01 julho 2013

Vai um gin do Peter's?

O filme-documentário sobre o rocker dos anos 70, Sixto Rodriguez, é um must, passando despercebido com um título pouco convidativo: «À PROCURA DE SUGAR MAN»(1). Traduzido directamente do inglês, centra-se na investigação jornalística motivada, antes de mais, pela estranha acumulação de incógnitas sobre a vida de um músico, o que é um verdadeiro contra-senso no mundo do espectáculo, onde os artistas costumam ser escrutinados ao segundo. Porque faz parte do culto de personalidade, que também ajuda a vender discos.
Numa segunda fase, perpassa na película a crescente admiração perante aquele homem único! A roçar o indizível. Aliás, nas entrevistas gravadas, os silêncios mansos de Rodriguez ainda impressionam mais do que o seu discurso telegráfico e muito depurado.



A história invulgar do talentoso artista que, só por acaso (se houver acasos…), acabou por ser relançado e reconhecido em vida, quando menos esperava, está longe de esgotar o mérito do filme, que nos desvenda um ser humano colossal! Sim, um coração grandioso e cheio de sabedoria, um filósofo simples, um poeta maior, na senda raríssima dos génios humildes. Significativamente, um dos promotores discográficos, inquirido três décadas mais tarde, recorda os contactos com Sixto, no final da década de 60: o sexto filho de imigrantes mexicanos, com ar de sem-abrigo, combinava encontros em esquinas de ruas, aparecendo do nada, à hora marcada. O primeiro embate aconteceu numa noite enevoada, onde os promotores o foram ouvir num bar igualmente envolto em nevoeiro, provocado pelo fumo espesso do tabaco. Quando descortinaram um vulto escuro com chapéu de abas, de onde vinha uma toada linda, nem queriam acreditar que tocava de costas para o público, escondido no canto da sala. Dir-se-ia empenhado em ser apenas uma presença musical, um som em estado puro… como profeticamente acabou por ser, fazendo furor em África e na Oceânia, apenas através das suas baladas lindas, inspiradoras da revolução anti-apartheid entre os afrikanders.   

É um facto que estou a começar pelo fim. Simplesmente, é tão assombroso cruzarmo-nos com pessoas deste calibre, que não dá para correr o risco de perder o melhor. Seria equivalente a falar de montanhismo sem começar pelos Himalayas.

Os repórteres e os empresários da música pop, que se cruzaram com ele nos idos anos 70 e aqui testemunham, 25 a 30 anos depois, confirmam-no à exaustão, de tal forma Rodriguez falha em toda a linha o padrão típico das super stars. Inacreditável, como assume um dos jornalistas. No início, fica a dúvida se não será uma pose estudadíssima e astuta, apostada na máxima originalidade. Mas rapidamente se percebe que o músico-poeta está muito para lá dos que conseguem ter ideias e disparar respostas out of the box. Sixto vive, fala e sente num registo tão profundo e, simultaneamente, tão simples, que não caberia em nenhuma box, rasgando os limites comuns. Apetece aplicar-lhe aquele dito hábil de um Embaixador brasileiro sobre o seu país: «As pessoas lhe dizem: O Brasil está à beira do abismo! Depois, você olha pró abismo e o Brasil não cabe» (Vernon Walters, em conversa com o Embaixador português José Cutileiro, que o cita). Também para Rodriguez são demasiado curtos os perfis conhecidos. 

A dada altura do filme, vemos uma manchete muito expressiva a apresentá-lo como «In America zero in South Africa hero»! Eloquente a dar voz à mentalidade reinante, fixada no êxito, mas inadequado para retratar Sixto, que se mantém igual a si próprio (provavelmente, desde que nasceu), sem se deixar definir por sucessos ou insucessos! A serenidade em palco é a que mostra em casa, ou no anonimato das avenidas cinzentas de Detroit, ou nas suites dos hotéis de cinco estrelas. Não são as aclamações, nem os reveses, nem os índices de popularidade, que o movem.



Impressiona (a nós!) que continue tão confiante e firme, depois de tudo o que lhe aconteceu, numa existência sulcada pelo aparente fracasso humano. Pobreza, desafios falhados e sonhos desfeitos – em novo, na música; mais tarde, na política – parecem resumir a trama da sua vida, onde irrompem breves surtos bem-sucedidos, como os concertos esgotados em estádios de futebol… numa segunda fase da vida, já na idade da reforma. Nenhuma circunstância – boa ou má – lhe altera o semblante, sempre paciente e seguro, modesto e levemente iluminado por um sorriso suave, que só os simples – na acepção mais plena da humanidade – atingem. Essa sim, uma proeza ao alcance de pouquíssimos!

O seu colega de trabalho, nas obras, di-lo muito bem, salientando igualmente outro traço incrível de Rodriguez – a sua capacidade de tornar belo toda a realidade de betume e marginalidade que o rodeia. No fundo, corporiza a grande conclusão de Dostoievski: A beleza salvará o mundo. Pelo menos, o coração do próprio…
Citando o tal colega, Rick Emmerson: « He had this kind of magical quality that all the genuine poets and artists have: to elevate things. To get above the mundane, the prosaic. All the bullshit. All the mediocrity that's everywhere. The artist, the artist is the pioneer.
What he's demonstrated, very clearly, is that you have a choice. He took all that torment, all that agony, all that confusion and pain, and he transformed it into something beautiful. He's like the silkworm, you know? You take this raw material, and you transform it. You come out with something that wasn't there before. Something beautiful. Something perhaps transcendent. Something perhaps eternal. Insofar as he does that, I think he's representative of the human spirit, of what's possible. That you have a choice.»

