UM NATAL COM RISCO DE VIDA
Em 1943, numa Itália ainda sob ocupação nazi, corria em segredo entre os conventos de Roma o que chamavam encriptadamente de “desejo do Papa”. Referiam-se ao pedido de Pio XII, transmitido a uns e outros em surdina, para “darem refúgio aos perseguidos”. Naqueles tempos de guerra, os judeus eram o principal alvo da impiedosa perseguição étnica movida pelas SS.
Nos subúrbios romanos, mais exactamente no nº 8 da Via Poggio Mojano, o Convento das Irmãs Franciscanas da Misericórdia conseguiu antecipar-se ao pedido papal e cedo acolheu a primeira refugiada – uma professora primária. Sem fazerem perguntas, os portões foram-se abrindo a famílias em fuga, apesar do risco de vida que tal gesto implicava. Alojavam-nos numa zona resguardada, onde à entrada foi colocada uma imagem de Nossa Senhora do Luxemburgo, protectora dos perseguidos, depois de confirmado com os judeus acolhidos que a presença daquela imagem não feria as suas crenças. Aproveitando o facto de aqueles aposentos mais longínquos terem sido ocupados pelas SS (até 3.OUT.1943) que projectavam transformá-los em hospital militar, as Irmãs conseguiam condicionar habilmente as rusgas periódicas de milícias fascistas antissemitas ao convento, em busca de judeus escapados aos comboios com destino a Auschwitz.
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À esquerda, um dos acolhidos no convento, Lello Dell’Ariccia, ali escondido quando era criança, juntamente com a mãe e o irmão mais novo. Ao centro, a atual superiora, irmã Clara Maria, na entrada por onde passavam os judeus. |
Ainda hoje o Convento da Misericórdia mantém a boa tradição e acolhe os refugiados do nosso tempo, entre os sobreviventes das atribuladas travessias do Mediterrâneo, fugidos às guerras sanguinárias que assolam inúmeros países de África. Outros fogem da pobreza extrema, chegando da Ucrânia, da Síria, do Afeganistão, da Rússia, da Roménia (famílias ciganas), etc. Ironicamente, são encaminhados para os compartimentos inicialmente ocupados pelas SS, depois pelos judeus e agora pelas vítimas oriundas dos recantos sofridos do planeta.
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A pequena hóspede somali num quarto onde estiveram escondidas crianças judias. |
A mensagem transmitida aos novos refugiados na Via Poggio Mojano replica a do tempo da Segunda Guerra, universal e intemporal: a ternura de Jesus e de S.Francisco por toda a humanidade, com lugar para todos, e o desafio para nunca perderem a Esperança – uma das luzes que sustentou o Santo de Assis!
A forma como o convento se tornou conhecido resulta numa súmula fantástica do significado do Natal e da abertura a quantos têm boa vontade, começando pelos mais desprotegidos: «Há ali um portão que, em caso de dificuldade, se abre sem fazer perguntas». Poderia ser o convite dirigido a cada um de nós pelo Bebé de Belém, ele próprio nascido numa gruta perdida, como um pária. Talvez por isso tenha querido começar por se revelar aos párias da vizinhança – uns pobres pastores sem-abrigo, a dormir ao relento em mais uma noite gelada, depois tornada luminosa…
Este ano, comemora-se o 800º aniversário do primeiro presépio, concebido e montado por Francisco de Assis, com figuras reais. Em Itália, encontra-se o fresco mais antigo que se conhece com a Representação da Natividade, evocativa do presépio de S. Francisco:
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Fresco retratando o primeiro presépio, na gruta do povoado de Greccio. |
Recuando a 1223, depois de regressar da peregrinação à Terra Santa, desgostoso por ter falhado o intento de pôr cobro à contenda entre muçulmanos e cruzados cristãos, Francisco lembrou-se de aproveitar a festividade natalícia para relembrar de modo mais palpável a vinda de Cristo à Terra. No povoado remoto de Greccio, encrustado em rochedos de 700m de altitude, escolheu encenar o nascimento de Jesus. Nessa noite de 24 de Dezembro, uns poucos (um nobre italiano Giovanni Velita e a sua mulher Alticama, três companheiros frades e alguns pastores) anuíram ao seu desejo tão original e recriaram um presépio vivo, com poucas personagens: Maria, José, o Menino, uns pastores e dois animais da tradição – um boi e um burro para aquecerem a gruta. Esse presépio simples é lembrado na representação exposta no Vaticano até ao início de Janeiro do Novo Ano.
Temos a sorte de continuar longe dos palcos de guerra e de outras calamidades, mas que isso não nos impeça de reconhecer, nem de faltar a quem sofre. De certo modo, seria uma traição ao Bebé de Belém.
Santo Natal e Feliz 2024 a cada um e à sua família.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)