O documentário sobre o domínio
dos Khmer Rouge era um dos favoritos ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro deste
ano. A realização ousada e interpelativa, assinada por um documentarista cambojano
– Rithy Panh – insinua no próprio título o traço mais diferenciador de Pol Pot
relativamente aos muitos tiranetes de que há memória: «A IMAGEM QUE FALTA»(1). De facto, é gritante a ausência de registos
do grande líder, pouco dado ao tipo de egocentrismo exibicionista que sobressai
no comportamento dos ditadores. Possivelmente, por ter a noção do mal
infligido, soube apagar os vestígios da responsabilidade que teve no genocídio
monstruoso cometido sob a sua batuta. Em múltiplos aspectos, Pol Pot é único,
resultando mais desumano por ser incompreensível para os padrões humanos,
inclusive os malignos.
|
Pol Pot
numa das poucas fotografias
|
Gozando da autoridade de provir
de uma vítima directa dos Khmer Rouge, a película procura conferir imagem ao
texto incisivo que corre em
off, onde assenta o húmus do filme. Digladia-se aqui palavra contra palavra,
numa guerra aberta entre pontos de vista do passado. De um lado, um porta-voz
da população aterrorizada, do outro, a máquina de propaganda do Partido, que
produziu as pouquíssimas peças documentais alusivas ao período em que dominaram
o Camboja, de 17 de Abril de 1975 a Janeiro de 1979.
O simples facto de adoptar
um formato documental, sem a presença de actores, confirma a intenção explícita
de se aproximar do registo histórico possível, defrontando-se com o vazio de informação
de época, à parte do testemunho de um sobrevivente. Um desafio homérico, onde
se procura fazer luz sobre aquele período, praticamente indocumentado, após a hábil
erradicação da sua memória. Porque os algozes tiveram a noção de que era
imperioso não deixar rasto, somando mais um crime.
Os breves momentos de
presenças humanas cingem-se a excertos de filmes de propaganda explícita – com cenas
bucólicas de multidões na azáfama da lavoura, escoltadas por crianças com os
célebres lenços aos quadrados brancos e encarnados, que destoam das
estatísticas da mortandade de um povo, em tempo recorde: 2 milhões de mortos em
4 anos.
|
O documentário dentro do documentário
|
Para colmatar a falta de rostos,
Panh avança com uma multidão de bonecos de barro, moldados na massa dos seres
humanos, segundo o Génesis, que ilustram as situações descritas – daquelas
incómodas para (seriam sempre censuradas por) um regime que se auto-proclamou expressão
acabada da felicidade universal. Muito ilustrativo enquanto reconstituição daqueles
anos, a partir de um olhar pessoal, de modo ostensivamente simbólico e
simplificado. Conforme observou o crítico de
cinema João Lopes, no Festival de Cannes: «raras
vezes se terá visto um filme que, através de matérias tão candidamente
artificiosas, consiga gerar um tão intenso e perturbante efeito de verdade.»
|
Segundo o realizador: «(Foi) um
homicídio em massa que não deixou imagens. Eu estava à procura da ‘imagem que
falta’. No entanto, ela existe sobretudo na minha cabeça. Pedi a um escultor
para me fazer um pequeno homem utilizando a terra como material. Quando vi
nascer aquela personagem a partir do barro soube que essa ‘imagem que falta’
estava ali. Foi surgindo o universo terrível desses anos. Fiquei perturbado ao
ver a vida brotar da mesma terra onde repousam os mortos.»
|
O barro modelado é o que
resta a Panh para desmontar a máquina propagandística de Pol Pot, numa contra-ofensiva
para a batalha conceptual onde se esgrimem os conceitos através dos quais captamos
e atribuímos significado ao que nos rodeia, uma vez que são cruciais para a
nossa relação com a verdade, conforme alertava Gandhi, George Orwell e tantos
outros. A guerra de mentalidades é, afinal, a prioridade das militâncias
ideológicas de qualquer totalitarismo, pois a percepção da realidade não pode
continuar a ser um acto espontâneo e individual, devendo antes conformar-se ao
modelo pré-definido pelas autoridades. Prescrevem-se novos critérios de leitura
dos factos, acreditando-se ser possível forjar a verdade pela força das armas. A fronteira entre noções antónimas –
como facto versus fantasia, verdade versus mentira – esbatem-se, até porque se
esvaziam de sentido. Tudo fica raso, como se a humanidade tivesse acabado de
despontar no planeta. Para o cumprimento de tal sonho e segundo o relato de um
sobrevivente, assiste-se à reeducação do povo, recuando-se a um estádio
civilizacional considerado mais puro, exclusivamente rural. Traduzido para o
concreto: significou que uma população de 6 milhões se viu reduzida a uma
inteligência, uma vontade, uma memória e um discurso autorizado – o do líder. Aliás,
o ano de tomada do poder, em 1975, é rebaptizado Ano Zero, supondo-se que o chefe
podia pontificar sobre o tempo e reinventar a história.
