Até 25 de Junho, a grande
escritora de origem judia, russo-ucraniana, naturalizada brasileira – Clarice
Lispector – é tema de exposição na Gulbenkian(1), adoptando
o mesmo título da sua obra mais conhecida e tardia: «A Hora da Estrela».
Num conjunto de frases interpelativas,
tiradas de vários dos seus livros, as paredes e as mesas do espaço expositivo,
junto ao átrio da biblioteca, mostram o pensamento literário de quase 57 anos
de vida, entre 1920 (num povoado ucraniano) e 9 de Dezembro de 1977 (no Rio de
Janeiro, na véspera dos seus anos). Às citações de Clarice juntam-se
fotografias, facsímiles, cartas da escritora e dos amigos, vários deles também
escritores, como Erico Veríssimo~, Drumond de Andrade e tantos outros. Numa
antecâmara escura, ao fundo, passa em looping uma entrevista que concedeu nos
finais da sua intensa vida, onde atravessou muitas geografias. Uma amiga escritora
brasileira – Nelida Piñon – definiu-a lapidarmente: «(No) rosto de Clarice
convergiam aquelas peregrinas etnias que venceram séculos, cruzaram Oriente e
Europa, até que ancoraram no litoral brasileiro, onde veio ela afinal tecer ao
mesmo tempo o ninho da sua pátria e o império da sua linguagem. (…) Estava
nela, sim, estampada a difícil trajectória da nossa humanidade, …» (p. 62 do
Catálogo da mostra).
Oriunda de uma zona
remota da Ucrânia, fugiu com a família à primeira vaga de perseguições aos
judeus pós Revolução bolchevique, de que pouco ou nada se fala. O primeiro
porto de abrigo foi Hamburgo, de onde a família Lispector rumou até ao Brasil
(1922), para se instalar em Pernambuco, vivendo com enormes privações. Orfã de
mãe aos 10 anos e de pai aos 20, Clarice completou os estudo com a leitura dos
clássicos na biblioteca regional, onde se familiarizou com Dostoievski, Proust,
Jorge Amado, Herman Hesse, Eça de Queiroz ou Machado de Assis.
Curiosamente, numa carta
espantosa que, aos 21 anos, dirigiu a Getúlio Vargas, a pedir a obtenção da
cidadania brasileira, autodefine-se como russa, sem se deter no rigor
geográfico de ter nascido num local situado na Ucrânia.
No curso de Direito
conheceu o marido, que veio a ser diplomata e a fez percorrer diferentes
países, entre Itália (1944), Suíça, Inglaterra e EUA. Em 1959, divorcia-se e
instala-se, definitivamente, no Rio, onde traduz, faz reportagens e edita
livros e contos, em contínuo. Inúmeras vicissitudes tornaram a sua vida marcada
pelo sofrimento: desde a extrema carência na infância, ao incêndio provocado
por adormecer com um cigarro aceso quando já vivia sozinha no Rio, que lhe
deixa marcas nas mãos e em várias partes do corpo, a esquizofrenia de um dos
filhos, que precisou de ter internamentos, etc. Nem ao ataque do seu cão
Ulisses foi poupada, sendo obrigada a submeter-se a uma cirurgia plástica à
cara. Sobretudo, a sua atitude reflexiva e inquieta, com um olhar bem pessoal
sobre tudo o que a rodeia, denuncia uma personalidade atormentada e envolta em
grande solidão interior, apesar da animação social e dos inúmeros amigos que a
acarinham.
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Com o marido, Maury Gurgel Valente, Apolonio de Carvalho,
Samuel Wainer e Daniel, cunhado de Apolonio. Paris, 1946.
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Fazendo jus às suas
raízes judaicas, pensa, escreve e pinta (nos dois últimos anos de vida) out of the box, com notável coragem, sem
se furtar à constante auto-avaliação. A frontalidade algo áspera é das suas
imagens de marca. Por exemplo, quando o entrevistador a interpela por ser
popular entre os universitários, responde, sem rodeios, que a sua obra é de estudo
obrigatório nos meios académicos! Percebe-se que isto não a honra, de tal modo é
avessa a obrigatoriedades, mais ainda em terrenos onde aprecia o exercício da
liberdade pessoal, como na escolha das leituras.
Exprimindo-se num estilo
cristalino, maximamente depurado, com um mínimo de truques, privilegia a simplicidade
na comunicação. Também na entrevista, as respostas são directas e sumárias, sem
se alongar para além do estritamente necessário, como diz a dada altura: (quero)
falar o menos possível. Tudo reduzido
ao essencial, no osso. Nem sequer tem a preocupação de se explicar ou de
defender posições. Prefere partilhar as dúvidas que a percorrem, a ensaiar
respostas simplistas para as grandes questões da vida, num exercício que leva ao
extremo. São suas as frases: «Sinto que sou muito mais completa quando não
entendo» ou «O que parece a falta de sentido é o sentido» ou ainda «Não quero
ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível de fazer
sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.» Questiona tudo! Até doer! Também
nesta exploração quase obsessiva e profunda, crivada de combatividade e
desconforto psicológico, revela o seu legado judeu.
