É difícil imaginar que um contemporâneo das escolas de pintura mais vanguardistas, nado e criado em França, se tenha mantido constante no estilo mais próximo do objecto observado, tornando-se conhecido como o «pintor da verdade»
Constant Le Breton, oriundo da Bretanha, atravessou um século de vida, de 1895 a 1985, igualzíssimo a si próprio, imperturbável aos movimentos experimentais e progressistas da arte novecentista. Teve, assim, a ousadia de ser fiel à tradição, uma das características mais subestimadas do século em que o homem chegou à Lua:
A exposição, patente na Gulbenkian até 8 de Agosto (1), é uma boa mostra da produção clássica do pintor, permitindo-nos sobrevoar cem anos da história de França, na versão menos comum: os cenários familiares com acesso directo aos interiores das casas parisienses; as perspectivas captadas a partir do fantástico passeio pedonal que bordeja o Sena; as paisagens suaves, de luz sombria, na parte menos monumental do Loire, bem a norte dos Castelos; os retratos de crianças anónimas e de algumas (poucas) figuras públicas como Ingrid Bergman. Dos óleos às aguarelas, Breton foi também um exímio desenhador e gravador de litografias tendo-se, no entanto, celebrizado como retratista.
Em toda a sua obra perpassa um olhar doce e, simultaneamente, firme, que transporta para as telas uma paz e uma luminosidade extraordinárias. Raras no panorama das pinturas do seu tempo, onde as abordagens introspectivas, exploratórias das zonas mais remotas e indomáveis do subconsciente, se exprimem num tom angustiado e obscuro.
É frequente aplicar a Breton um tratamento de excepção e não dissociar a pintura da sua vida. É nessa senda, bastante incomum, que o grande realizador sueco, Ingmar Bergman, assume ter sido um fiasco como ser humano (2), com a lucidez que lhe admiramos nos filmes. Claro que estamos a falar de um homem superior, apesar de tudo. Não por acaso, seguia das bússolas mais fiáveis: a busca intrépida pela verdade tomando como meta o amor – «Tento dizer a verdade sobre a condição humana – a verdade como eu a vejo.» «A noção de amor (é) a única forma concebível de santidade.» (1968)
É também de Bergman a caracterização cirúrgica do artista contemporâneo, incrivelmente egocêntrico: «A mais insignificante ferida ou dor no ego é examinada à lupa como se fosse matéria de importância capital. O artista considera o seu isolamento, a sua subjectividade, o seu individualismo quase sagrado.»
Isto é tudo o que não se aplica a Breton. Por estranho que pareça, extravasa das suas telas a própria humildade, como uma tonalidade inédita na paleta cromática do século do showbiz. Na sua pintura, tudo se mostra mas nada se exibe. Impera a simplicidade. Os elementos coabitam harmoniosamente, sem hierarquias nem vedetismos. Das pessoas às paisagens, domina o mesmo rigor pictórico, sem a presença marcante do pintor-criador, fazendo-nos crer que recuámos mais de cem anos para épocas onde os holofotes incidiam sobre as obras e nem tanto sobre os artistas…
O seu extremo cuidado revela-se na abundância dos pormenores e da variedade de texturas. Breton costumava dizer que pintava por necessidade e por gosto, como quem respira. Mas embora a sua arte pareça fluir com naturalidade, adivinha-se-lhe um trabalho árduo, até ao mais ínfimo detalhe. A transparência da água de um insignificante riacho ou o entrançado de filigrana dos cabos na tela dos «3 Mastros» são exemplos de uma riqueza hiper discreta, de uma aparência invulgarmente despojada:
De facto, é notável que os críticos de arte associem a pintura de Breton à verdade. Notável e raríssimo, sobretudo numa época onde o relativismo já avançava a passos de gigante. No fundo, espantamo-nos com o impacto subtil de pinceladas de uma beleza muito depurada, gentil e humilde, que transbordam para lá dos limites da tela e da arte, parecendo plasmar a própria realidade. Experimentem ir até à Gulbenkian ver com os vossos próprios olhos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Constant Le Breton (1895-1985). Pinturas e aguarelas
- Expo - Fora de Portas De 21/05 a 8/Agosto /2010. Das 10h00 às 18h00, Terça a Domingo, Entrada livre
Galeria de Exposições Temporárias da Sede, piso 01 (junto ao bengaleiro), na Fundação Calouste Gulbenkian. http://www.gulbenkian.pt.
(2) «I was very cruel to actors and to other people. I think I was a very, very unpleasant young man. If I met the young Ingmar today, I think I would say, "You are very talented and I will see if I can help you, but I don't think I want anything else to do with you."» publicado no New York Times Magazine, 26 de Junho de 1983. Num outro desabafo, no final de vida: «(Fui) um péssimo marido e ainda pior pai.»