Por arrasto, entra-se
numa cruzada de despersonalização do indivíduo, a fim de domar e uniformizar a colectividade. Urge reduzir todos a peças da
mega-engrenagem do poder. O efeito colateral é a robotização do ser humano, instrumentalizado
pelo poder. Exige-se obediência cega. Pensar torna-se um luxo perigoso, pois
qualquer desvio ao ideário do chefe equivale a sabotagem. Naturalmente que a
diversidade individual se torna um escolho quando se visa funcionar em
uníssono, resvalando-se para áreas que violentam a identidade humana, no espaço
único da sua especificidade, de que as impressões digitais são a expressão mais
ínfima.
No estilo híbrido do
filme, a palavra ocupa o primeiro-plano, ora fluindo em mensagens semelhantes a
trechos de um diário sobre o dia-a-dia de um povo escravizado, ora dissertando poeticamente
sobre a ideologia fundacional do regime, em denúncia frontal do que afirma
terem sido anos de inferno para a esmagadora maioria. Cabe à imagem
complementar o conteúdo verbal. Uma originalidade também explicável pela subtileza
deste povo e pela educação francófona dos cambojanos, ex-parcela da Indochina.
Revela-se uma obra algo bizarra
«A IMAGEM QUE FALTA», no seu afã de dar substância a uma perspectiva individual,
que contraria a versão dos Khmer Rouge. Mas quando as provas escasseiam e as
poucas que restam desmentem afrontosamente os dados estatísticos, mais tarde
reconhecidos internacionalmente, o que sobra para mostrar? Como ser credível? Como
superar o buraco negro nos arquivos de época?
Como ir além do depoimento
singular para se ser legítimo porta-voz dos milhões de sacrificados?
Como evitar a tentação de
facciosismo (agora, de sinal contrário), de visão unilateral da história, nesta
frágil guerra entre pontos de vista?
Talvez os poucos dados
conhecidos daquele período reforcem as críticas das vítimas:
- O
facto de a guarda de elite ter sido confiada a crianças e adolescentes,
joguetes fáceis de autoridades sanguinárias, revelou-se uma opção especialmente
perversa, pois a imaturidade dos soldados menores favoreceu os níveis de sadismo
indizíveis usados contra a população indiscriminadamente, familiares incluídos.
Note-se que a generalidade dos regimes
comunistas incentivou os filhos a serem os delatores dos pais e irmãos, visando
aniquilar a célula afectiva mais estruturante do ser humano na sociedade – a
família.
|
Por ordem do líder, as crianças eram
treinadas em jogos macabros
para se habituarem a torturar e a matar com
a máxima barbárie.
Nas valas comuns, muitos foram enterrados
vivos, depois de espancados com objectos rudimentares: foices, martelos, garfos,
facas grossas, alicates, serrotes toscos, tacos de ferro, etc. Ainda hoje, as
paredes da célebre prisão de Phnom Penh «S-21», montada no edifício de uma
escola, continua com manchas de sangue, do chão ao tecto.
|
- O
massacre da população atingiu cifras obscenas. A vaga de fome evitável tornou o
regime difícil de tolerável no seio da comunidade internacional.
- O
êxodo forçado das cidades para o campo, deixando um rasto de morte e devastação
nos pólos urbanos, geraram indignação mesmo noutros países de matriz maoísta e
soviética, q.b. indignados com o calibre da desumanização gratuita perpetrada
por Pol Pot, que nutria um ódio de estimação pelos vietnamitas.
Cansado das escaramuças nas fronteiras, no
final de 1978, o Vietname de Ho Chi Minh iniciou a invasão do seu vizinho
comunista, aliviando o terror instaurado pelos Khmer Rouge. A ponto de o
invasor estrangeiro ter sido aclamado publicamente pelo povo cambojano, como
libertador.
- A
desindustrialização acelerada da sociedade, destruição da moeda e das escolas,
expropriações e eliminação da propriedade privada para forçar o retorno a um
estádio alegadamente puro, tomou proporções dantescas. Assassínios em massa dos
instruídos (reconheciam-nos pelo bom estado das mãos, poupadas aos calos do
trabalho manual), para além de todos os que são sempre diabolizados pelas ditaduras
–opositores políticos, marginais, improdutivos
como os idosos, doentes e outras minorias mais alternativas – juncaram os
campos de sangue inocente. A partir de 1978, a perseguição virou-se também contra
os sequazes do regime, viciados em purgas homicidas.
