Tive uma utilização esporádica, há cerca de um ano, quando pedi ao chatgpt para me escrever um discurso de 10 minutos sobre oncologia pediátrica: num certo sentido, o discurso era irrepreensível - não tinha nenhum erro, tudo fazia sentido.
Mais recentemente comecei a utilizar o chatgpt para outro tipo de assuntos: pedidos de informação, identificação de citações e, acima de tudo, preparação de apresentações: pedi-lhe para me fazer uma apresentação de 15 minutos sobre um determinado assunto (relativamente técnico) e o resultado foi impressionante. Obviamente que há uma adaptação necessária - isto é, não pode fazer-se copy / paste. Porém, o que recebemos é um esqueleto muito importante.
Retomo o tema do discurso feito pelo chatgpt do qual retiro duas notas importantes: a ausência de disparates; e o facto do discurso ser genericamente impessoal, isto é, não ter uma dimensão emocional grande, o que seria normal num discurso sobre cancro em crianças.
Há uma senhora famosa que escreve no Linkedin sobre temas diversos: o amor, a culpa, o cruzamento de olhares, a separação dos corpos, o encontro das almas, etc., etc. Tenho, para mim, que todos aqueles textos são escritos com recurso à inteligência artificial. Porquê? Porque tem excessos de brasileirismos numa pessoa portuguesa; porque utiliza a grafia do novo acordo ortográfico, o que não me parece que seja o caso da dita senhora, já com alguma idade. Por último, porque os textos são genericamente impessoais, isto é, tudo espremido gera pouco sumo - é como tentar apertar claras em castelo. Apesar disto, sinto inveja pela forma como as pessoas elogiam estes textos, usando expressões como sabedoria, experiência, maravilha, magnífico, adoro, não me canso de lê-la...
Um destes dias ouvi um ministro a falar. Era deste governo, mas poderia ser do anterior, ou do anterior ao anterior. Dei por mim a pensar que, fechando os olhos e abstraindo-me de tudo, poderia estar a pedir ao chatgpt que me escrevesse um texto sobre qualquer coisa. O ministro usou palavras importantes e impactantes; não disse um único disparate e respondeu a tudo de forma rápida. Porém, imaginei-me a espremer aquilo tudo e a perceber que só sairia ar, porque nada daquilo tinha consistência, substância, conteúdo. O ministro respondeu a tudo não respondendo a nada. Percebi, por isso, que entre a inteligência artificial e a actividade governativa há uma sobreposição forte.
Cristo Eis como há mais de um ano não penso em Ti Desde que escrevi o meu penúltimo poema de Páscoa A minha vida mudou tanto desde então Mas eu continuo a ser o mesmo Até quis tornar-me pintor Eis aqui os quadros que criei e que esta noite pendem dos muros Oferecem-me estranhas visões de mim mesmp que me fazem pensar em Ti.
Cristo A vida Eis o que pesquisei As minhas pinturas fazem-me sofrer eu estou cheio de paixão Tudo é cor de laranja.
Passei um dia a pensar nos meus amigos E a ler o jornal
Cristo
Vida crucificada no jornal aberto que eu tenho ao longo dos braços
Envergaduras Foguetões Ebulição Gritos Como se um aeroplano caísse. Sou eu.
Paixão Fogo Folhetim Jornal Não importa o quanto não queremos falar de nós próprios
Às vezes é preciso gritar
Eu sou o outro Demasiado sensível
(Agosto de 1913) Blaise Cendras (1887 - 1961) In "Descida Brusca de Temperatura" (Alguma Poesia Suiça) (Tradução de Luís Filipe Parrado)
Fui ouvir Angelique Kidjo à Gulbenkian este sábado. Não sabia quem era, nunca tinha ouvido, comprei bilhetes para ir e para oferecer. Um concerto fantástico!
O meu gosto pela música africana data, muito provavelmente de 2008, ano em que estive no Zimbabwe dois meses. Antes disso tenho dúvidas - não me lembro - de que ouvisse esse estilo musical. Lembro-me de ouvir Dudu Manhenga ao vivo em Harare, num concerto privativo.
