A premissa é semelhante à d’«A Vida dos Outros» (mas sem tanta profundidade) ao discorrer sobre a substância de fundo das pessoas e os limites do conhecimento humano, que se distrai infantilmente com as aparências, perdendo de vista o essencial. E paga caro essa incapacidade de se concentrar na realidade para tentar perscrutá-la até ao âmago. Genericamente, fica-se obnubilado pelo impacto imediatista do visível. Ou seja: até no processo cognoscitivo o facilitismo predomina.
«To be or not to be» é a dúvida que atravessa toda a trama. Quase nada do que parece, é. E logo nos escapa a dimensão mais rica e densa de uma personalidade. Um azar enorme, porque seria a faceta mais imperdível. Infelizmente, tende-se a tomar a pessoa pelo exterior e pelos pormenores básicos. Um handicap tão humilhante quanto prejudicial. Para máxima ironia, cada um de nós, no papel de observadores, está longe de poder considerar-se isento de culpas…
Resumindo: a imagem projectada tende a abafar a individualidade de cada um. Antes cair em graça do que ser engraçado é a perigosa bússola por que se guia uma certa superficialidade social, demasiado disseminada. Estamos ou continuamos em plena sociedade mediática, fixada em ícones vazios.
No epicentro de «O Turista» há uma perfect trip, perfect trap, que se pode transpor, parcialmente, para o nosso dia-a-dia. Experimentem adaptar os cenários…
A sobreposição de máscaras, típica da espionagem, é o leit motiv. A questão ontológica ali explorada (e q.b. invulgar) incide sobre a interferência da máscara na essência do mascarado, um dos temas fortes do realizador que, ao invés do politicamente correcto, não considera nada inócuo o exercício de representação. Claro que representação entendida em sentido profundo, pela maior ou menor verdade com que cada um escolhe (ou consegue) viver. À boleia, também parodia os métiers de actor e de espião (sob este prisma, equivalentes), a desdobrarem-se em múltiplas alteridades, i.e., em infindas identidades. Lança-nos na reflexão sobre: quem é quem ou quem se torna em quem?
No universo do filme, destaca-se uma personalidade maior, que preside a todo o enredo. Significativamente, será a pura máscara, embora funcione como presença desmaterializada, que se faz substituir por uma marca. No seu caso, por iniciais de peso: «A.P.» Sem me querer alargar em considerações sobre o poder da Palavra – desde Alpha e Ómega («No princípio era o Verbo…») até expoente do ser– vemos aqui retomada a tradição da melhor simbologia romanesca, associada a grandes figuras. Figuras que pairam como uma sombra sobre o real, dispensando a carnalidade a que a maioria está confinada. Figuras com direito a um símbolo (dígito ou simples monograma), que comporta mais presença que a dos seres de carne-e-osso. Ressurge a antiga dicotomia entre a fragilidade do visível e a omnipresença/omnipotência do invisível. E, como sempre, assistimos à subalternização da matéria, sujeita à falácia da aparência, altamente penalizada pela falta de fiabilidade na sua percepção. A literatura de todas as épocas dá voz à ameaça que impende, dramaticamente, sobre a condição humana desde que começou a povoar o planeta: «vêem, sem ver, e ouvem, sem ouvir nem compreender…», equivalentes a cegos com olhos.
Outro dos pontos fortes de von Donnersmarck é a exaltação da liberdade, entendida como um exercício de responsabilidade pessoal, com óbvias consequências. Muito alemão, diria. Valoriza inclusive o efeito dos pequenos gestos, das escolhas mais ínfimas. Porque na vida nada é virtual, ainda que imperceptível. Tudo se repercute, ainda que através de ecos microscópicos. Tudo tem um preço, ainda que o mercado não o saiba reconhecer logo. Note-se que isto em nada coarta a liberdade individual, antes responsabiliza o indivíduo. Como o realizador não concebe determinismos, também não há desculpas para a passividade, enquanto cedência ao irrealismo inconsequente, misto de cobardia e mimalhice. Por isso, exploram-se as brechas para alterações de rumo, num jogo insaciável de mascarar (representar) para desmarcar. Naturalmente que a instrumentalização do próximo está na ordem do dia: «You're a part of a plan» (desabafo de Elise com Frank) podia ser o estribilho das falas de quase todas as personagens. Nova reflexão: será que alguém consegue valer por si?
O olhar europeu de von Donnersmarck impregna o sentido de humor do filme. Os holofotes sobre pormenores de nacionalidade lembram as típicas anedotas que parodiam as diversidades do velho Continente: cruzaram-se um italiano, um francês, um inglês… É nesta componente de comédia lúcida que se perfilam as personagens-protótipos, a contracenar com as mais densas (refiro-me às que nunca são totalmente conhecidas, sempre resguardando um certo mistério… o da sua individualidade intocável). Os momentos anedóticos sucedem-se:
A reacção explosiva e subjectivista de um guarda veneziano, provocada por um incidente menor que o tirou do seu conforto, é um exagero só concebível num italiano. Permitia-se exigir nada menos que a prisão perpétua para um… azelha.
A atitude muito apreciadora delle donne claro que atravessa transversalmente (também descarada e comicamente) toda a sociedade italiana, do staff do hotel de luxo à super-esquadra, passando pelos gondeleiros ou os VIP dos bailes mais selectos de Veneza. Escusado será dizer que Elise (Angeline) não tinha forma de passar despercebida em nenhuma das inúmeras capas que foi acumulando. Só talvez se se tivesse escondido numa burka 100% opaca.
O charme criativo, esfusiante e cheio de humor do staff do Danieli dá razão a Asterix: «Estes romanos (italianos) são loucos.», na sua imperturbável atitude dolce vita. Sendo que tudo ali é sofisticado e milenar. Não há uma chave, por exemplo, que não seja artística, festiva. Assim era a da suite onde ficaram hospedados, de borla bojuda em tom cardinalício, a condizer com a antiguidade do palacete marcado pela patine (e algum desconforto) dos séculos de civilização que a Europa pode e adora exibir.
O esteticismo francês, a que nem as unidades de elite, em missão especial, são alheias, revela a Gália no seu melhor.
O zelo hiper pragmático e sóbrio da Scotland Yard (à parte do agente emocionalmente envolvido no processo, ou do mafioso brutalizado pela má vida a que se entregou) confirma a fleuma britânica, inquebrantável.
A ferocidade dos bodyguards russos evoca a grandeza fulgurante e algo cruel da história de um povo muito dado a excessos, mas com forte sentido hierárquico – atributos ideais para os exércitos da mafia.
A descontracção informal, até ao desleixo, do turista é também uma imagem de marca dos americanos. Pelo menos, observados do lado de cá do Atlântico. Igual ao seu típico voluntarismo. Ou a sua enorme auto-estima, demasiado espontânea e desalinhada com a conduta bastante codificada da velha Europa.
Passando a outros turistas: pela mira do fotógrafo português, Eduardo Gageiro, desfilam figuras conhecidas dos anos 50 e 60. A colecção de imagens a preto-e-branco, artisticamente captadas, inclui: Amália, Sophia, Orson Welles, Nureyev, Grace Kelly, Vieira da Silva e Arpad Szenes, etc. É uma boa oportunidade para revisitar a história:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Remake do filme de 2005, com Sophie Marceau, «ANTHONY ZIMMER», sobre a manipulação de um turista pela Interpol, onde domina a imprevisibilidade.