28 novembro 2008

Lanterna Vermelha


A entrada do estabelecimento fazia-se por um beco escuro e discreto, atravessando um arco. Uma placa de mármore antigo relembrava que naquele local, e em tempos idos, se juntavam os homens bons do concelho, assumindo a responsabilidade das decisões que salvavam ou condenavam as populações da barbárie invasora. A placa perdera um pouco da sua dignidade, rodeada por cartazes que anunciavam concertos rock em fotografias de gente estranha e poses bizarras e grafittis coloridos, nos quais a Cátia revelava ao mundo o seu amor incondicional pelo Rúben. As juras eternas já não se faziam no recato do lar à luz de umas velas, mas num muro comido pelas heras e pintado de verde alface.
Alguns metros acima, um partido político de menor dimensão exibia a sua presença humilde através de uma bandeira esfiapada que esvoaçava triste ao som de um vento brando. Aquele rectângulo de pano era sinal da pouca importância no espectro político, ou prova do estado de um país em que a fazenda se arrastava pelas mesmas ruas por onde circulava a amargura.
Mesmo ao lado do arco, uma Igreja mantinha as portas quase sempre fechadas, numa teimosia de resguardo e protecção. Os templos sagrados, onde a população ia pedir e agradecer, tinham deixado de ser espaços de repouso do espírito para se tornarem em locais de vandalismo e furto. O terço da tarde poderia ser facilmente interrompido pela carteira que se rouba ao fiel ajoelhado; o S. José com um olho torto que encimava o altar lateral arriscava-se à impunidade da cobiça de gente sem respeito pelos activos eclesiais. A luz mortiça que repousava as almas sofridas tornava-se ideal para quem, meliante e desonesto, agradecia que a prece em voz alta disfarçasse o som dos seus passos furtivos.
Do lado de lá de um prédio baixo com janelas estreitas de guilhotina verde-escura e cortinados de renda bordada à mão, um terreiro relativamente amplo e abandonado via o seu futuro condicionado em sede de autarquia. Os meses passavam, e os eleitos juntavam-se numa sala onde os consensos se geravam em torno de trivialidades – a necessidade de café quente às horas de expediente. Por enquanto servia de zona de estacionamento, já que a volumetria disponível inviabilizava o nascimento de um centro de lojas, o que seria mais uma machadada no comércio tradicional, remetendo-o à condição confrangedora de moribundo abandonado à sua sorte.
Ao contrário do que se poderia pensar, dada a relativa modéstia daquela zona habitacional, o parque automóvel ali arrumado, quase sempre na sombra e discrição de noites caladas, era farto e potente, como se aquele espaço fosse o equivalente em rico ao bairro dos actores. Carros possantes, novos, com as matrículas a evidenciarem a juventude das viaturas, longe ainda das inspecções obrigatórias que vasculhavam as entranhas das máquinas, denunciando poluições indesejadas e desalinhamento dos pneus.
Por volta das seis da tarde – ou um pouco mais tarde, pela hora de jantar ou logo a seguir – o movimento aumentava. Um olhar distraído não veria mais do que gestores, advogados, profissionais liberais em termos fiscais e de costumes, numa estranha mistura com pessoas que revelavam actividades ligadas à construção civil e, nalguns casos, ao sempre fascinante mundo do futebol. Tudo aquilo era uma espécie de ONU do universo social, onde a roupa da Rua dos Fanqueiros convivia com a que tinha vindo de Paris ou Milão – com um toque de feira de Carcavelos, num esplendor de contrafacção. Os aromas misturavam-se e confundiam-se numa profusão de perfumes que exalava algo entre o enjoativo e o fascinante, o indefinido e o fantástico, o sândalo e o floral.

(Continua)

MTS

1 comentário:

Anónimo disse...

Promissor, senhor MTS! E um título sugestivo, também! RF

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