19 novembro 2008

Largo da Boa-Hora

A caminho do meu banco, pela Rua Augusta, pela Rua do Ouro, cruzei-me com muitos que, como eu, cumpriam o seu dia nesta etapa da hora de almoço.
Ruas aquelas, majestosas, ricas de oportunidades e diversidades, plenas de gente, todavia ingloriamente calcorreadas em passos apressados por semblantes rígidos, em alheamento, indiferença, todos aparentando estarem a cumprir uma qualquer missão marcial.
Desse encontro, duas impressões me marcaram - uma provinda do colectivo e a outra dos indivíduos.
Do colectivo, impressiona-me que a concertação de tanta gente, tanto movimento, tanto acontecer gere todavia um silêncio dominante que se entranha imediatamente, que se percebe como coisa bizarra, que não devia suceder mas sucede. Espanta, assusta e entristece. Era suposto acontecer comunidade, mas não acontece, tão só ajuntamento, coincidência de estada, de mudos, de silenciosos, de afastados, de avessos ou indiferentes uns aos outros.
Feche-se o semáforo, fique o trânsito suspenso e não ouviremos nada, nenhum som da onda humana em movimento, nem um burburinho.
Entrar nestas rotas de movimento não é ser mais uma gota de água num rio vivo, fervilhante, que corre com turbulência e efervescência; entrar, é ser gota de água que escorre solitariamente pela vidraça em dia de chuva.
Dos indivíduos impressiona-me a atitude, o olhar, o fácies daqueles por quem vou passando.
Reina a invisibilidade, são cruzamentos entre névoas, entre nadas que se intersectam por segundos, num acaso inconsequente.
Em cada passagem pelo outro, os olhares, os gestos, os movimentos, transmitem a obstinada mensagem: ignoro-te, prescindo de ti.
Não há olhares que se fixem em partilha, por segundos, de condição humana; não há sorrisos que se formem e sejam protestos de simpatia, de solidariedade; não há variações de passo, de posição, de movimento, que confirmem o reconhecimento do seu semelhante, do seu igual, que o procurem adivinhar e ler, ainda que pela simples curiosidade e interesse sobre o como vamos
Não os vejo a passear, mas tão só a passar. Cumprem-se itinerários de e em isolamento, e não percursos de divagação, distracção, revelação de presença, desfrute do outros, busca de comunicação, de interacção com o mundo envolvente.
Não se iludam, não se trata de pressa, de urgência no circular. A pressa não é a causa, mas sim o efeito, o efeito do desgosto do caminho. A indiferença pelo que vai passando é que estuga a passada e mantém o olhar fixo no chão, no espaço do passo seguinte.
Porque será assim? (é certo que não cuido da espécie dos arrogantes e outras derivas)
Não sei, mas temo que seja pela desistência do próximo, descrença que naquele desconhecido com quem se cruza possa haver uma dádiva e uma recíproca necessidade de afecto que alimente ou restaure a alegria do momento que passa.
Temo que cada um se esgote em si mesmo, desacreditando no outro, desacreditando que mesmo um desconhecido pode, numa simples e inocente simpatia, sem passado nem futuro, ajudar no presente, fazendo-nos sentir notados, vivos, importantes, seres que contam para os outros, e para quem os outros contam.
Em reciprocidade ou retaliação, se preferirem, recusa-se sentir os outros, dar-lhes reparo, simpatizar com eles, gerar contentamento pelo simples ânimo de os fazer sentir que se lhes quer dar a nossa atenção, o nosso olhar, o nosso sorriso.
“Ver e ser visto” é indispensável para não ser trucidado pelo comboio que vai passar, mas é também condição insuprível para não sermos esmagados pela solidão existencial que é igualmente mortífera.
Suspeito pois que proliferam e dominam os caminhantes desiludidos, com tamanha desilusão que aligeiraram a bagagem, deixando a alma guardada em algum lugar, como inerte inútil que não importa carregar na jornada.
Desequipados da alma, são espectros em movimento e não seres humanos em relação e comunicação.
Também sinto que para muitos, demasiados, se adensa e acumula o cansaço deste seu viver, o qual, insidiosamente, como larva de insecto, vai construindo o opaco casulo que aprisiona, paralisa e torna as suas vítimas em cegos, surdos e mudos sociais. Autistas da humanidade.
Restaurar a humanidade na Rua do Ouro, ou em qualquer outra, é o que proponho.
Não sou nem demasiado lírico nem demasiado ingénuo para propor que se retome a saudação, a palavra espontânea, os bons dias, a companhia. Nada disso.
Busco que cada um, a partir do humilde reconhecimento e interiorização da sua própria fragilidade e dependência do outro, acredite que se tomar a iniciativa de dar expressão humana a si próprio, de transparecer os seus sentimentos, de deixar fluir o seu ânimo, receberá do outro fraternidade e solidariedade, expressas na mágica sinalética da comunicação humana.
É imensa a capacidade que o aparentemente pouco pode fazer sobre o muito, quando falamos de sentimentos e estados de alma. Nunca se despreze o pouco, quer quando se dá, quer quando se recebe.
Por mim, levanto-me deste banco e começo a caminhar, determinado a dar e pedir um sinal de fraternidade àquele que passar e para o qual vou olhar com vontade de o ver e de que ele me veja realmente.
Acredito, e por isso talvez um dia volte a haver burburinho na Rua do Ouro.

ATM

5 comentários:

Anónimo disse...

Apetece-me citar Bernard Shaw:
"O maior pecado para com os nossos semelhantes, não é odiá-los mas sim tratá-los com indiferença; é a essência da desumanidade"

Anónimo disse...

Bom dia ATM,

Vá, caminhe ou simplesmente fique no seu banco escolhido.
Dê, partilhe, (um sorriso pode bastar...), mas não espere nada em troca, dê gratuitamente, de coração.

Quando menos esperar, já terá alguém (ali ou noutro lugar) a "devolver-lhe" esse sorriso, a acrescentar-lhe um gesto, a ...

Faça a sua parte, colibri.

abraço , sorriso, silêncio...

a.

Anónimo disse...

ATM, se quer ver e sentir, em exponencial infinito, essa dolorosa experiência de se estar "só no meio da multidão", atreva-se, numa destas manhãs, a descer as escadas que ligam o terminal da CP no Cais do Sodré e a estaçao do Metro..... autênticos calabouços onde milhares de pessoas passam, diariamente, como se se dirigissem para o cadafalso. Um dia, à laia de experiência, tentei sorrir ... talvez mais um esgar ... para alguns dos que comigo se cruzavam. Hahahaha, mais parecia que eu era um ET ou um pedinte (daqueles para quem se evita olhar, pois longe da vista longe da preocupação). Hélàs, é este o mundo em que vivemos. Confesso-me fã do seu Largo da Boa Hora.
MAF

Anónimo disse...

Também já me sento aqui, neste Largo, invisível, todas as semanas, observando-o a observar... Não faço barulho para não o distrair... Shiuuuuu.... Abraço com a admiração da RF

Anónimo disse...

Mas de repente, há alturas em que perco eu também a pele da indiferença e transbordo de amor pelos outros. Amor mesmo. Daquele incondicional, divino. Amo o grupo, os anónimos, a gente com quem me cruzo. E sinto uma onda de paixão pelas pessoas, pelo mundo, pelo planeta. Deixa de haver desconhecidos, mas apenas familía, peças de um todo do qual faço parte integrante. É então que tomo consciência da minha (nossa) relatividade e de que mais não somos que um ponto azul pálido no Universo. Em Boa- Hora, estes momentos...

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