Regresso à Gulbenkian. Sou um habitué do espaço - curiosamente, lá estarei na próxima 3ªfeira a ouvir o Requiem Alemão de Brahms. Não estou habituado, no entanto, a ver a sala cheia de pessoas em pé, a dançarem, a cantarem, a baterem palmas, a entusiasmarem-me com Angelique Kidjo. Vale a pena ouvir e apreciar. Incluí neste post uma música mais lenta - Malaika - porque foi muito pedida pelo público, apesar de não ter sido tocada, e é muito bonita. Divirtam-se e apreciem.
Naquele tempo, quando Jesus ia a sair de Jericó com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho. Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim». Jesus parou e disse: «Chamai-O». Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te». O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe: «Que queres que Eu te faça?» O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja». Jesus disse-lhe: «Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.
Com as máquinas potentes que são os pequenos rectângulos dos nossos telemóveis, chegam-nos por mãos amigas incontáveis mensagens sugestivas e inspiradoras. Entre as incisivas e sábias estão as do Pe.Vasco Pinto Magalhães, sj, de que partilho uma selecção especialmente actual, saída da colectânea alimentada a cada dia – «NÃO HÁ SOLUÇÕES, HÁ CAMINHOS: 365 vezes por ano não perguntes porquê, mas para quê». Talvez resulte num bom aperitivo para ir saboreando ao longo das próximas semanas, à maneira de um gin tomado em boa companhia:
«22.OUT
Todos, sem excepção, temos um defeito dominante. E a melhor forma de corrigir defeitos é desenvolver as qualidades contrárias. E o segredo para desenvolver qualidades ou virtudes é puxar pela nossa melhor qualidade. Quando desenvolvo o meu talento, todo o resto da personalidade cresce e amadurece. Qual é a minha melhor qualidade?
21.OUT
Alegrar-se com o bem dos outros é um princípio de felicidade em que nos temos de educar. Incomoda um mundo de "bota-abaixo", que não sabe ver nem alegrar-se com o bem alheio. É já grande coisa entristecer-se e doer-se com o sofrimento do amigo, e quase todos somos capazes disso. Outra coisa é alegrar-se com o bem do próximo – isso é grandeza de alma!
20.OUT
O perdão não se opõe à justiça. Pensar o contrário seria, no mínimo, ingenuidade. É que, se podemos e devemos perdoar aos patrões da droga, aos terroristas e a todos os criminosos em geral se eles revelam arrependimento, a sociedade não pode deixar de os julgar e, se for caso disso, de os condenar a uma pena justa. A paz também resulta da justiça correctamente exercida e aplicada pelos órgãos próprios. Devemos mesmo exigir que essa justiça funcione devidamente.
18.OUT
Disse alguém que o futuro pertenceria a quem oferecesse mais esperança. Os políticos costumam acenar com promessas várias, mas nem sempre as promessas significam esperança. São mais a cenoura à frente do burro... Esperança é a credibilidade de um projecto. Esperança é a convicção de que a vida vale a pena e faz sentido. Esperança é a força para lutar mesmo na dificuldade. Esperança é "estar de esperanças".
17.OUT
A lista de desgraças do nosso mundo parece não acabar e até aumentar: guerras, fome, escândalos, abusos, corrupção... Parece que vai tudo de mal a pior. Será? O pessimismo parece mais inteligente, mas a esperança é mais sábia. Não será esta desgraça um grito de que tudo tem que mudar, de que queremos ir por outro caminho? E se queremos é porque ele existe.
16.OUT
Quem crê sabe que não há noite nem escuridão que dure sempre. Sabe e experimenta que há sempre uma saída, por mais fechada que pareça a situação. E se não a está a ver, não é porque não exista, é porque ainda não chegou a hora.
13.OUT
Curioso... À medida que a fé vai perdendo qualidade, não aumenta o ateísmo, aumenta a superstição. O nosso mundo à medida que se orgulha de não precisar de Deus, enche-se de amuletos e bruxas.