Não se pense que seria
pouco afectiva. Bem ao contrário. Nas cartas ao filho mais velho, que foi
estudar para os EUA (1969), remata com imensa ternura: (dactilografado) «Deus
te proteja e te guie, meu filho adorado. De sua mãe que o quer cada vez mais,»
(manuscrito, como assinatura): «mamãe». Na lista de afazeres agendados para o
dia mistura alíneas como: «2.luvas, … 5.ginástica, 6. Você magnética, 7.
Morangos pessoa de idade, (…) 9.dar paz ao rosto».
O seu aguçado sentido de justiça fá-la
correr sempre em defesa dos mais pobres, procurando dar-lhes voz. Na
entrevista, desabafa que escreveu vários contos sem perceber como. Logo
exemplifica com um, inspirado na morte de um criminoso brasileiro, baleado pela
polícia com 13 disparos. Explica-nos a sua revolta: Qualquer que fosse o crime, uma bala bastava para matar o mineirinho (alcunha
do cadastrado). Mais que uma bala é
vontade de matar por matar! A primeira bala eu percebo, a segunda me questiona,
a 12ª me atinge, a 13ª sou eu, partilhando a condição desprotegida do alvo
de tanta carnificina perpetrada pelas forças de autoridade. Não por acaso, auto-descrevia-se
assim: «Um nome para o que eu sou,
importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser. O que eu gostaria de ser
era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso
desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já
escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu
tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos
animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa
que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É
pouco, é muito pouco.»
Ler e escrever foram duas
aprendizagens simultâneas, segundo nos conta, tendo uma peça escrita aos 10
anos de idade, intitulada «Pobre menina rica», e vários outros textos, desde os
7 anos.
Experimentalista e invadida por catadupas
de interrogações, que a parecem assaltar a cada momento, vagueou por variados modus vivendi, algo à deriva, até se
aventurar nos expedientes mais
populares (e hiper disseminados pelo Brasil do candomblé) da cartomancia e até
da bruxaria, num sub-continente onde coabitam religiões (cristã e de outros
credos) com superstições ancestrais de sabor africano e dos índios da Terra de
Vera Cruz. Mas tudo isto a par de uma certeza profunda do divino: «A consciência de minha permanente queda me leva
ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. (…) Não sei o
que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no
nada.»
Enquanto não correm até à
Gulbenkian, onde se recomenda o próprio catálogo da exposição, com testemunhos
bem interessantes de quantos se cruzaram com Clarice (ex: Caetano Veloso, Nelida
Piñon), nada melhor para conhecer quem escreve do que passar-lhe a palavra:
o
«A arte,
imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.»
o
«O que
atrapalhar ao escrever é ter de usar palavras.» (in Água Viva)
o
«(…)
Escrevendo, pelo menos, eu pertencia um pouco mais a mim mesma.» (in À Descoberta do
Mundo)
o
«Ver é a
pura loucura do corpo.» (in Água Viva)
o
«… a respiração
contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.»
o
«A
realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e não a
acho.» (in A Paixão Segundo G.H.)
o
«Alegria
de encontrar na figura exterior (reflectida no espelho) ecos da figura interna.
Ah, então, é verdade não me enganei, eu existo.» (in À Descoberta
do Mundo)
o
«Com
perdão da palavra sou um mistério para mim.» (in À Descoberta
do Mundo)
o
«Quero
escrever-te como quem aprende. Fotógrafo (de) cada instante.» (in Água Viva)
o «Mas
tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre
ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à
desorientação.»
o «Passei a
vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.»
o «Porque
eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as
compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama
verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.»
o «Minha
força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias
soltas, pois eu também sou o escuro da noite.»
o «Que
ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.»
o
«Há três coisas para as quais eu nasci e para as
quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e
nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até
perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que
minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso
perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação
individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber
amor em troca [...]»
o
(Declaração de amor
à língua portuguesa, na abertura da exposição) «Esta é uma confissão de
amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi
profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter subtilezas
e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente
ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A
língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para
quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de
superficialismo. (…) Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que
não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega. (…) Eu até queria
não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português
fosse virgem e límpida.» (in À Descoberta do Mundo)
o
«Criar
não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.» (in A Paixão
Segundo G.H.)
o
«Liberdade é pouco.
O que eu desejo ainda não tem nome.» (in Perto do Coração Selvagem)
Os dias à beira-mar, que
aí vêm, convidam a ler. Clarice Lispector, no seu estilo incisivo e sincero, é
uma boa opção, apesar de pairar sobre os seus escritos uma certa mágoa e angústia
funda, que brotam de uma alma agitada, sem paz, apostada numa busca intrépida que
nos ajuda a repensar tudo, a começar pelo dom da vida, magistralmente abordado
pela escritora: «Meu cão me ensina a viver. Ele só fica ‘sendo’. (…) E ser é a
minha mais profunda intimidade.» (in Um Sopro de Vida); «E descobri que não tenho um dia-a-dia. É uma
vida-a-vida. E que a vida é sobrenatural.»
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1) http://www.gulbenkian.pt/object160article_id4117langId1.html.
De 5 abr 2013 a
23 jun 2013 | 10:00 - 18:00 | Encerra às segundas,
junto ao átrio da biblioteca – na Galeria de exposições temporárias do Museu
Gulbenkian.