28 outubro 2010

Deixa-me rir...

Estava tudo feito. Em cima da secretária branca, os papéis, as canetas, os clips, o agrafador, as prateleiras da correspondência registavam uma ordem completa. O relógio marcava 2:30 e já não havia mais nada para fazer. Isabel olhava para o relógio, para o écran mudo e azul do computador, para o telefone cor-de-burro-quando-foge, para a janela com vista para o jardim e amaldiçoava as horas que tinha pela frente. Não é fácil, pensava, estar sentada horas a fio fazendo nada, produzindo nada, dia após dia. O cérebro definha, a criatividade emperra, a energia estagna com esta falta de actividade!, pensava com os seus botões. Não admira o meu estado de cansaço quando daqui saio! Se a minha energia não flui…! Não raras vezes tinha pensado em deitar-se no chão e dormir uma boa soneca. Estava sozinha, porque não? Mas e se aparecia alguém de repente? Era melhor manter as aparências e parecer minimamente ocupada. Mas era duro. Sobretudo porque Isabel, não o parecendo, era dona duma intensa energia: pela calada, quase sem dar nas vistas, virava tudo do avesso, corrigia e resolvia os problemas seus e dos outros, avaliava, deitava fora, arrumava, organizava … e depois pronto! Ficava tudo feito! Acontecia-lhe sempre a mesma coisa. Era contratada pelas suas qualidades organizativas e depois de tudo organizado, o resultado era sempre o mesmo: o bom, velho tédio. Tinha pena que não compreendessem melhor o seu potencial, que não se apercebessem que podia dar muito mais à empresa. Mas como era muito tímida, feiota e algo brusca, era natural que não a quisessem pôr na linha da frente. Em contacto com os clientes, por exemplo. Para além disso, o seu breve e tórrido romance com o director financeiro tinham-na colocado nas bocas do mundo (ou melhor, da empresa) e em consequência disso tinha-se fechado sobre si própria, passando a ser crescentemente cautelosa e desconfiada. Dava-se vagamente com a recepcionista, uma mulher de 40 anos bem redondos e alegres que não primava pela inteligência. Porque Isabel era uma snob, uma snob intelectual. Para além de devoradora de livros (tinha uma preferência nítida pelos escritores russos), era sócia da Cinemateca e não lhe escapava um bom concerto na Gulbenkian. Em casa só ouvia música clássica e jazz. Os seus dois ou três amigos vinham ainda do tempo da faculdade. Tirara filosofia com notas altíssimas. Tinha sido a estrela do curso. Mas a sua aparência e falta de jeito em sociedade não lhe tinham granjeado grandes amigos nem simpatias pela vida fora. Muito menos facilidade em arranjar trabalho. Tivera de se virar para o que lhe aparecera: ser o braço direito de directores e administradores. E descobrira que para além de pensar, tinha muito jeito para simplificar, para tornar fácil o que os outros achavam difícil ou chato. Tornara-se, mais uma vez, uma estrela no que fazia. Uma estrela prática, não uma estrela teórica, intelectual, como gostaria, mas, mesmo assim, uma estrela. Com o passar dos anos e o aborrecimento causado pela repetição de tarefas, estava a ser-lhe crescentemente penoso o trabalho rotineiro, o lidar com a mediocridade e as chefias empertigadas. Sentia-se presa numa vida que não queria viver. Estava presa numa cápsula protegida, dourada, confortável, mas que pouco lhe dizia. Tirando o poder pagar-lhe as contas e a assinatura anual na Gulbenkian. Ultimamente entrara numa fase introspectiva e reavaliava-se continuamente. Mas continuava presa. Dentro e fora de si. Como se sai de dentro de nós, pensava Isabel, pela enésima vez? E desta vez, sem o esperar, olhando para o jardim de castanheiros centenários e vendo uma rapariga abraçar pelos ombros uma velhinha dobrada, depositando-lhe beijos repenicados na bochecha vincada pelos anos, Isabel acordou de um torpor prolongado. Apercebeu-se, numa fracção de segundos, numa espécie de intuição metafísica, de algo que lhe tinha vindo a escapar com os anos. Racional, intelectual, habituada a dar e a receber pouco amor, porque as suas escolhas de vida assim o tinham determinado, Isabel tinha-se alheado do âmago de si própria. Do seu coração. Do centro e fonte de todo o Bem. Como diziam os Gregos, Santo Agostinho e por aí fora, que tinha estudado há já muitos anos. Mas nessa altura tudo era diferente e esses conceitos não passavam disso mesmo, de conceitos para serem escrevinhados num teste qualquer ou em trabalhos de grupo. Mas agora, ao ver aquela ternura a derramar-se tão espontânea e verdadeira, Isabel comoveu-se. Comoveu-se até às lágrimas. E, num reflexo de auto-protecção, dobrou-se sobre si própria, qual caracol protegendo-se duma mão que o toca. Colou a testa aos joelhos e chorou, chorou desconsoladamente. Sentia que a sua alma era um tecido de fibras elásticas que estica, estica, estica, mas resiste, resiste, resiste. Ficou assim, imóvel, cabeça para baixo, durante muito tempo (dando graças a Deus, no meio do seu tumulto interior, por o escritório estar tão sossegado!). Passada a tempestade, Isabel soergueu-se. De olhos ainda piscos, limpou a cara esborratada de lágrimas e rimel castanho. E jurou, jurou para si própria, que os dias, anos que tinha pela frente, iriam ser diferentes.