12.OUT
A primeira vítima do mal que faço sou eu próprio. Fiz mal àquele porque com esta "piadinha" lhe estraguei a fama, fiz mal àquela porque lhe fiz perder uma oportunidade, e ao outro porque lhe acertei em cheio no ponto fraco... Mas fiz mal – antes de mais – a mim próprio, porque não me portei como gente. O outro até pode crescer com o mal que lhe fiz, mas eu já desci uns pontos na escala da humanidade.
10.OUT
O ressentimento é uma das experiências humanas mais negativas. O ressentido está sentido com os outros e está sentido consigo, e remorde-se, não se perdoa nem perdoa, acha que tem todo o direito a isso. É a cegueira do ressentimento! Só um acto de humildade, e saber perder os falsos direitos a que me agarro, pode fazer-me sair dessa dor de andar magoado com a vida.
27.SET
A Fortaleza. Faz-nos imensa falta para superar os medos, os cansaços, para saber viver com as próprias fragilidades sem desanimar e com as fragilidades do mundo sem violência nem cinismo. A fortaleza é um dom que permite perdoar e recomeçar sempre. Só os fracos se vingam e mentem. Os fortes estão bem com a verdade, mesmo que traga sofrimento.
25 SET
O entendimento é como a inteligência, um "ler por dentro". É o que significa a palavra. É um dom que não se consegue com cursos, porque é uma atitude que (…) nos dá a capacidade de ir ao fundo das coisas, de interpretar os tempos e os modos. Sem discernimento nem as regras nos salvam.
23.SET
Mais do que coisas novas, aquilo de que precisamos é de uma maneira nova de ver as coisas. Não é o que acontece numa sociedade envelhecida e cínica, que gere as crises com oportunismo e sem referência a valores, e numa cultura que legaliza disfarçadamente a violência e a morte, parecendo trazer novidade, mas revelando tão só esgotamento e vazio. Quem não vir o bem no âmago da realidade nem sequer chega a compreendê-la e não tem futuro.
22.SET
O nosso mundo vive cheio de solidão negativa, sem perceber nem aceitar esse dom, essa necessidade, de estar só para poder recolher-se e organizar-se, para poder dar e dar-se. Oferece-nos, pelo contrário, dois álibis, para enganar a solidão: o trabalho e o divertimento. A ocupação e a satisfação talvez nos façam esquecer, mas deixam-nos cada vez mais longe de nós mesmos e dos outros.
21.SET
A solidão é, talvez, o maior sofrimento humano, já que fomos feitos para nos ligarmos e ser ligados. A solidão como vazio, como desamor e como perda de sentido, é uma espécie de morte por rejeição. Mas a solidão também pode ser saboreada como ocasião de outros encontros, com quem nos ama mesmo quando tudo se perdeu. E há quem saiba estar sozinho e bem, sem ter que fugir para esquecer ou enganar o vazio. O primeiro passo para viver bem a solidão vem precisamente ao descobrir que dentro de cada um de nós há alguém que nos ama: podemos ser nós... e é certamente Deus!
18.SET
Um dos mandamentos da verdadeira alegria diz assim: "Vê bem como fazes os cálculos das tuas avaliações!" Conta-se que, certa vez, um duende da floresta entrou numa loja e mudou a etiqueta dos preços. Por cima da máquina de lavar colocou o preço de dois euros e de uma dúzia de molas de roupa o de quinhentos euros. Foi a confusão! Parece-me que na nossa vida entrou um duende atrevido: damos muita importância aos negócios e, por exemplo, nem sequer uma tarde temos para brincar com os nossos filhos!
16.SET
A ave canta, mesmo que se parta o ramo, porque sabe que tem asas. Nós, na hora da dificuldade ou da doença, deixamos de cantar. É assim porque não sabemos ver com vistas largas e profundas. Porque só vemos, com as palas que temos nos olhos, aquilo que está mesmo diante de nós. Porque só confiamos no que tocamos e está à mão. Pobre materialismo, tão infeliz... Voa tão baixo...
14.SET
É diferente a espera e a esperança. Se estou à espera do comboio que não chega, digo a mim mesmo: "tem paciência, espera". Mas também oiço uma voz cá dentro que diz: "tem esperança"; isto é, mesmo que o comboio não chegue podes crescer com esta situação, podes tirar partido dela e até inventar outra saída. A espera é de coisas materiais. A esperança abre horizontes e dá sentido ao que nos acontece.