Pegando neste desabafo, o realizador – que sintetiza esta produção como the amazing story of Rodriguez – lança-nos o desafio: "And this has been my choice, to give you Sugar Man (o documentário)". Now, have you done that? Ask yourself


Semeou o Belo na aridez do betão…


…E despertou as consciências para as lutas mais solidárias.

Ao recordá-lo, o grande mentor da Motown Records e outros produtores dos anos 70, tecem-lhe os maiores elogios, enaltecendo o conteúdo das suas músicas, com letras lapidares. Clarence Avant não hesita em colocá-lo no top ten dos génios que conheceu, à frente de Bob Dylan, para apenas citar um dos mais badalados ali referidos. Os próprios títulos dos álbuns e das árias dão uma ideia do seu estilo arrebatador. Títulos de discos: Cold Fact (1970); Coming From Reality (1971); After the Fact (1976). De músicas: I wonder; Only good for Conversation; Crucify your mind; This Is Not a Song, It's an Outburst: Or, the Establishment Blues; Inner City Blues.


Todos consideram inexplicável o motivo por que Rodriguez não tem a carreira meteórica para que parecia fadado, nos anos 70. Limitam-se a registar este cold fact. Também nisso, a sua história é misteriosa. Apenas a música conta e ele procura ser um fiel porta-voz do som, sem fazer pesar a sua personalidade, biografia, fait-divers e todo o folclore que faz pairar uma aura especial em torno das pop-star. Inclusive o sucesso clandestino e incrivelmente exuberante entre a juventude afrikander, cansada do apartheid, entra no mistério bem narrado no filme, não calhando estragar o suspense...

A própria génese do documentário é algo misteriosa, partindo do iPhone de um realizador sueco de 35 anos (Malik Benjelloul) que, em 2006, descobriu na Cidade do Cabo, o caso de um músico norte-americano mítico na África do Sul e desconhecido no seu país natal. Sem financiamentos, lança-se na rodagem do filme, percorrendo várias épocas e diferentes continentes, no afã de montar um puzzle singular, que lembra o talento escondido de Rodriguez, com uma existência em constante lusco-fusco. À falta de imagens de arquivo, Benjelloul completa os cenários com gravuras e aguarelas muito expressivas, que dão um fio condutor à narrativa. 

Quando, nesta mega-investigação do século XXI, os repórteres o procuram e esbarram com as filhas, volta a impressionar o testemunho que dão sobre a figura tão rica, interiormente, de um pai empenhado em proporcionar-lhes uma educação artística de primeira água, embora fossem muito pobres. Frequentavam museus, exposições, concertos, habituando-as a uma actividade cultural intensa que, segundo comentava uma das filhas, comovida, era completamente atípico numa família sem recursos. Faz todo o sentido que, a dada altura da vida, tenha intercalado o árduo dia-a-dia nas obras com aulas de filosofia, na universidade.

O seu dom para desencantar beleza na paisagem descaracterizada e feia de Detroit acabou por ecoar além-fronteiras, despoletando (sem o saber, na altura) uma onda de indignação, que recorreu à força espantosa da sua música para lutar contra a realidade dolorosa e feiíssima do apartheid. A ponto de fazer história na sua erradicação, confirmando o impacto surpreendente da sua obra artística, capaz de produzir efeito a milhares de kms de distância e sem outra presença para além do vinyl! Nisso, Sixto seguiu a sua vocação e pelo som puro foi despertando boas-vontades e instigando uma revolução de mentalidades crucial. Vidas assim superam as melhores ficções.

Dificilmente se encontra beleza comparável à que emerge do coração humano. Sixto Rodriguez sugere-nos o caminho…

Excerto do programa televisivo The Jeffprobbs Show:



Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
SEARCHING FOR SUGAR MAN
Título traduzido em Portugal:
À PROCURA DE SUGAR MAN
Realização:
Argumento:
Co-Produção:
Red Box Films, Passion Pictures, Canfield Pictures
Produtores:
Dennis Coffey, Mike Theodore
Banda Sonora:
Sixto Rodriguez
Duração:
86 min.
Ano:      
2012
País:
Suécia, Reino Unido

        Elenco:

Os próprios, incluindo Sixto Rodriguez em diferentes épocas,  os investigadores: Stephen 'Sugar' Segerman, Dennis Coffey, Mike Theodore, etc.
Local das filmagens:

EUA: Detroit, África do Sul (Cape Town, etc.), Inglaterra

Site oficial:
http://sugarman.org

 

                             Premiado com Óscar e BAFTA

 (2) LETRAS das músicas: http://sugarman.org/coldlyrics.html#i, seguindo a mais conhecida:

I WONDER 

I wonder how many times you've been had
And I wonder how many plans have gone bad
I wonder how many times you had sex
And I wonder do you know who'll be next 


I wonder I wonder wonder I do 


I wonder about the love you can't find
And I wonder about the loneliness that's mine
I wonder how much going have you got
And I wonder about your friends that are not 


I wonder I wonder wonder I do 


I wonder about the tears in children's eyes 
And I wonder about the soldier that dies
I wonder will this hatred ever end
I wonder and worry my friend


I wonder I wonder wonder don't you? 


I wonder how many times you been had 
And I wonder how many dreams have gone bad
I wonder how many times you had sex
And I wonder do you know who'll be next 


I wonder I wonder wonder I do




2 comentários:

Anónimo disse...

Concordo inteiramente. Dos bons - e inspiradores - filmes que tenho visto nos últimos tempos. Bjs pcp

Anónimo disse...

Quando a câmara "apanha" uma pessoa como Sixto, torna-se mais fácil transcender a mediania e produzir um filme lindo. Bjs, MZ

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