Nunca uma prisão tinha assumido as dimensões
de um país inteiro, embora a vastidão territorial de uma Rússia ou de uma China
não permitam um sequestro totalitarista tão bem orquestrado como o que vitimou o
Camboja.
- O encerramento
do país a todos os observadores e organizações externas isolou-o em excesso,
suscitando suspeitas de tiques sadomasoquistas e demenciais no regime. Temendo
o pior pela população indefesa, o mundo aplaudiu a ingerência directa do
Vietname, destituindo Pol Pot.
Dados adicionais sobre este
ditador: a acrescentar às inúmeras facetas estranhas da voz de comando dos Khmer
Rouge, sobreviveu mais 2 décadas depois de ter sido deposto, refugiando-se no
Norte, onde se entreteve em agitações guerrilheiras, secundado pelo grupúsculo
revolucionário que formou. Chegou a ser levado a julgamento pelos ex-seguidores,
mas consideraram haver falta de provas irrefutáveis para o culparem pela chacina
de um terço da população, nos anos 70. Acabou por ser condenado como Inimigo Público, morrendo de morte
natural a 15 de Abril de 1998. Nos antípodas dos tiranos comuns, geriu com
mestria uma forma encapotada de culto de personalidade, não permitindo que a
sua assinatura figurasse em quase nada (não por falta de estudos ou algum
assomo de humildade; recorde-se que era filho de um grande agricultor e frequentara
a universidade, em Paris!), além de escassearem as imagens. A obsessão em dissimular
a sua participação activa nos 4 anos de totalitarismo extremo, deixam-nos o
desconforto de que nunca terá estado iludido sobre a bondade da sua doutrina, apesar
de a ter mandado aplicar à risca. Desengane-se quem o achasse motivado por um
idealismo irrealista. Enigmático, ter querido mudar ferozmente o curso dos
acontecimentos, revolucionar todo o tecido social, sem deixar o nome gravado nas
incontáveis iniciativas do novo regime, que é justamente o troféu preferido dos
déspotas! Um distanciamento duplamente pérfido, parecendo confirmar a tese de
que apenas o ódio puro o animava! Dizem que padecia ainda de um grau de racismo
psicótico, mitificando a etnia Khmer, cuja capital imperial foi edificada na
cidadela dos magníficos templos de Angkor, durante a Idade Média. Mesmo no mal,
afastou-se imenso do comum dos mortais.
No documentário, pressentimos
que Panh se sente desconfortável, não apenas por reacordar um passado doloroso
ou rever a sombra espessa do mal que assolou o seu país, mas pela cedência de
tantos e a passividade de quase todos! É sempre o silêncio da maioria que dói e
nos faz desconfiar do ser humano. Interroga-se, no final, sobre a inexistência de
oposição, apesar de perceber que o povo estivera assoberbado no mero desafio da sobrevivência. Como ele
próprio. Será que lhe faltou coragem para fazer contra-vapor, na altura? Falhou
nalguma atitude? Continuar vivo valeu o preço do silêncio?
Ensaiando uma resposta
simbólica à típica colecção de dúvidas que assaltam os sobreviventes de
situações limite (os dos Campos de Concentração da II Guerra foram pródigos a
testemunhar este mal-estar), a voz off diz-nos que um sorriso, um certo olhar foram os gestos possíveis e corajosos
das vítimas de tanta crueldade. Defende que muitos emitiram estes sinais positivos,
de valor incalculável, precisamente pelas circunstâncias desesperantes em que
ocorreram, reanimando uns e outros. Ainda que minúsculas, são sempre preciosas as
pequenas luzes que se atrevem a acender na escuridão. Sim, faltam provas
materiais. Mas não faltou lealdade, nalguns, com risco de vida.
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_________________
(1) FICHA TÉCNICA do filme documental:
Título
original:
|
L’IMAGE MANQUANT
|
Título traduzido
em Portugal:
|
A IMAGEM QUE FALTA
|
Realização:
|
Rithy Panh
|
Argumento:
|
Christophe
Bataille e Rithy Panh
|
Produzido por:
|
Catherine Dussart
|
Banda Sonora:
|
Marc Marder
|
Duração:
|
92 min.
|
Ano:
|
2013
|
País:
|
Cambodja e
França
|
Escultor das figuras de barro:
|
Sarith Mang
|
Elenco:
|
Randal Douc (narrador )
|
Local das filmagens:
|
Em
estúdio, a maioria.
No Cambodja, de filmes de propaganda
|
Prémio em Cannes na categoria Un Certain Regard;
Candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro na
edição de 2014.