13.SET
Comunicar é mais do que transmitir, como formar é mais do que informar. Comunicar é comungar. Comunicar é estabelecer uma ponte que funciona nos dois sentidos. Podem ser úteis os comunicados, mas sem resposta recebida e aceite, não há comunicação que seja comunhão.
12.SET
Quem sofre, a maior parte das vezes, mais do que uma solução, só quer partilhar a sua dor, ser ouvido e apreciado, acompanhado. Não é estranho que seja dessa ajuda, que todos podemos dar, que a maior parte de nós foge?
11.SET
Ninguém é tão flexível como a pessoa justa. A justiça ajusta a vida à verdade e à rectidão, sabe para onde vai e, por isso, tem compaixão. O injusto é o rigorista quando quer pôr tudo na mesma bitola e é o relaxado quando mede as situações pelo que lhe convém.
10.SET
Alguém disse que a coisa menos comum é o senso comum. Bastaria um pouco de bom-senso, de sentido das conveniências, das prioridades, dos direitos dos outros, para tudo ser melhor. O senso comum não nasce connosco, mas pode aprender-se e exercitar-se. Nem há verdadeira maturidade sem ele.
6.SET
"Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz." Quando Jesus disse isto tinha em mente aquelas pessoas que, para chegar aos seus fins mesquinhos, são capazes de arquitectar estratégias com argúcia e fazer mexer o mundo, enquanto tanta gente boa não é capaz de ser crítica nem de ser criativa. Ora uma caridade sem inteligência, sem discernimento, pura e simplesmente não é caridade.
4.SET
A paciência é uma "paz-ciência". A "paz-ciência" não se contenta com tratados de reconciliação nem com tréguas. Vai muito mais longe, pensa que tudo tem a sua hora e, ainda que não goze a paz, sabe vê-la no horizonte. A ciência da paz deve começar no momento do desencontro. A ciência da paz é a paciência. A paciência tem horizontes largos e é própria dos fortes.
2.SET
O desejo mais profundo de uma pessoa é ser feliz. Não só por um momento, mas feliz para sempre. Outra coisa não seria normal! Mas há quem desista desse sonho por lhe parecer uma paixão inútil e impossível, confundindo felicidade com bem-estar ou prazer. Ser feliz é ser fecundo. É esse o significado da palavra. E uma árvore só é fecunda quando é podada. Não se é feliz sem podar o egoísmo.
1.SET
"Humor com amor se paga". Parece haver qualquer engano nesta frase, mas não. Quando se trata do verdadeiro humor, de uma compreensão crítica, de uma observação que faz ressaltar o relativo e nos rende à humildade do que somos, a resposta só pode ser também um olhar que aceita com ternura. Sabemos é pouco o que é o humor. Sabemos melhor o que é a ironia e o cinismo.
21.AGO
Distribuir é uma sabedoria. Pode pensar-se que é fácil e que, para ser justo, basta dividir em partes iguais para cada um. Mas não, essa seria uma justiça cega, sem coração. Distribuir é dar a cada um aquilo que cada um necessita. E como as necessidades são distintas, só há igualdade se se atender à diferença.
20.AGO
Deveríamos agradecer ter nas nossas casas alguém mais velho, um avô, mesmo gasto e doente. Para além do seu saber, essa pessoa humaniza-nos, dá-nos sentido da história e mostra-nos o que vale a vida, torna-nos solidários. Mesmo quando já não fala e "só" dá trabalho, pode ser amado e isso faz-nos muito bem. Quando lhes baterem à porta com teorias de eutanásia, que dizem que a pessoa vale o que produz, digam que não estão.
18.AGO
Respeitar a liberdade de cada um e a sua diferença não significa tolerar tudo o que cada um diz ou faz. Tolerar não é ser indiferente nem é não ter uma ideia do que é o bem; tolerar não é pactuar nem pode ser demitir-se de educar para um mundo melhor. Isso é permissividade. Respeitar o outro é também exigir responsabilidades.