Some say love it is a river
that drowns the tender reed
Some say love it is a razor
that leaves your soul to bleed
Some say love it is a hunger
an endless aching need
I say love it is a flower
and you it's only seed
It's the heart afraid of breaking
that never learns to dance
It's the dream afraid of waking that never takes the chance
It's the one who won't be taken
who cannot seem to give
and the soul afraid of dying that never learns to live
When the night has been too lonely
and the road has been too long
and you think that love is only
for the lucky and the strong
Just remember in the winter far beneath the bitter snows
lies the seed

PCP

4 comentários:

Philip disse...

Dear PCP, sounds like Isabel needs a change. If you want your life to change, you have to change something in your life. How much longer can she wait hoping for something to happen? Gerry Rafferty wrote a great song, THe Right Moment, which expresses just this:
http://www.youtube.com/watch?v=nC7U9UTv7Po
...Bette Midler is amazing. I saw her in around 1980 in a fantasic filmed concert The Divine Miss M - a great singer, a funny larger-than-life performer. Great to hear her again today! Thx, PO

Anónimo disse...

Absolutely! True about changes and true about Bette Midler. She is great, indeed. I love her personality. Will check Divine Miss M, for sure. Thanks a lot. pcp

marialemos disse...

C,
Gostei imenso do seu post: Bette Midler consegue transformar uma música 'lamechas' (a saccharine song) numa excelente música juntando quanto baste de humor e boa disposição 'embalada' (wrapped) numa perfomance de muito boa profissional. A nossa Isabel...pode não saber 'o como fazer' (the praticalities) de um universo que desconhece.
Mas por aquilo que me foi dado a entender está já a dizer - 'you just watch me baby'.

Anónimo disse...

Que comentário giro, ML! E que engraçado também gostar da Bette Midler. Pensei que não fosse uma artista do agrado da maioria, confesso. Bom, não que o PO e a ML sejam a maioria, evidentemente...não sei bem o que pensam os outros leitores. Eu gosto imenso dela. E acho-a uma força da natureza, uma mulher cheia de garra, boa disposição, atrevida, meio louca, bem na sua pele (ou assim parece). Isso é giro e vê-se na forma de estar no palco. Li uma vez uma entrevista dela e fiquei ainda a gostar mais. Thanks a lot. pcp

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