26 novembro 2008

Largo da Boa-Hora

Como sempre, estou no meu banco.
Hoje cismo e divago sobre o que se passará nos andares e nas águas furtadas destes prédios pombalinos.
Explico. A quadrícula pombalina é geometricamente perfeita. Efectivamente, além do mais, todos os prédios são absolutamente idênticos: rés-do-chão em loja, quatro andares e um quinto piso recuado em águas furtadas.
Esta identidade não é só arquitectónica, é também de condição.
De condição, porque muitos dos prédios pertencem a instituições centenárias cujo conhecimento, e até razão de ser, obscureceram: mutualistas, associações, caixas de previdência; outros são de herdeiros de “…” ou de octogenários, ambos de entendimento, zelo e paradeiro incertos, e os demais coisas de promotores imobiliários, cuja única acção é a paciência de deixar correr.
Com estes proprietários, ausentes e desinteressados, os prédios estão todos em liberdade, em auto-gestão, consentindo por isso, generosamente, que no seu seio se albergue um mundo que não teria outra oportunidade de ser e perdurar.
Ora, é esse mundo fantástico e feérico que se acolhe e refugia nesses prédios da Baixa que constitui o objecto do meu cisma.
Ouso então explorar esse mundo, e reencontremo-nos na linha abaixo para contar o que mais ficou dessa minha ousadia.
Nos andares encontrei um mundo que pensara já acabado.
Escritórios, armazéns e manufacturas, em que tudo é absolutamente obsoleto: a actividade, o ambiente, o mobiliário, a decoração, os equipamentos, as operativas, os funcionários e os patrões, os clientes e os fornecedores. Tudo vive num mundo e para um mundo que já acabou há décadas.
Existe ordem, eficiência, trabalho, mas do mesmo modo que há quarenta ou mais anos.
Aí, o tempo pára sempre, diariamente, à porta de cada patim da entrada e, por isso, aquelas colmeias seguem vivendo, com orgulhosa indiferença ao que lá fora possa ter mudado, permanecendo fiéis ao que sempre foram e provavelmente sempre serão. Esta indiferença, alheamento ao actual, ao moderno, não é preguiça ou ignorância - é recusa. É recusa estóica em desfazer, desconstruir um mundo em que todos cabem, em que todos se aguentam, auto-sustentam.
É um contentamento com o que se tem no modo como se é, para não sofrer o sacrificar de pessoas, sentimentos, amigos, hábitos, coisas, que seriam consumidos se o tempo passasse alguma vez a porta de entrada.
São pura determinação em considerar cada “casa” como uma família, em que todos e o seu legado têm de ter o seu lugar e perdurar, e em que pouco importa o que poderia ser alcançado se o preço fosse a aniquilação e destruição. Não é uma questão de tradição, é uma questão de manutenção de um presente humanizado que não se quer mudar. Que se dane o lucro, a notoriedade, a liderança e o mercado. Viva antes o (querer) saber que amanhã será, de certeza, outro dia igual ao de hoje, e isso vai bastando.
Às dezoito horas fecham-se as portas, correm-se ferrolhos e fechaduras e outro dia nascerá, pelas nove horas da manhã.
Nas águas furtadas encontrei um mundo que nunca devia ter começado.
As águas furtadas são, dolorosamente, habitadas por espectros eremitas.
Velhice, isolamento, solidão, dor, pobreza, vulnerabilidade e incapacidade.
Teimosos em manterem-se vivos, encarcerados na decrépita assoalhada isolada sob a única lâmpada que alumia o seu ser extenuado da vida, em tristeza perpétua, com lágrimas de saudade, impotência, desesperança, que vertem no caldo do muito pouco que é a janta.
Vivem na quietude e no imobilismo próprios do limbo onde pairam, esforçam-se, e retomam os movimentos e acções humanas como formalidades indispensáveis para alimentar os sinais vitais da vida que carregam.
Tal é o isolamento, que as palavras proferidas em monólogo nem eco produzem, porque fogem e se perdem pelos rasgos das ausências, pelas frestas das janelas, ou pelos buracos do telhado que respondem aos suspiros e pensamentos com rajadas de vento e bátegas de água.
A ninguém importam, já nem a si próprios.
Cumprem o calvário da decadência funcional, mantendo todavia a dignidade e altivez dos vencidos da vida, mas não da alma.
Ostentam o título nobiliárquico de resistirem, de sobreviverem, de estarem e serem, em desafio à ordem das coisas que há muito ditou a sua consumação.
Todos os dias, em desafio à desgraça, olham o Sol e penduram nos beirais a roupa lavada, a corar, em sinal, em protesto de vida que afirmam provocatoriamente, sem porém saberem bem para quê.
Todavia, na verdade, apesar do heroísmo da resistência, são consumidos pela incompreensão, incredulidade sobre o que lhes sucedeu, sobre como e porquê deste destino de vida. A memória não lhes serve para recordar e confortar, mas para os confundir na tentativa de compreender o que se passou.
Têm medo de mais e maior abandono, temem que até o nada que têm lhes falte. O medo de perder o nada é o pior dos medos, é o pavor.
Desconfiança, desconfiança de tudo e de todos, até da morte, que julgam não querer levar a sua velhice, que a confunde com os já ceifados, e por isso vai esquecendo as águas furtadas da Baixa.
Levanto-me, perdi o ânimo.
Não há maior cego do que aquele que não quer ver.
Não há mais comovido do que aquele que não sabe o que há-de fazer…

ATM

7 comentários:

Anónimo disse...

Texto notável, parabéns! RF

Anónimo disse...

Cego não é, embora custe ver e saber o que relata sobre o "mundo que não devia ter começado"...
O que pode fazer, pergunta, em primeiro lugar já o fez, viu e sentiu...
depois talvez evitar que a situação se repita nos olhos, na cabeça, e no coração dos seus, mais velhos...

...não pode mudar O Mundo, mas pode mudar à sua volta, uma micro parte dele...

...talvez, identificando e perseguindo alguns valores desse "mundo que julgava ter acabado"...

...talvez, mas que sei eu? nada, de nada...

apenas sei que gostei de sentar consigo

Anónimo disse...

Cega eu fora e nem por isso deixaria de "ver" estes obsoletos prédios pombalinos bem como o seu precioso recheio - funcionários mangas de alpaca, idosos de olhos lacrimejantes e balconistas vendendo produtos que ninguém quer - tal é a clareza, a transparência, a excelência do seu texto. É sempre um prazer lê-lo.

DaLheGas disse...

E eis que se achega mais um inadiável, inalterável Natal.

Anónimo disse...

Extraordinário "Ensaio sobre a cegueira", na variante degenerativa que agora grassa pela Baixa de Lisboa.

Diz Saramago "Pior do que ser cego é ser o único que consegue ver" - sofres com essa cegueira porque és o único que a vês.

O Nobel dos Leitões vai para ti. E tenho a certeza que, chegado ao Paraíso, o próprio Nobel poderá corrigir a injustiça.

Abraço de parabéns

Pi e Miana

Anónimo disse...

E já que falamos de cegueira, dá uma vista de olhos ao meu próprio ensaio sobre o tema: http:\\quemvetv.blogs.iol.pt

Abraço.

Pi

Anónimo disse...

Mais importante do que se ver com os olhos é vêr-se com o coração. Amei.

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