12.AGO
Todos precisamos de amigos e de relações. Mas tudo isso pode não ser mais do que agitação e aparência, se não há uma vida interior que nos acompanhe e saiba fazer escolhas, que dê conteúdo às nossas relações e divertimentos. Há quem tenha uma vida social intensa, mas não saiba avaliar o que lhe acontece a si próprio e à sua volta.
4.AGO
Um famoso guia espiritual dizia que desconfiava da palavra "fazer" porque lhe sabia a fabricar ou a produzir. Ora Deus ao criar não faz propriamente nada, mas limita-se a existir e a comunicar-se contagiosamente! Não haverá aqui também uma lição para a nossa sociedade que vale pelo que produz em vez de contagiar a vida?
1.AGO
O silêncio é um valor inestimável. Sem silêncio não se ouve e ainda menos se escuta. O homem que não se escuta a si próprio, desconhece-se. O que não tem espaço e tempo para meditar, para ouvir o significado dos sons e das palavras, anda neste mundo a reboque, sem leme. Só no silêncio é possível descobrir outros sinais de comunicação. Aproveitemos este tempo de férias para fazer silêncio. O silêncio é o segredo de uma melhor comunicação.
28.JUL
Quando chega a noite e olho para trás posso compreender melhor a importância de me ter levantado, ou não, àquela hora, o valor de tal visita, o impacto do que disse e ouvi. A vida entende-se da frente para trás. Só um dia saberei bem o valor de cada passo. É preciso muito cuidado com o desânimo, pois posso estar a desvalorizar algo em relação ao qual, um dia mais tarde, poderei dizer: "Que bom foi ter acontecido!"
27.JUL
O primeiro passo para superar o mal e os problemas é enfrentá-los e admiti-los. É o que muitas vezes não se faz e, então, nem se sabe que dimensão têm, nem onde se situam, nem como agem. É assim que nos tornamos fabricantes de monstros e vivemos à espera de milagres.
24.JUL
-"Bom dia, então como vai isso?" - "Ah, mais ou menos, vamos andando!" Resposta horrível, morna, que nem sequer é verdadeira. Sabemos se vai chover ou fazer sol, sabemos se a Bolsa sobe ou desce, mas parece que não queremos ver e agarrar a vida, dizer se está a ser construtiva ou não, pondo assim o nome às coisas! Sem identificar os caminhos, não sou eu que decido sobre a minha vida, é alguém que me leva à trela.
23.JUL
Ainda faz mais impressão encontrar aquelas pessoas que se fazem infelizes. Aquelas para quem está sempre tudo mal, para quem o que têm nunca chega, para quem cada coisa constitui uma dificuldade, que encaram o futuro com angústia e horror... Ora isto não é sério. Fazer de tudo um caso sério não é nada sério. E pode curar-se com outra educação... desde pequenino. Ser feliz, aprende-se!
21.JUL
Tanta gente, actualmente, sofre de "adolescência retardada". Custa-lhes escolher. Ficam infantis ao pensar em tantas coisas que se lhes oferecem, lhes agradam e quereriam obter, mas a verdade é que... "já não temos idade para isso". Quanto maior é o leque de possibilidades de divertimento, mais difícil é comprometer-se com uma realização séria. Aliás, de que andamos à procura: do divertimento ou da fecundidade?
10.JUL
"A maturidade é uma ave que levanta voo ao cair da tarde." Foi Platão que o disse, poeticamente. E, realmente, os nossos "homenzinhos" feitos à pressa e cheios de opiniões, tal como os fabricam as nossas sociedades de aceleração e abundância, são tão infantis afectivamente!... O problema é ainda mais grave numa sociedade que não respeita os velhos.»
Sem saudosismos, lembro um momento luminoso e festivo das vitamínicas JMJ de Lisboa, em 2023, porque as boas memórias ajudam a manter vivas as melhores experiências que nos calharam em sorte. Partilho também outros momentos musicais do mesmo grupo, em gravações com mais qualidade dos que as gravadas nos palcos abertos das célebres Jornadas em Portugal:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)